Torturador da ditadura sofre revés no STF
Coronel Brilhante Ustra tenta no STF suspender o processo do qual é
réu pela tortura e assassinato do jornalista Luiz Eduardo Merlino, em
1971
Em tempos em que
se aprova a instalação de uma Comissão da Verdade, que pretende passar
a limpo os anos de 1964 a 1985, uma decisão recente do Supremo
Tribunal Federal (STF) mostrou a confiança que muitos militares
reformados têm na Justiça como caminho seguro para não pagarem pela
violência que cometeram. Nem sempre conseguem, entretanto.
Em 3 de outubro,
o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, conhecido
torturador de militantes de esquerda e chefe do Destacamento de
Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna
(DOI-Codi) de São Paulo entre setembro de 1970 e janeiro de 1974,
recebeu do ministro do STF, Ayres Brito, um preciso “não” a sua
tentativa de utilizar a Lei da Anistia, de 1979, para suspender uma
ação indenizatória por danos morais movida contra ele pelos familiares
do jornalista Luiz Eduardo Merlino, morto em 1971 em decorrência de
torturas sofridas enquanto esteve preso no local.
Em 27 de julho
deste ano, foram ouvidas em São Paulo as testemunhas de acusação, que
confirmaram que Merlino morreu sob tortura e que Ustra participou das
sessões de maus-tratos.
Para se livrar do
processo, a defesa do coronel reformado usou como base jurídica a
decisão do STF, revelada em 29 de abril de 2010, sobre a Lei de
Anistia. A partir da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 153, ajuizada na corte pela OAB (Ordem dos
Advogados do Brasil), cobrava-se do Supremo uma interpretação mais
precisa sobre o preceito de “anistia ampla, geral e irrestrita”, que
resultou no perdão dos que cometeram crimes políticos e conexos no
Brasil entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
O objetivo da
entidade era evitar que o indulto também fosse concedido aos agentes
do Estado que cometeram crimes comuns contra opositores, como
homicídios, desaparecimentos forçado, abuso de autoridade, lesões
corporais, estupro e atentado violento ao pudor. No entendimento da
OAB, crimes políticos seriam apenas os que atentavam contra a
segurança nacional e à ordem política e social, o que não era o caso,
por exemplo, de torturas de indivíduos que já estavam presos e sob o
poder do Exército. Esses seriam, segundo eles, crimes comuns. O
entendimento dos ministros do STF, no entanto, foi o oposto.
Por sete votos a
dois, eles decidiram que a Lei de Anistia valia para todos os casos,
passando assim uma borracha definitiva nas punições de crimes
cometidos por militares e policiais na época da ditadura. Foi com base
nesse argumento que Ustra acreditou que não haveria mais razão para
ser responsabilizado pela morte de Merlino.
Falso argumento
Paulo Esteves e
Salo Kibrit, advogados do coronel, alegaram ao Supremo que a juíza
Amanda Eiko Sato, da 20ª Vara Cível do Fórum Central de São Paulo, e o
desembargador Luiz Antonio Silva Costa, do Tribunal de Justiça de São
Paulo, teriam violado a decisão da corte em relação à interpretação da
ADPF 153 quando negaram a suspensão da ação, requisitada pela defesa.
Esteves e Kibrit
defenderam até mesmo a inexistência do crime. “Se não há crime, não há
como condená-lo ao pagamento de indenização, muito menos declarar que
praticou algum crime naquele período”, afirmaram no pedido.
Para o ministro
Ayres Brito, entretanto, que avaliou o pedido de Ustra de forma
monocrática, ou seja, livre da necessidade de consultar os demais
colegas do Supremo, o entendimento foi outro. “O fundamento utilizado
pelo ministro foi o mesmo que sustentamos em nossa petição. É
justamente o fato de que a Lei da Anistia se voltou exclusivamente
para as questões criminais, ou seja, os crimes cometidos durante a
ditadura, seja de um lado, seja de outro. Não trata de
responsabilidade civil”, explica o advogado dos Merlino, Claudineu de
Melo.
“A Lei de
Anistia, contudo, não trata da responsabilidade civil pelos atos
praticados no chamado ‘período de exceção’. E é certo que a anistia
(...) não implica a imediata exclusão do ilícito civil e sua
consequente repercussão indenizatória”, destacou Brito em sua
relatoria. A decisão foi comemorada pela família. “Nós achamos
excelente o posicionamento do ministro. Nós já sabíamos do seu
posicionamento no julgamento do ano passado da ADPF 153 no STF, quando
ele foi um dos dois ministros que votaram pela não extensão da anistia
aos torturadores”, lembra Ângela Maria Mendes de Almeida,
ex-companheira de Merlino e uma das autoras da ação – o outro voto foi
de Ricardo Lewandowski.
