Tragédia
em Realengo se transforma em circo de horrores dissociado de reflexão
social
Duarte Pacheco Pereira*
"Alô, alô,
Realengo: Aquele abraço!" (Gilberto Gil, no samba-exaltação Aquele
abraço, ao partir para o exílio, forçado pela ditadura militar)
A dor pelas
mortes e pelos ferimentos, brutais e gratuitos, das crianças e
pré-adolescentes da Escola Municipal Tasso da Silveira, no bairro do
Realengo, na cidade do Rio de Janeiro, não deve obscurecer nossa
consciência crítica.
Nada que é
humano é somente individual. É individual e social. Mesmo a loucura e
suas consequências.
Em que
exemplos de violência e insensibilidade, reais e fictícios, o rapaz
Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, ex-aluno da escola
atingida, buscou inspiração? Onde conseguiu informações sobre o manejo
de armas e o planejamento de massacres? Como adquiriu os dois
revólveres e a farta munição que utilizou? Por que Wellington, filho
de uma paciente psiquiátrica, arredio desde criança, e que já
apresentava há vários meses, após o falecimento dos pais adotivos,
sinais perceptíveis de descontrole e decadência pessoal, foi esquecido
sozinho numa casa herdada, sem apoio nem assistência?
A forma
capitalista de vida social, sobretudo em seus traços contemporâneos,
engendra um individualismo cada vez mais exacerbado e uma perda
crescente de atenção e solidariedade das pessoas entre si. Não é
possível outra forma de sociabilidade humana, que reduza tragédias
como a que ensanguentou ontem pela manhã o bairro carioca de Realengo?
Estou cada vez mais estarrecido com a cobertura predominantemente
passional e facciosa da
tragédia
ocorrida em escola municipal do Rio de Janeiro, no bairro do Realengo.
O jovem
Wellington de Oliveira, autor dos disparos que mataram e feriram
alunos inocentes da escola, foi chamado de "meliante" nas primeiras
declarações do policial que o abateu e continua sendo indigitado como
"assassino" por quase toda a mídia, embora já se saiba que sofria de
esquizofrenia desde criança. A mídia negligencia as informações de que
Wellington, quando era aluno da escola, passou por vexames e
humilhações por causa de sua introversão e bizarrices. Não aborda a
falta de acompanhamento e tratamento adequados de um paciente
diagnosticado de esquizofrenia desde criança, o que agravou a evolução
de sua enfermidade. Não trata das informações sobre atentados e manejo
de armas que podem ser acessadas facilmente na internet. Não reavalia
a divulgação maciça, cotidiana e acrítica dos mais variados atos e
formas de violência praticadas por grandes potências e contumazes
delinquentes, reproduzidos em filmes de sucesso e até mesmo em jogos
eletrônicos. Não esclarece como Wellington conseguiu as armas e as
munições, sem as quais não poderia ter feito seus disparos cruéis e
desvairados. Não alerta para a atmosfera envenenada de individualismo
e competição em que a infância e a juventude vêm sendo forjadas.
Com essa
cobertura irresponsável e superficial, a maioria da mídia apenas
acirra a dor e as reações equivocadas dos parentes das vítimas e de um
amplo setor popular. E, nesse clima irracional, as autoridades
policiais já alertam para possíveis ataques de represália a familiares
do jovem atirador.
São poucos
também os professores e mais reduzidas ainda as entidades do
magistério que têm vindo a público para lembrar a violência que se
tornou endêmica nas escolas, principalmente nas escolas públicas,
rebatendo a ideia de que a tragédia do Realengo possa ser considerada
um fato isolado e imprevisível. Surpreende também que os movimentos de
saúde, sobretudo os de saúde mental, não se empenhem em repor a
apreciação do trágico acontecimento num quadro mais objetivo e
multilateral, que leve em conta a condição do autor dos disparos, a
falta de acompanhamento e tratamento de seu padecimento mental e as
circunstâncias finais de abandono e solidão que precederam seu gesto
de sofrida insanidade. Preocupa também que juristas de indiscutíveis
convicções democráticas não se pronunciem para reclamar o tratamento
jurídico adequado que merece um jovem esquizofrênico, mesmo que
pratique atos de grande crueldade.
