As agências subordinadoras da universidade
Por Prof. Dr.
José Maria Alves da Silva*
O Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal Docente (Capes) são órgãos
estatais que foram criados com objetivo de fomentar a ciência e a
educação no Brasil.
Um dos
idealizadores do Conselho Nacional de Pesquisa, fundado em 1951, do
qual se originou o CNPq, foi o grande físico Cesar Lattes, que ficou
mais conhecido pelo currículo que lhe leva o nome, e só não esteve
entre os laureados ao premio Nobel porque os que costumam conceder
essa honraria, em caso de dúvida, pendem para o lado dos compatriotas.
A Capes,
idealizada pelo educador Anísio Teixeira, tinha por objetivo original
a qualificação de professores, partindo do princípio óbvio de que não
pode haver boa educação sem bons quadros docentes, e que, portanto,
não adianta expandir o sistema educacional sem o recurso fundamental
que determina sua qualidade: o professor. Esta era a lógica simples na
qual se fundamentava o ideal de Anísio Teixeira. Ele tinha visão de
futuro e sabia ser necessário para o Brasil adaptar seu sistema
educacional para uma nova era de modernização econômica, que
inevitavelmente viria de fora para dentro, e que, para acompanhar a
tendência mundial, o Brasil precisaria de professores capazes de
assimilar e transmitir os novos conhecimentos que se tornavam
necessários. Portanto, era preciso fazer um trabalho de formação de
quadros docentes adaptados às exigências de uma nova época. Era esse,
em linhas gerais, o motivo original da criação da Capes.
Além do apreço à
boa educação e à boa ciência, os idealizadores do CNPq e da Capes eram
patriotas que achavam que o Brasil poderia percorrer o caminho já
trilhado pelos países desenvolvidos. Não há dúvida de que, para isso,
o desenvolvimento da educação, da ciência, e, por meio delas, da
tecnologia, eram os ingredientes mais essenciais. No entanto, fazendo
uma avaliação do comportamento dessas agências, nas últimas décadas,
chegamos à conclusão que elas estão em flagrante contradição com os
objetivos originais. Não estão honrando a memória dos grandes
brasileiros que mais contribuíram para sua criação.
Certamente, as
universidades públicas brasileiras poderiam contar com apoios
importantes caso elas, de fato, funcionassem de acordo com os
objetivos propostos originariamente, mas sem que, para isso, tivessem
de se portar de forma subordinada e dependente, caso contrário, além
da violação do princípio da autonomia, se estaria implantando
instrumentos de controle governamental sobre o meio acadêmico, em
clara violação a princípios consagrados do Estado Democrático de
Direito e absoluto desacordo com a ideia de universidade como espaço
da liberdade de pensamento, da liberdade de cátedra, da liberdade de
expressão e do pluralismo de ideias. Mas, infelizmente, é isso que
está acontecendo pari passu com a crescente relação de
dependência financeira para com órgãos federais localizados em
Brasília.
A partir do
governo FHC essa relação de dependência acentuou-se, devido ao
esvaziamento de recursos orçamentários destinados diretamente a elas,
a ponto de implicar numa velada relação de subordinação. O CNPq passou
a ditar os rumos da pesquisa e a Capes a ter poder de vida e morte
sobre cursos de pós-graduação. Antes disso, já se havia criado uma
aberração por meio do CNPq: a bolsa de produtividade em pesquisa,
crasso exemplo de intromissão indevida no meio acadêmico. Sei que
falando isso vou, desde já, angariar as antipatias de um número grande
de docentes que já se acostumaram a contar com essa forma de renda
complementar. Mas é preciso dizer que isso está em contradição com o
princípio da autonomia e a ideia de universidade como “consciência
crítica da Nação”. Tal como está estabelecida, a bolsa de
produtividade de pesquisa é uma distorção, porque, ao estabelecer uma
vinculação direta do CNPq com cada docente pesquisador simplesmente
“passa por cima das instituições”. Se fosse para premiar
produtividades excepcionais em pesquisa, algo que, a meu ver é muito
difícil de aferir à distância, melhor seria que determinadas quotas de
bolsas fossem concedidas às universidades, segundo critérios muito bem
definidos, para que estas fizessem a distribuição interna segundo seus
próprios critérios e objetivos, os quais, naturalmente deveriam ser
definidos mediante ampla discussão entre a comunidade interessada.