“Enquanto Ustra
era chefe do DOI-Codi em São Paulo, Merlino foi torturado sob a sua
vista e ele pessoalmente participou de algumas sessões de tortura. Em
decorrência dessas torturas, o Merlino veio a falecer. Então estamos
pedindo uma indenização por dano moral pois justamente o Estado, que
teria o dever de protegê-lo, violentou até a morte o preso político”,
complementa Melo.
Na opinião do
vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, Marcelo
Zelic, “esse caso é uma oportunidade de o STF harmonizar a
jurisprudência externa com a jurisprudência interna”, referindo- se ao
acordo firmado pelo Brasil com a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, que exige a investigação séria e a punição aos crimes
cometidos pelo Estado no período, em respeito à jurisdição
internacional sobre o tema.
“No momento em
que um torturador diz que o Supremo tem que lhe dar respaldo, isso só
pode acontecer se o STF romper com o pacto de San José da Costa Rica,
da Convenção Americana de Direitos Humanos. E a única resposta
possível ao cumprimento de uma sentença é o ‘cumpra-se’.
Não existe um
jeitinho brasileiro de dizer que cumpriu sem cumprir”, pontua.
Brasil esconde a
verdade
No documentário
Cidadão Boilesen, de 2009, o diretor Chaim Litewski mostra que o
coronel Carlos Alberto Ustra era próximo de Henning Albert Boilesen,
empresário dinamarquês radicado no Brasil, presidente do grupo
Ultragaz e mentor do esquema de financiamento do empresariado
brasileiro à Operação Bandeirante (Oban), que reprimia, com extrema
violência, os opositores do regime.
Criada em 1969
com a proposta de integrar ações de inteligência, combate e repressão
à esquerda organizada ou não, a Oban, segundo historiadores, foi
também o viveiro para a criação do modus-operandi do DOI-Codi, de cuja
seção paulista Ustra assumiu o comando durante o governo de Emílio
Garrastazu Médici.
Contra o coronel
reformado, pesam mais de 502 denúncias de tortura, incluindo a de
Merlino. Ângela Mendes, que assim como o então companheiro era
militante do Partido Operário Comunista (POC), lembra bem o clima de
terror instalado no Brasil durante um período em que os direitos civis
estiveram completamente suspensos.
Os dois estavam
na França com a tarefa de fazer uma série de contatos políticos quando
decidiram voltar ao Brasil. Ângela conta que a “queda” de Merlino
aconteceu em 15 de julho de 1971, pouco tempo depois de chegar ao país
com seu passaporte legal para preparar as condições para que ela
voltasse com segurança – ele morreu após quatro dias. A militante só
poderia entrar em território brasileiro com outra identidade, pois “já
estava condenada”, como ela própria diz. “Só não aconteceu nada comigo
porque eu não estava no Brasil. Merlino voltou antes para preparar a
minha volta, pois eu já estava clandestina e condenada”, recorda.
Testemunhas
“O que ficou
claro com os depoimentos de testemunhas sobre a morte de Merlino é que
mesmo que Ustra não o tivesse torturado com suas próprias mãos, ele
estava presente quase sempre e indicava se a tortura deveria ser mais
forte ou mais fraca, se deveria continuar ou não”, afi rma Ângela.
A Comissão da
Verdade, projeto do governo que deveria esclarecer crimes como esse e
restabelecer a verdade histórica para o país, corre o risco de falsear
a realidade, como defende parte dos militantes de esquerda daquele
período. Ângela também vê limitações. “Eu faço parte das pessoas que
não estão de acordo com esse projeto. Participo do Comitê Paulista
pela Memória, Verdade e Justiça e acho que, se for aprovado da maneira
que está, é quase um fator negativo”, afirma.
Aprovada pela
Câmara dos Deputados em 21 de setembro e pelo Senado na noite do dia
26, a Comissão da Verdade se propõe a averiguar os crimes contra os
direitos humanos cometidos entre os anos de 1946 e 1988, diluindo a
possibilidade de se investigar apenas o período da ditadura
civil-militar.
Sem poder de
punição, a Comissão ainda pode se deparar com a falta de autonomia
financeira, administrativa e política. Nessas condições, deve
investigar a autoria de crimes como tortura, homicídios,
desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres.
“A Comissão é um
avanço. Agora, o que é lamentável é que tudo foi feito de modo a
dificultar a apuração da verdade. Para averiguar todo esse período
[1946-1988], a lei fixa um prazo de dois anos. Outra inconveniência é
o problema do sigilo. Os militares que forem eventualmente ouvidos
poderão alegar a questão do sigilo. Há tanto a impossibilidade de
apurar quanto tornar público fatos que ocorreram”, argumenta Claudineu
de Melo.
Fonte: Brasil de
Fato, Aline Scarso, 10/11/11.