Após vitória da família Herzog, viúva de Luiz Eurico Lisboa também quer alterar atestado de óbito
 

Suzana Lisboa entregou à Comissão Nacional da Verdade laudo que desmente versão oficial de que seu marido teria cometido suicídio nos porões da ditadura; órgão federal realizou audiência pública em São Paulo

São Paulo – Os familiares de Luiz Eurico Tejera Lisboa, militante político morto em São Paulo em 1972, durante a ditadura, apresentaram hoje (12) à Comissão Nacional da Verdade (CNV) laudo pericial que contraria a versão oficial de seu atestado de óbito. “O documento desmonta a versão de suicídio”, sustena Suzana Lisboa, viúva de Luiz Eurico, encontrado no quarto de pensão que ocupava na capital, desfalecido e com um tiro na cabeça.

Inédito até agora, o documento é uma análise das perícias criminais – laudo cadavérico e exames do local de morte – realizadas em setembro e outubro de 1972 sobre o caso da “pessoa apresentada como Nelson Bueno”, nome utilizado pela repressão para ocultar as provas e o cadáver de Luiz Eurico, cuja supultura seria encontrada apenas sete anos depois, no cemitério de Perus, zona norte da cidade.

O laudo está assinado por três peritos criminais – Celso Nenevê, Pedro Luis Lemos da Cunha e Mauro José Oliveira Yared. A partir de fotos do cadáver de Luiz Eurico, das manchas de sangue, da posição do corpo na cama, dos lençóis que cobriam seu corpo e, principalmente, da trajetória da bala que cruzou sua cabeça, os especialistas encontraram “inconsistências técnicas” nos registros oficiais que não sustentam a tese de que o militante tirou a própria vida.

Retificação

Com as novas evidências, a viúva trouxe ainda um pedido. “Consultei a CNV se, em função desse laudo tão taxativo, dizendo que a versão de suicídio é mentirosa, não seria possível conduzir algum procedimento para retificar o atestado de óbito”, revela Suzana, lembrando que a Comissão Nacional da Verdade já encaminhou, com sucesso, pedido semelhante para o caso do jornalista Vladimir Herzog. Assim como ocorreu com Luiz Eurico, a versão oficial – junto com a famosa foto de seu enforcamento na janela de uma cela do DOI-Codi – também falava que Herzog havia cometido suicídio em 1975.

“No caso do jornalista, havia sentença da Justiça federal reconhecendo que a União era responsável e que a morte tinha ocorrido por lesões e maus tratos”, recorda a advogada Rosa Cardoso, membro da CNV, anotando uma diferença em relação ao caso de Luiz Eurico, que ainda não possui qualquer decisão judicial favorável à mudança no atestado de óbito. “Nossa fundamentação terá que ser outra. Vamos analisar os documentos e avaliar qual é o melhor caminho. Cada caso é uma história, não pode ter uma resposta única.”

Maria Rosa garante que a Comissão Nacional da Verdade vai avaliar todos os pedidos de familiares que quiserem retificar o atestado de óbito de seus entes queridos mortos no contexto da repressão política. A advogada não sabe ao certo quantas vítimas tiveram seus laudos cadavéricos forjados, mas estima ser mais de cem casos. “Não estávamos preocupados em fazer esse tipo de trabalho”, admitiu, “mas os casos foram aparecendo. Certamente a vitória da família Herzog vai inspirar outros pedidos de mudança.”

Bacuri

A audiência pública de hoje teve lugar na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, e foi organizada pela Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva”. Foi o primeiro evento conjunto realizado com as portas abertas pelas comissões estaduais e nacional. Além da morte de Luiz Eurico Tejera Lisboa, também foi analisado o caso de Luis Eduardo Leite. Bacuri, como era conhecido, militava em organizações de esquerda que faziam oposição armada ao regime.

Foi preso pela repressão em 1970, mesmo ano em que morreu, após 109 dias de tortura. A versão oficial diz que Bacuri perdeu a vida após tiroteio com agentes do Estado, fora da prisão, após ter empreendido uma fuga. Mas todas as testemunhas ouvidas hoje pela CNV – inclusive um ex-soldado – dizem que na realidade Bacuri foi morto dentro do quartel.

“Foi um momento político importante”, classifica Denise Crispim, viúva de Bacuri, que também foi presa e torturada pela ditadura. Denise estava grávida quando foi surpreendida em sua casa pelos agentes da repressão. Ela conta que a última vez que viu o marido foi na própria cadeia, quando, após sessões intermináveis de tortura, os torturadores a levaram à presença de Bacuri numa última tentativa para que o militante abrisse o bico. Apesar da emoção, Denise disse ter ficado muito satisfeita com a audiência. “É minha vida que volta, é a história do Eduardo que volta, procurando a verdade. Tenho confiança e esperança de que tudo vai dar certo, mas é só o começo.”

Novo formato

O formato da audiência organizada pela Comissão Estadual da Verdade agradou bastante aos membros da CNV. “Desde que começamos os trabalhos, há seis meses, essa talvez tenha sido a melhor sessão até agora”, reconheceu a psicanalista Maria Rita Kehl, membro da Comissão Nacional nomeada no último dia 16 de maio pela presidenta Dilma Rousseff. “Em vez de ser uma oportunidade de desabafos curtos de muita gente que quer falar, e cada um fala uma coisa, essa foi mais investigativa. Escolheram apenas dois casos que foram bem escorados por muitos depoimentos. Teve o valor de um começo de investigação.”

Maria Rita diz que a ideia é levar essa dinâmica à Comissão Nacional, para avançar com mais velocidade nos casos que ainda devem ser analisados até maio de 2014, quando acabam os trabalhos. E são muitos: apenas em São Paulo, os comissionados pretendem se debruçar sobre 140 episódios de morte e desaparecimento. A CNV quer colher o depoimento de familiares e testemunhas de todos os casos, mas o relógio joga contra. “Teremos que racionalizar isso no tempo, fazer três ou quatro audiências por dia”, calcula Rosa Cardoso, “com sessões mais rápidas, sem apresentações nem falas iniciais.”

De acordo com o presidente da Comissão Estadual da Verdade, deputado Adriano Diogo, a presença dos membros da CNV é fundamental. “Temos que fazer tudo em conjunto, senão não tem força de lei, não tem peso de inquérito e nem força legal”, sublinha o parlamentar. Ele anunciou que as próximas sessões ocorrerão apenas no ano que vem. “Novidade não tem, porque são histórias conhecidas há muitos anos. A diferença é que as histórias estão sendo incorporadas pelo Estado brasileiro pela primeira vez.”

 

 

Fonte: Rede Brasil Atual, Tadeu Breda, 12/11/12.

 

 


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