“O socialismo é uma doutrina triunfante”
Aos 93 anos, Antonio Candido explica a sua concepção de
socialismo, fala sobre literatura e revela não se interessar por
novas obras.
Crítico literário, professor, sociólogo, militante. Um adjetivo
sozinho não consegue definir a importância de Antonio Candido para
o Brasil. Considerado um dos principais intelectuais do país, ele
mantém a postura socialista, a cordialidade, a elegância, o senso
de humor, o otimismo.
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Antes de começar nossa entrevista, ele diz que viveu praticamente todo
o conturbado século 20. E participou ativamente dele, escrevendo,
debatendo, indo a manifestações, ajudando a dar lucidez, clareza e
humanidade a toda uma geração de alunos, militantes sociais, leitores
e escritores.
Tão bom de prosa como de escrita, ele fala sobre seu método de análise
literária, dos livros de que gosta, da sua infância, do começo da sua
militância, da televisão, do MST, da sua crença profunda no socialismo
como uma doutrina triunfante. “O que se pensa que é a face humana do
capitalismo é o que o socialismo arrancou dele”, afirma.
Brasil de Fato – Nos seus textos é perceptível a intenção de ser
entendido. Apesar de muito erudito, sua escrita é simples. Por que
esse esforço de ser sempre claro?
Antonio Candido –
Acho que a clareza é um respeito pelo próximo, um respeito pelo
leitor. Sempre achei, eu e alguns colegas, que, quando se trata de
ciências humanas, apesar de serem chamadas de ciências, são ligadas à
nossa humanidade, de maneira que não deve haver jargão científico.
Posso dizer o que tenho para dizer nas humanidades com a linguagem
comum. Já no estudo das ciências humanas eu preconizava isso. Qualquer
atividade que não seja estritamente técnica, acho que a clareza é
necessária inclusive para pode divulgar a mensagem, a mensagem deixar
de ser um privilégio e se tornar um bem comum.
O seu método de análise da literatura parte da cultura para a
realidade social e volta para a cultura e para o texto. Como o senhor
explicaria esse método?
Uma coisa que sempre me preocupou muito é que os teóricos da
literatura dizem: é preciso fazer isso, mas não fazem. Tenho muita
influência marxista – não me considero marxista – mas tenho muita
influência marxista na minha formação e também muita influência da
chamada escola sociológica francesa, que geralmente era formada por
socialistas. Parti do seguinte princípio: quero aproveitar meu
conhecimento sociológico para ver como isso poderia contribuir para
conhecer o íntimo de uma obra literária. No começo eu era um pouco
sectário, politizava um pouco demais minha atividade. Depois entrei em
contato com um movimento literário norte-americano, a nova crítica,
conhecido como new criticism. E aí foi um ovo de colombo: a obra de
arte pode depender do que for, da personalidade do autor, da classe
social dele, da situação econômica, do momento histórico, mas quando
ela é realizada, ela é ela. Ela tem sua própria individualidade. Então
a primeira coisa que é preciso fazer é estudar a própria obra. Isso
ficou na minha cabeça. Mas eu também não queria abrir mão, dada a
minha formação, do social. Importante então é o seguinte: reconhecer
que a obra é autônoma, mas que foi formada por coisas que vieram de
fora dela, por influências da sociedade, da ideologia do tempo, do
autor. Não é dizer: a sociedade é assim, portanto a obra é assim. O
importante é: quais são os elementos da realidade social que se
transformaram em estrutura estética. Me dediquei muito a isso, tenho
um livro chamado “Literatura e sociedade” que analisa isso. Fiz um
esforço grande para respeitar a realidade estética da obra e sua
ligação com a realidade. Há certas obras em que não faz sentido
pesquisar o vínculo social porque ela é pura estrutura verbal. Há
outras em que o social é tão presente – como “O cortiço” [de Aluísio
Azevedo] – que é impossível analisar a obra sem a carga social. Depois
de mais maduro minha conclusão foi muito óbvia: o crítico tem que
proceder conforme a natureza de cada obra que ele analisa. Há obras
que pedem um método psicológico, eu uso; outras pedem estudo do
vocabulário, a classe social do autor; uso. Talvez eu seja aquilo que
os marxistas xingam muito que é ser eclético. Talvez eu seja um pouco
eclético, confesso. Isso me permite tratar de um número muito variado
de obras.