Abalados
pelo acontecimento, que não conseguem entender satisfatoriamente,
muitos parecem retroceder à Idade Média, quase pregando a condenação
dos loucos como endemoninhados e bruxos e seu justiçamento nas chamas
de fogueiras.
Vêm à
lembrança as advertências de Engels e de Rosa Luxemburgo de que o
declínio da civilização capitalista poderia ser seguido não por um
salto socialista, mas por uma regressão à barbárie. É preciso
insistir, portanto, na necessidade de lutar pela alternativa de uma
civilização superior, socialista, baseada não apenas no poder
democrático dos trabalhadores, na propriedade social dos meios de
produção, no planejamento das atividades econômicas ou em serviços
públicos universais e de qualidade, principalmente nas áreas de saúde,
educação e previdência, mas também em valores de respeito,
solidariedade e ajuda mútua no convívio social.
Questões
que não querem calar
O programa “Fantástico” transmitido pela Rede Globo na noite de
domingo exibiu novas
reportagens
sobre a tragédia que se abateu sobre a Escola Municipal Tasso da
Silveira, no bairro do Realengo, na cidade do Rio de Janeiro. As
reportagens devem ter suscitado novas preocupações nos espectadores
atentos.
1) É legal
e admissível que a polícia carioca repasse imagens e documentos da
investigação para a Rede Globo com exclusividade, discriminando os
outros veículos de comunicação?
2) Segundo
as imagens transmitidas, as professoras das duas salas de aula
invadidas pelo atirador foram as primeiras a fugir, deixando para trás
as crianças e adolescentes pelos quais eram responsáveis. Por que a
entrevistadora não questionou esse comportamento? Por que as
autoridades educacionais do Rio de Janeiro não apuram, nem discutem
com as famílias dos alunos, a conduta da direção, dos professores e
dos funcionários da escola no episódio, até mesmo para estabelecer
padrões de reação escolar na eventual repetição de ocorrências
semelhantes? Segundo regra conhecida, o comandante de uma embarcação
que naufraga deve ser o último a abandoná-la.
3) Relatos
de colegas de Wellington de Oliveira, reproduzidos pelo programa da
Globo, confirmaram que o menino introspectivo e vulnerável costumava
ser objeto de gozações e humilhações na escola. Grupos de alunas o
cercavam, roçando seu corpo e simulando assediá-lo sexualmente, para o
sádico divertimento de outros alunos e alunas que assistiam. Em uma
ocasião pelo menos, colegas mais fortes o levantaram pelas pernas,
enfiaram sua cabeça numa privada e acionaram a descarga, conforme os
entrevistados admitiram. Contraditoriamente, uma das professoras que
abandonou precipitadamente a sala de aula, deixando para trás seus
alunos, declarou enfaticamente no programa da Globo que nunca houve
“histórico de violência” na Escola Municipal Tasso da Silveira. O que
era feito com Wellington não configura violência e violência repetida?
Como são supervisionados os banheiros, os horários de recreio e as
saídas das escolas, que se têm revelado momentos e espaços críticos
para a integridade e a segurança de alunas e alunos mais indefesos?
4) Conforme
as declarações de um dos irmãos de criação de Wellington, a mãe deles
foi chamada à escola, alertada para o comportamento discrepante do
aluno e aconselhada a procurar um psicólogo ou psiquiatra para
avaliá-lo. Isso foi feito? Em nossa sociedade capitalista, sobretudo
na fase neoliberal e privatizante que atravessa há cerca de duas
décadas, existe serviço público na região capaz de assegurar esse
atendimento, tratamento e acompanhamento? Por que esses aspectos da
tragédia não são pesquisados, nem discutidos?
