Angela Davis:
"Fui usada para espalhar o medo"
|
|
40 anos depois das graves
acusações que a levaram a ser julgada e presa nos EUA, em processo
político que teve grande repercussão internacional, Angela Davis
analisa nesta entrevista aquela etapa difícil de sua vida. Ao
referir-se à atual situação dos negros nos EUA, Angela diz que “as
coisas são piores, hoje, com um negro na Casa Branca”.
“Acho que meus princípios não
mudaram em todos esses anos. Nem meu compromisso político.” É o
que diz Angela Davis, uma das mais famosas ativistas políticas dos
anos 1960 e 1970, figura icônica, não só pelo discurso fortemente
revolucionário e pela destacada militância nos “Panteras Negras”,
mas também pelo penteado ‘afro’ que fez moda em todo o planeta
entre as mulheres negras e brancas.
Hoje, com 68 anos,
intelectual e professora universitária, formada na Universidade de
Frankfurt onde estudou sob orientação de Herbert Marcuse, Angela
Davis chegou ao Festival Internacional de Cinema de Toronto
[Toronto International Film Festival], para apoiar o lançamento do
documentário Free Angela & All Political Prisoners
[Liberdade para Angela & Todos os Prisioneiros Políticos][1]. |
Dirigida por Shola Lynch, o filme
narra os padecimentos de Davis há 42 anos, quando foi envolvida pelo
FBI no sequestro e morte do juiz Harold Haley, do condado de Marin, na
California[2]. Angela acabou por ser absolvida, apesar da pressão que
fez contra ela o governador da California, Ronald Reagan, o qual, em
1969, conseguira expulsá-la da Universidade da California (UCLA) pela
declarada militância de Davis no Partido Comunista.
Foragida da Justiça, na qual
evidentemente não confiava, Angela Davis chegou a integrar, aos 24
anos, a lista dos 10 foragidos mais procurados do FBI, até afinal ser
localizada e presa, em outubro de 1970. Cresceu então uma campanha
internacional por sua libertação, que contou com a solidariedade até
de John Lennon e Yoko Ono, que compuseram a canção “Angela” para seu
LP "Some Time in New York City" (1972[3]), e dos Rolling
Stones, que gravaram um single, “Sweet Black Angel”, incluído
em seguida no álbum Exile on Main Street (1972[4]).
“Nunca procurei esse grau de
exposição pública e foi muito difícil de aceitar, naquela época” –
lembra Miss Davis em entrevista exclusiva ao jornal Página/12, numa
suíte do Soho Metrotel de Toronto. “Minha aproximação original foi
estritamente política, e nem nos meus sonhos mais loucos pensei que
seria empurrada nessa direção. Mas, ao mesmo tempo, fui consciente de
que era algo com que teria de aprender a conviver. Portanto, decidi
tratar de usar aquilo tudo, nem tanto em meu nome, mas em nome de
tanta gente que não tinha voz naquele momento.”
Página/12: A senhora
refere-se a seus companheiros de militância nos Panteras Negras?
Angela Davis:
Exatamente. Porque a campanha nacional pela minha libertação
começou sob a bandeira de “Libertem Angela Davis”, mas decidi que
teria de ser “Libertem Angela Davis e todos os presos políticos” –
a frase que Shola Lynch escolheu para título do seu documentário.
|
|
|
P/12: No filme, a senhora diz
que a tripla pena de morte que os promotores pediram, no seu caso, não
se dirigia pessoalmente à senhora, mas a toda a construção que a
senhora encarnava. Pode falar um pouco mais sobre isso?
Angela Davis: Logo percebi
que todo aquela fúria contra mim excedia minha pessoa e a minha
situação pessoal. Em primeiro lugar, porque não conseguiriam me
executar três vezes[5]. Percebi também do que se tratava ali. Estavam
decididos a matar um inimigo imaginário que estava sendo construído. E
eu era a encarnação perfeita do inimigo que eles começavam a
construir: negra, mulher e comunista. Quando o FBI começou a me
perseguir, aproveitaram prender centenas de mulheres negras e jovens
como eu. Aproveitaram a situação para tentar espalhar o medo em toda a
comunidade negra nos EUA.
P/12: Desde então, o que
mudou?
Angela Davis: Acho que
muitas coisas mudaram. E penso que mudaram, em grande medida, por
causa da luta que fizemos. Quando cheguei à universidade, eram
raríssimas as negras em cursos superiores nos EUA. Hoje, são milhões,
embora ainda haja enorme desproporção entre negros e brancos nos
cursos superiores. Hoje o que me angustia muito é que, naquele tempo,
quando lutávamos pela libertação de todos os presos políticos em
especial e contra a instituição carcerária em geral, surpreendeu-nos
muito a quantidade de gente presa nos EUA. Mas hoje, esse número é
muitas vezes maior. Hoje, em meu país, há 2,5 milhões de pessoas
encarceradas. Um, de cada 37 adultos vive no sistema penitenciário. É
porcentagem altíssima. Os EUA somos o país de maior população
encarcerada no mundo.