Teria um tipo de abordagem estética que seria melhor?
Não privilegio. Já privilegiei. Primeiro o social, cheguei a
privilegiar mesmo o político. Quando eu era um jovem crítico eu queria
que meus artigos demonstrassem que era um socialista escrevendo com
posição crítica frente à sociedade. Depois vi que havia poemas, por
exemplo, em que não podia fazer isso. Então passei a outra fase em que
passei a priorizar a autonomia da obra, os valores estéticos. Depois
vi que depende da obra. Mas tenho muito interesse pelo estudo das
obras que permitem uma abordagem ao mesmo tempo interna e externa. A
minha fórmula é a seguinte: estou interessado em saber como o externo
se transformou em interno, como aquilo que é carne de vaca vira
croquete. O croquete não é vaca, mas sem a vaca o croquete não existe.
Mas o croquete não tem nada a ver com a vaca, só a carne. Mas o
externo se transformou em algo que é interno. Aí tenho que estudar o
croquete, dizer de onde ele veio.
O que é mais importante ler na literatura brasileira?
Machado de Assis. Ele é um escritor completo.
É o que senhor mais gosta?
Não, mas acho que é o que mais se aproveita.
E de qual o senhor mais gosta?
Gosto muito do Eça de Queiroz, muitos estrangeiros. De brasileiros,
gosto muito de Graciliano Ramos... Acho que já li “São Bernardo” umas
20 vezes, com mentira e tudo. Leio o Graciliano muito, sempre. Mas
Machado de Assis é um autor extraordinário. Comecei a ler com 9 anos
livros de adulto. E ninguém sabia quem era Machado de Assis, só o
Brasil e, mesmo assim, nem todo mundo. Mas hoje ele está ficando um
autor universal. Ele tinha a prova do grande escritor. Quando se
escreve um livro, ele é traduzido, e uma crítica fala que a tradução
estragou a obra, é porque não era uma grande obra. Machado de Assis,
mesmo mal traduzido, continua grande. A prova de um bom escritor é que
mesmo mal traduzido ele é grande. Se dizem: “a tradução matou a obra”,
então a obra era boa, mas não era grande.
Como levar a grande literatura para quem não está habituado com a
leitura?
É perfeitamente possível, sobretudo Machado de Assis. A Maria Vitória
Benevides me contou de uma pesquisa que foi feita na Itália há uns 30
anos. Aqueles magnatas italianos, com uma visão já avançada do
capitalismo, decidiram diminuir as horas de trabalho para que os
trabalhadores pudessem ter cursos, se dedicar à cultura. Então
perguntaram: cursos de que vocês querem? Pensaram que iam pedir cursos
técnicos, e eles pediram curso de italiano para poder ler bem os
clássicos. “A divina comédia” é um livro com 100 cantos, cada canto
com dezenas de estrofes. Na Itália, não sou capaz de repetir direito,
mas algo como 200 mil pessoas sabem a primeira parte inteira, 50 mil
sabem a segunda, e de 3 a 4 mil pessoas sabem o livro inteiro de cor.
Quer dizer, o povo tem direito à literatura e entende a literatura. O
doutor Agostinho da Silva, um escritor português anarquista que ficou
muito tempo no Brasil, explicava para os operários os diálogos de
Platão, e eles adoravam. Tem que saber explicar, usar a linguagem
normal.
O senhor acha que o brasileiro gosta de ler?
Não sei. O Brasil pra mim é um mistério. Tem editora para toda parte,
tem livro para todo lado. Vi uma reportagem que dizia que a cidade de
Buenos Aires tem mais livrarias que em todo o Brasil. Lê-se muito
pouco no Brasil. Parece que o povo que lê mais é o finlandês, que lê
30 volumes por ano. Agora dizem que o livro vai acabar, né?
O senhor acha que vai?
Não sei. Eu não tenho nem computador... as pessoas me perguntam: qual
é o seu... como chama?
E-mail?