Essa “ligação
direta” com os docentes, extremamente vulnerável a fisiologismos de
toda natureza, abre a possibilidade de que uma burocracia brasiliense
possa influenciar nos rumos da pesquisa nos campus universitários
espalhados pelo país, e assegurar a certas oligarquias científicas bem
estabelecidas acesso privilegiado a recursos públicos significativos.
Outros canais de influência são as destinações indiretas de verbas
extraordinárias de convênios que dirigentes universitários se
acostumaram a disputar, “de pires na mão”, e que também são
extremamente susceptíveis ao tráfico de influências.
Tal situação é
especialmente lamentável a todos os que vieram para a universidade
pública imaginando fazer parte de uma instituição fundamental do
Estado e não mais um órgão qualquer de governo, sujeito aos “humores”
da política.
É comum ver
docentes da universidade pública, contratados em regime de dedicação
exclusiva, que se apresentam ao mesmo tempo como “professor
universitário” e “pesquisador do CNPq”. Isso mostra que falta definir
ainda se a dedicação exclusiva é para ser entendida no aspecto
institucional ou funcional. A valer o primeiro caso, ninguém da
universidade pública, com DE, poderá ser chamado de pesquisador do
CNPq, posto que, tal regime necessariamente pressupõe o envolvimento,
na universidade, com a tríade: ensino, pesquisa e extensão,
indissociavelmente, sem qualquer vínculo com outra instituição. Se for
entendida no aspecto funcional, isto é, como dedicação exclusiva à
atividade acadêmica, o vínculo docente com instituições
não-universitárias poderia ser permitido, mas isso inevitavelmente
introduziria algum desequilíbrio na tríade. É isso que acontece com os
bolsistas do CNPq, para os quais o lado da pesquisa acaba ganhando
mais peso, em detrimento do ensino e da extensão. A pesquisa é
incentivada, pelas bolsas de produtividade em pesquisa, mas ninguém
incentiva a educação superior, como atividade formadora de opiniões
políticas esclarecidas e de profissionais de alto conteúdo ético, que
estão muito em falta neste País.
Se existe um
órgão lotado no Ministério da Ciência e Tecnologia, para fomentar
atividades que lhe dizem respeito, é lógico supor que o mesmo deveria
acontecer no MEC, se for para fomentar a educação. Mas, na verdade,
isso não ocorre. Um exame da missão da Capes, disponível em seu sítio
da internet, indica maior compromisso com pesquisa científica do que
com a educação superior propriamente dita. Há bom tempo que sua
principal função tem sido fomentar e avaliar cursos de pós-graduação,
atividades para as quais foram destinados cerca de 75% dos recursos
orçamentários executados pelo órgão em 2009 (cerca de um bilhão e
setecentos milhões de reais). Até aí nenhuma incoerência, uma vez que
os cursos de pós-graduação também fazem parte da função educação.
Contudo, os parâmetros de avaliação e critérios de distribuição de
recursos utilizados priorizam as atividades de pesquisa vinculadas aos
programas de pós-graduação, como é o caso de publicações em revistas
científicas indexadas, fator preponderante na pontuação aos programas.
Outro fator importante é o que se chama de inserção internacional,
entenda-se “convergência de conteúdos disciplinares e programas de
pesquisa a padrões ditados de fora para dentro”. Podemos chamar a isso
de fomento à educação superior nacional?
Na verdade, esses
critérios estão contribuindo para aumentar as desigualdades de
condições entre instituições públicas brasileiras de ensino superior.