P/12: E a que a senhora
atribui isso?
Angela Davis: Há a
miséria, sem dúvida. A maioria dos homens negros jovens nos EUA estão
hoje desempregados. Há aí o problema político, mas há também o
racismo. É verdade que os livros escolares já não manifestam
abertamente o racismo, como antes, e que já não há segregação racial
oficial, mas em muitos sentidos a situação é hoje pior que antes, há
meio século.
P/12: Apesar do presidente
afroamericano, Barack Obama?
Angela Davis: Sim, é
triste dizer, mas as coisas são piores com um presidente afroamericano
na Casa Branca. Essa é a ironia. Porque há meio século era impensável
que um negro chegasse, algum dia, à presidência dos EUA. Hoje, é
possível. Mas também é preciso dizer que ninguém, na Casa Branca,
hoje, está preocupado com o fato de que há um milhão de negros nas
prisões norte-americanas. E isso tem relação direta com o
desmantelamento completo do sistema de bem-estar social e com a
desindustrialização pela qual os EUA estão passando, e a consequente
perda de postos de trabalho. Antes, a população negra tinha onde
trabalhar, na indústria siderúrgica, na indústria automobilística, em
tantas outras indústrias que já deixaram os EUA e mudaram-se para
outros países onde a mão de obra é muito mais barata. Eu nasci e fui
criada em Birmingham, Alabama, e ali a indústria siderúrgica era era a
principal fonte de trabalho. Ainda é, mas com muito menos postos de
trabalho que antes. E se se soma a isso a falta de assistência social,
a falta de educação, a falta de sistema eficiente de assistência
pública à saúde, as prisões viram uma espécie de solução ao avesso,
para todos os problemas sociais que não recebem qualquer atenção
política.
P/12: Já que falamos de
prisões... Por que, na sua avaliação, Obama não cumpriu a promessa de
fechar a prisão de Guantánamo?
Angela Davis: Deveria
tê-la fechado no primeiro momento. Deveria ter sido seu primeiro ato
oficial. Em vários sentidos, a chamada “guerra ao terrorismo”
atropelou Obama. Mas também é verdade que a principal razão pela qual
Obama não fechou Guantánamo foi que não saímos às ruas para exigir que
fechasse. Em várias instâncias, os eleitores que elegeram Obama não se
mantiveram mobilizados e em alerta. Teria sido preciso criar um
movimento para fechar Guantánamo, um movimento que pressionasse, até
Guantánamo ser fechada. Também para criar melhor sistema de saúde
pública, de educação etc. São coisas que ainda temos de fazer.
P/12: Para as próximas
eleições?
Angela Davis: Claro. Já.
Imediatamente. Temos de sair e ocupar os espaços, construir para nós
uma dimensão do que é necessário e possível fazer.
********************************
[1] Trailer em
http://www.indiewire.com/video/tiff-trailer-free-angela-all-political-prisoners
[2] Dia 7/8/1970, militantes dos
“Soledad brothers”, grupo militante muito ativo na luta pela reforma
da legislação carcerária nos EUA, tentou uma fuga durante uma sessão
do tribunal que os julgava. A ação resultou na morte do Juiz Harold
Haley, de um jurado, de um advogado de acusação e de três negros. As
investigações logo revelaram que as armas usadas na tentativa de fuga
haviam sido compradas por Davis, e, para piorar, encontraram-se cartas
de amor que ela teria enviado a George Jackson, um dos envolvidos na
tentativa de fuga. Davis fugiu antes de ser presa [NTs, com
informações de
http://blogs.indiewire.com/theplaylist/tiff-review-free-angela-all-political-prisoners-a-fascinating-chronicle-of-justice-strength-20120912].
[3] Pode ser ouvido em
http://www.youtube.com/watch?v=Yp9StQhWGdc&feature=related [NTs]
[4] Pode ser ouvido em
http://www.youtube.com/watch?v=v8M8f9x435I [NTs]
[5] Angela Davis foi acusada de
prática de conspiração, assassinato e sequestro; nas três acusações a
promotoria pediu a pena de morte [NTs, com informações de
http://blogs.indiewire.com/theplaylist/tiff-review-free-angela-all-political-prisoners-a-fascinating-chronicle-of-justice-strength-20120912].
Tradução: Vila Vudu
Fonte:
Núcleo Piratininga de Comunicação. [Publicado em 28.9.12 - por Luciano
Monteagudo / Página, 12]