Isso! Olha, eu parei no telefone e máquina de escrever. Não entendo
dessas coisas... Estou afastado de todas as novidades há cerca de 30
anos. Não me interesso por literatura atual. Sou um velho caturra. Já
doei quase toda minha biblioteca, 14 ou 15 mil volumes. O que tem aqui
é livro para visita ver. Mas pretendo dar tudo. Não vendo livro, eu
dou. Sempre fiz escola pública, inclusive universidade pública, então
é o que posso dar para devolver um pouco. Tenho impressão que a
literatura brasileira está fraca, mas isso todo velho acha. Meus
antigos alunos que me visitam muito dizem que está fraca no Brasil, na
Inglaterra, na França, na Rússia, nos Estados Unidos... que a
literatura está por baixo hoje em dia. Mas eu não me interesso por
novidades.
E o que o senhor lê hoje em dia?
Eu releio. História, um pouco de política... mesmo meus livros de
socialismo eu dei tudo. Agora estou querendo reler alguns mestres
socialistas, sobretudo Eduard Bernstein, aquele que os comunistas
tinham ódio. Ele era marxista, mas dizia que o marxismo tem um
defeito, achar que a gente pode chegar no paraíso terrestre. Então ele
partiu da ideia do filósofo Immanuel Kant da finalidade sem fim. O
socialismo é uma finalidade sem fim. Você tem que agir todos os dias
como se fosse possível chegar no paraíso, mas você não chegará. Mas se
não fizer essa luta, você cai no inferno.
O senhor é socialista?
Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho que o socialismo é uma
doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o
socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na
revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo.
Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de
madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí
começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as
tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e
ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo,
socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social,
cooperativismo... tudo isso. Esse pessoal começou a lutar, para o
operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que
doze horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a
mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem
férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são banais.
Conversando com um antigo aluno meu, que é um rapaz rico, industrial,
ele disse: “o senhor não pode negar que o capitalismo tem uma face
humana”. O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é
baseado na mais-valia e no exército de reserva, como Marx definiu. É
preciso ter sempre miseráveis para tirar o excesso que o capital
precisar. E a mais-valia não tem limite. Marx diz na “Ideologia
Alemã”: as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis.
Quando você anda descalço, você anda descalço. Quando você descobre a
sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre o sapato, não
quer mais a sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com meia e
por aí não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se
pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou
dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar
oito horas, ter férias... tudo é conquista do socialismo. O socialismo
só não deu certo na Rússia.
Por quê?
Virou capitalismo. A revolução russa serviu para formar o capitalismo.
O socialismo deu certo onde não foi ao poder. O socialismo hoje está
infiltrado em todo lugar.
O socialismo como luta dos trabalhadores?
O socialismo como caminho para a igualdade. Não é a luta, é por causa
da luta. O grau de igualdade de hoje foi obtido pelas lutas do
socialismo. Portanto ele é uma doutrina triunfante. Os países que
passaram pela etapa das revoluções burguesas têm o nível de vida do
trabalhador que o socialismo lutou para ter, o que quer. Não vou dizer
que países como França e Alemanha são socialistas, mas têm um nível de
vida melhor para o trabalhador.
Para o senhor é possível o socialismo existir triunfando sobre o
capitalismo?
Estou pensando mais na técnica de esponja. Se daqui a 50 anos no
Brasil não houver diferença maior que dez do maior ao menor salário,
se todos tiverem escola... não importa que seja com a monarquia, pode
ser o regime com o nome que for, não precisa ser o socialismo! Digo
que o socialismo é uma doutrina triunfante porque suas reivindicações
estão sendo cada vez mais adotadas. Não tenho cabeça teórica, não sei
como resolver essa questão: o socialismo foi extraordinário para
pensar a distribuição econômica, mas não foi tão eficiente para
efetivamente fazer a produção. O capitalismo foi mais eficiente,
porque tem o lucro. Quando se suprime o lucro, a coisa fica mais
complicada. É preciso conciliar a ambição econômica – que o homem
civilizado tem, assim como tem ambição de sexo, de alimentação, tem
ambição de possuir bens materiais – com a igualdade. Quem pode
resolver melhor essa equação é o socialismo, disso não tenho a menor
dúvida. Acho que o mundo marcha para o socialismo. Não o socialismo
acadêmico típico, a gente não sabe o que vai ser... o que é o
socialismo? É o máximo de igualdade econômica. Por exemplo, sou um
professor aposentado da Universidade de São Paulo e ganho muito bem,
ganho provavelmente 50, 100 vezes mais que um trabalhador rural. Isso
não pode. No dia em que, no Brasil, o trabalhador de enxada ganhar
apenas 10 ou 15 vezes menos que o banqueiro, está bom, é o
socialismo.