As instituições que não operam com pós-graduação ficam limitadas às
dotações orçamentárias do OGU diretamente alocadas à função educação
superior. As que possuem programas de pós-graduação, tradicionalmente
as melhor localizadas em relação aos centros de poder, têm acesso
diferenciado a recursos extras provenientes de transferências da Capes
e do CNPq. Assim, nosso sistema de ensino superior pode ser dividido
em dois segmentos: um que subsiste em condições miseráveis, mas
independente das agências reguladoras, e outro constituído pelas
universidades com tradição em pesquisa, mas que depende crucialmente
dessas fontes de recursos, razão pela qual a Capes adquiriu um poder
de vida e morte sobre as instituições que dele participam. A criação
de novos programas de pós-graduação, com uma mínima garantia de
recursos, depende de sua aprovação, em conformidade com os padrões
ditados, ao passo que os programas já existentes que não obtiverem
pontuação suficiente para alcançar classificação igual ou superior a
quatro perdem acesso aos recursos e são praticamente condenados à
extinção. Nessa relação subordinada, tudo o que os docentes podem
fazer é seguir os ditames da Capes, que os coordenadores colocam na
mesa de reuniões, e ponto final.
Estando, de fato,
mais focada na atividade de pesquisa do que na educação, a Capes se
coloca numa área de superposição com o CNPq, desvirtuando-se em
relação aos seus objetivos originais, que era o da formação de quadros
docentes qualificados. Na universidade pública, isso pressupõe a
formação não apenas de pesquisadores ou tecnólogos, mas, sobretudo, de
docentes politizados e pensadores das problemáticas nacionais, capazes
de contribuir para a formação de agentes de transformação social. No
entanto, por força das ingerências dessas agências, introduziu-se um
viés cientificista-tecnológico a ponto de fazer com que as atividades
nas áreas de humanidades sejam regidas pelos mesmos parâmetros das
ciências naturais, exatas e tecnológicas. Trata-se de uma imposição
autoritária do monismo metodológico pelas oligarquias científicas que
determinam critérios que são mais convenientes a eles próprios, à
revelia do povo e do País. Essa é a razão pela qual se vê hoje tantos
cientistas políticos, sociólogos, filósofos, historiadores,
economistas, geógrafos, antropólogos e outros profissionais das
humanidades completamente alheios à nefasta tendência social
brasileira. O que estão fazendo eles? Estão elaborando projetos de
pesquisa para o CNPq, preenchendo relatórios de prestação de contas,
atualizando ininterruptamente o currículo Lattes, prospectando editais
e correndo atrás da publicação de papers em revistas indexadas,
como parte do esforço para que os programas de pós-graduação aos quais
pertencem alcancem os pontos necessários para continuar existindo.
É paradoxal
constatar que a Capes esteja, de fato, contribuindo para a alienação
da classe que deveria estar pensando criticamente o País. O clima de
alienação no meio acadêmico é visível na falta de debates, na ausência
de conferências indignadas, e mesmo de panfletagem nos meios de
comunicação de massa, como era comum em outros tempos de luta pelas
liberdades democráticas. Tanto barulho por nada. Os painéis temáticos
dos congressos nas áreas de humanidades no Brasil hoje são de uma
pobreza assustadora. O que mais se vê são discussões de métodos e
assuntos especializados de baixa relevância, por grupos restritos de
especialistas que só se comunicam entre si. Enquanto isso, o Brasil
caminha na direção contrária do desenvolvimento, com um povo
majoritariamente carente de habitação, educação, cuidados pessoais,
sendo tratado como gado nos meios de transporte coletivo e no SUS; com
uma classe média cada vez mais ameaçada pelo avanço do consumo de
drogas, e da morte violenta pelo crime e acidentes de trânsito,
devidos à precariedade e a incúria de órgãos estatais que deveriam
zelar pela segurança das famílias. Na origem de tudo isso está um
Estado que se esfacela moralmente a olhos vistos, enquanto os
“cientistas sociais” permanecem num silêncio de sarcófago. Se vivos
estivessem, o que diriam Cesar Lattes, Anísio Teixeira e Darcy
Ribeiro, entre outros patriotas que sonharam com um Brasil grande?
* José Maria
Alves da Silva é Doutor em Economia pela Universidade de São Paulo e
Professor Associado da Universidade Federal de Viçosa (MG). Publicado
originalmente em ADUNICENTRO – Sindicato dos Docentes da Unicentro,
disponível em http://adunicentro.org.br/novo/?p=2827. Reproduzido sob
autorização da fonte.
Fonte: Democracia
e Transparência em C&T, 20/9/2012.