5) Por que
não têm sido ouvidos juristas competentes sobre os aspectos penais
envolvidos em atos de jovens esquizofrênicos, mesmo que esses atos
sejam chocantes, brutais e injustificáveis como os que abalaram a
escola do Realengo? Se Wellington tivesse sobrevivido, ele poderia ser
levado a júri e condenado à prisão? É correto tratá-lo raivosamente
como “criminoso” e “assassino” como qualquer jovem normal e imputável,
esquecendo seu prolongado e negligenciado sofrimento mental? A dor
merecida pelas vítimas de sua insanidade e a solidariedade com os
familiares dos alunos mortos e feridos devem impedir a solidariedade
com os familiares do autor dos disparos e a compaixão pelo jovem que
premeditou e executou o massacre e acabou sendo vítima de seus
próprios atos tresloucados?
A tragédia
do Realengo precisa ser debatida de forma séria e multilateral se a
intenção for evitar a repetição de ocorrências semelhantes e não
apenas disputar índices de audiência.
É preciso insistir: tudo que é humano é inseparavelmente individual e
social. Inclusive a loucura
e suas
consequências. O capitalismo contemporâneo incentiva, mais do que
nunca, o individualismo, a competição, a insensibilidade. Exalta os
vencedores e despreza os derrotados. Pode queixar-se de colher os
frutos de seu darwinismo social?
Internem
a Globo?
O locutor
William Bonner anunciou ontem à noite (11/04) em tom dramático pelo
Jornal Nacional, transmitido pela Rede Globo para todo o país, que
o "homem" que assassinou "covardemente" alunas e alunos da escola
carioca Tasso da Silveira mantinha contatos com um grupo "terrorista"
supostamente islâmico, insinuando que esse grupo o poderia ter
influenciado a planejar e executar o ataque sangrento à escola.
Era o que
faltava. A Globo encontrou a linha ideal de investigação policial para
tentar impedir qualquer discussão séria e abrangente sobre as causas
que levaram à tragédia do Realengo e para deslocar as
responsabilidades por essa tragédia da direita para a esquerda do
espectro político. Nada de falar na esquizofrenia do jovem Wellington
de Oliveira, nem na falta de apoio e tratamento que agravou sua
enfermidade. Nada de recordar as perseguições e humilhações que sofreu
quando era aluno da escola atacada. Nada de mencionar as informações
sobre armas e massacres que podem ser acessadas facilmente na
internet. Nada de aludir à cultura de individualismo, competição e
insensibilidade disseminada pelo capitalismo contemporâneo. Nada de
referir-se aos filmes, jogos e exemplos de truculência e crueldade que
vêm dos Estados Unidos e das outras potências imperialistas. A grande
questão passou a ser, para a Globo, os contatos de Wellington com um
alegado grupo "terrorista", que pode nem ser real, mas criado pela
imaginação doentia do jovem.
Acresce que
para os monopólios capitalistas de informação como a Globo a palavra
"terrorismo" abarca tanto os atos de terror propriamente ditos e as
organizações que os praticam quanto à resistência armada de povos
oprimidos, como o palestino. Em contrapartida, para esses monopólios
da informação, Estados, exércitos e partidos como os de Israel e dos
Estados Unidos, que bombardeiam e devastam outros países e assassinam
seletivamente seus líderes, não praticam o terrorismo. Assim, ao
tentar envolver um suposto grupo "terrorista" nos atos tresloucados do
jovem Wellington, a Globo busca comprometer setores que a população
costuma considerar de esquerda no massacre justificadamente repudiado.
No esforço
para montar essa versão tendenciosa, a Globo não se constrangeu sequer
com uma objeção de simples bom senso: por que algum grupo terrorista,
de direita ou de esquerda, teria interesse em insuflar um ataque à
modesta escola municipal de bairro periférico do Rio de Janeiro?
Para
revestir de alguma credibilidade a insinuação, o Jornal Nacional
ouviu o ministro da Justiça que se prestou a declarar que a Polícia
Federal apoiará todas as linhas de investigação da Polícia Civil do
Rio de Janeiro, inclusive a do alegado envolvimento de grupo
"terrorista" com as maquinações do jovem Wellington de Oliveira. O que
não consegue a poderosa Globo?
* Duarte Pacheco Pereira é jornalista,
escritor e ex-dirigente da Ação Popular.
FONTE: Correio da Cidadania