O que o socialismo conseguiu no mundo de avanços?
O socialismo é o cavalo de Troia dentro do capitalismo. Se você tira
os rótulos e vê as realidades, vê como o socialismo humanizou o mundo.
Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do socialismo. Cuba é uma
coisa formidável, o mais próximo da justiça social. Não a Rússia, a
China, o Camboja. No comunismo tem muito fanatismo, enquanto o
socialismo democrático é moderado, é humano. E não há verdade final
fora da moderação, isso Aristóteles já dizia, a verdade está no meio.
Quando eu era militante do PT – deixei de ser militante em 2002,
quando o Lula foi eleito – era da ala do Lula, da Articulação, mas só
votava nos candidatos da extrema esquerda, para cutucar o centro. É
preciso ter esquerda e direita para formar a média. Estou convencido
disso: o socialismo é a grande visão do homem, que não foi ainda
superada, de tratar o homem realmente como ser humano. Podem dizer: a
religião faz isso. Mas faz isso para o que são adeptos dela, o
socialismo faz isso para todos. O socialismo funciona como esponja:
hoje o capitalismo está embebido de socialismo. No tempo que meu irmão
Roberto – que era católico de esquerda – começou a trabalhar, eu era
moço, ele era tido como comunista, por dizer que no Brasil tinha
miséria. Dizer isso era ser comunista, não estou falando em metáforas.
Hoje, a Federação das Indústrias, Paulo Maluf, eles dizem que a
miséria é intolerável. O socialismo está andando... não com o nome,
mas aquilo que o socialismo quer, a igualdade, está andando. Não
aquela igualdade que alguns socialistas e os anarquistas pregavam,
igualdade absoluta é impossível. Os homens são muito diferentes, há
uma certa justiça em remunerar mais aquele que serve mais à
comunidade. Mas a desigualdade tem que ser mínima, não máxima. Sou
muito otimista. (pausa). O Brasil é um país pobre, mas há uma certa
tendência igualitária no brasileiro – apesar da escravidão - e isso é
bom. Tive uma sorte muito grande, fui criado numa cidade pequena, em
Minas Gerais, não tinha nem 5 mil habitantes quando eu morava lá. Numa
cidade assim, todo mundo é parente. Meu bisavô era proprietário de
terras, mas a terra foi sendo dividida entre os filhos... então na
minha cidade o barbeiro era meu parente, o chofer de praça era meu
parente, até uma prostituta, que foi uma moça deflorada expulsa de
casa, era minha prima. Então me acostumei a ser igual a todo mundo.
Fui criado com os antigos escravos do meu avô. Quando eu tinha 10 anos
de idade, toda pessoa com mais de 40 anos tinha sido escrava. Conheci
inclusive uma escrava, tia Vitória, que liderou uma rebelião contra o
senhor. Não tenho senso de desigualdade social. Digo sempre, tenho
temperamento conservador. Tenho temperamento conservador, atitudes
liberais e ideias socialistas. Minha grande sorte foi não ter nascido
em família nem importante nem rica, senão ia ser um reacionário.
(risos).
A Teresina, que inspirou um livro com seu nome, o senhor conheceu
depois?
Conheci em Poços de Caldas... essa era uma mulher extraordinária, uma
anarquista, maior amiga da minha mãe. Tenho um livrinho sobre ela. Uma
mulher formidável. Mas eu me politizei muito tarde, com 23, 24 anos de
idade com o Paulo Emílio. Ele dizia: “é melhor ser fascista do que não
ter ideologia”. Ele que me levou para a militância. Ele dizia com
razão: cada geração tem o seu dever. O nosso dever era político.
E o dever da atual geração?
Ter saudade. Vocês pegaram um rabo de foguete danado.
No seu livro “Os parceiros do Rio Bonito” o senhor diz que é
importante defender a reforma agrária não apenas por motivos
econômicos, mas culturalmente. O que o senhor acha disso hoje?
Isso é uma coisa muito bonita do MST. No movimento das Ligas
Camponesas não havia essa preocupação cultural, era mais econômica.
Acho bonito isso que o MST faz: formar em curso superior quem trabalha
na enxada. Essa preocupação cultural do MST já é um avanço
extraordinário no caminho do socialismo. É preciso cultura. Não é só o
livro, é conhecimento, informação, notícia... Minha tese de doutorado
em ciências sociais foi sobre o camponês pobre de São Paulo – aquele
que precisa arrendar terra, o parceiro. Em 1948, estava fazendo minha
pesquisa num bairro rural de Bofete e tinha um informante muito bom,
Nhô Samuel Antônio de Camargos. Ele dizia que tinha mais de 90 anos,
mas não sabia quantos. Um dia ele me perguntou: “ô seu Antonio, o
imperador vai indo bem? Não é mais aquele de barba branca, né?”. Eu
disse pra ele: “não, agora é outro chamado Eurico Gaspar Dutra”. Quer
dizer, ele está fora da cultura, para ele o imperador existe. Ele não
sabe ler, não sabe escrever, não lê jornal. A humanização moderna
depende da comunicação em grande parte. No dia em que o trabalhador
tem o rádio em casa ele é outra pessoa. O problema é que os meios
modernos de comunicação são muito venenosos. A televisão é uma praga.
Eu adoro, hein? Moro sozinho, sozinho, sou viúvo e assisto televisão.
Mas é uma praga. A coisa mais pérfida do capitalismo – por causa da
necessidade cumulativa irreversível – é a sociedade de consumo. Marx
não conheceu, não sei como ele veria. A televisão faz um inculcamento
sublimar de dez em dez minutos, na cabeça de todos – na sua, na minha,
do Sílvio Santos, do dono do Bradesco, do pobre diabo que não tem o
que comer – imagens de whisky, automóvel, casa, roupa, viagem à Europa
– cria necessidades. E claro que não dá condições para concretizá-las.
A sociedade de consumo está criando necessidades artificiais e está
levando os que não têm ao desespero, à droga, miséria... Esse desejo
da coisa nova é uma coisa poderosa. O capitalismo descobriu isso
graças ao Henry Ford. O Ford tirou o automóvel da granfinagem e fez
carro popular, vendia a 500 dólares. Estados Unidos inteiro começou a
comprar automóvel, e o Ford foi ficando milionário. De repente o carro
não vendia mais. Ele ficou desesperado, chamou os economistas, que
estudaram e disseram: “mas é claro que não vende, o carro não acaba”.
O produto industrial não pode ser eterno. O produto artesanal é feito
para durar, mas o industrial não, ele tem que ser feito para acabar,
essa é coisa mais diabólica do capitalismo. E o Ford entendeu isso,
passou a mudar o modelo do carro a cada ano. Em um regime que fosse
mais socialista seria preciso encontrar uma maneira de não falir as
empresas, mas tornar os produtos duráveis, acabar com essa loucura da
renovação. Hoje um automóvel é feito para acabar, a moda é feita para
mudar. Essa ideia tem como miragem o lucro infinito. Enquanto a
verdadeira miragem não é a do lucro infinito, é do bem-estar
infinito.
<QUEM É>
Antonio Candido de Mello e Souza
nasceu no Rio de Janeiro em 24 de julho de 1918, concluiu seus estudos
secundários em Poços de Caldas (MG) e ingressou na recém-fundada
Universidade de São Paulo em 1937, no curso de Ciências Sociais. Com
os amigos Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e outros
fundou a revista Clima. Com Gilda de Mello e Souza, colega de
revista e do intenso ambiente de debates sobre a cultura, foi casado
por 60 anos. Defendeu sua tese de doutorado, publicada depois como o
livro “Os Parceiros do Rio Bonito”, em 1954. De 1958 a 1960 foi
professor de literatura na Faculdade de Filosofia de Assis. Em 1961,
passou a dar aulas de teoria literária e literatura comparada na USP,
onde foi professor e orientou trabalhos até se aposentar, em 1992. Na
década de 1940, militou no Partido Socialista Brasileiro, fazendo
oposição à ditadura Vargas. Em 1980, foi um dos fundadores do Partido
dos Trabalhadores. Colaborou nos jornais Folha da Manhã e
Diário de São Paulo, resenhando obras literárias. É autor de
inúmeros livros, atualmente reeditados pela editora Ouro sobre Azul,
coordenada por sua filha, Ana Luisa Escorel.
Fonte: Publicado originalmente na edição 435 do Brasil de Fato.
Por Joana Tavares da Redação