Sentença da OEA contra Brasil completa um ano sem ser cumprida
O Estado
brasileiro deu resposta a 2 dos 11 pontos exigidos pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos
O Brasil completa
no próximo dia 14 de dezembro um ano em débito com a Organização dos
Estados Americanos (OEA). A Corte Interamericana de Direitos Humanos
anunciou naquela data a condenação do Estado brasileiro no caso Gomes
Lund, sobre o episódio da ditadura (1964-85) conhecido como Guerrilha
do Araguaia (1972-1975). Transcorridos 12 meses, o relatório a ser
apresentado não será lisonjeiro para a imagem do país.
“Francamente a
gente não viu nada realizado”, queixa-se Elizabeth Silveira e Silva,
vice-presidenta do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, uma das
organizações que acionaram a OEA. Ela é irmã de Luiz René Silveira e
Silva, desaparecido desde 1974 e morto pela repressão na região do
Araguaia em circunstâncias nunca esclarecidas. “Há apenas uma coisa
midiática que não resulta em nada de concreto. Eu, enquanto familiar,
não me sinto contemplada.”
A Corte
Interamericana condenou o Brasil por não esclarecer os fatos, não
prestar a reparação dos parentes de vítimas nem punir os responsáveis
pela repressão. A sentença se resume a 11 pontos, dos quais dois foram
cumpridos diretamente (confira abaixo). A publicação da sentença em
veículo de grande circulação – no caso, o diário O Globo – foi feita
com alguns dias de atraso em relação ao determinado. A outra questão,
a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas,
formulada em 1994 e apresentada ao Legislativo em 2008, concluiu a
tramitação em abril deste ano, embora ainda reste a elaboração de uma
legislação nacional sobre o assunto. Há ainda duas leis indiretas
recentemente sancionadas pela presidenta Dilma Rousseff: a Comissão
Nacional da Verdade e a Lei de Acesso a Informações Públicas.
A Secretaria de
Direitos Humanos manifestou, em nota, que considera que o Brasil tem
avançado no tema. “É preciso ter claro que o caso Gomes Lund envolve
todo o Estado brasileiro, incluindo os poderes Legislativo, Judiciário
e Legislativo, além de instâncias da sociedade civil e de familiares e
vítimas da ditadura.”
Beatriz Affonso,
diretora do Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil), não vê
ritmo adequado na execução da sentença. A organização também está
entre os peticionários da ação, que contou ainda com a participação da
Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. “Tem um
discurso presente em todas as autoridades de que o Estado vai cumprir.
A ministra de Direitos Humanos diz que vai cumprir, o Itamaraty diz
que vai cumprir, o Ministério da Defesa diz que vai cumprir”, diz a
integrante do Cejil. “Recorta-se a sentença como se ela não fosse uma
coisa única, como se fosse possível cumprir só alguns pedaços.”
Decisão esperada,
reação intempestiva
A condenação da
Corte era dada como certa, dentro e fora do governo, desde que o
Supremo Tribunal Federal (STF) decidira, oito meses antes, em abril de
2010, interpretar a Lei de Anistia como instrumento válido para deixar
de punir os colaboradores do regime autoritário. Na ocasião, por sete
votos a dois, os ministros seguiram o entendimento do relator, Eros
Grau, de que o processo de anistiamento havia sido conduzido com base
em um amplo acordo da sociedade – o Congresso, sob intervenção do
Executivo, aprovou a lei em 1979, seis anos antes do fim do período de
exceção.
Ministro da
Secretaria de Direitos Humanos no segundo governo Lula, Paulo Vannuchi
admite que esperava um voto misto de Grau, que ponderasse os dois
lados. “Não há acordo político entre o detentor da faca e o detentor
do pescoço”, lamenta. Hoje de volta ao cargo de assessor político do
Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Vannuchi diz que tentou antecipar,
dentro do governo, o cumprimento daquilo que seguramente seria exigido
pela OEA, mas acabou como voto vencido.
No dia seguinte
ao conhecimento da sentença, o então ministro da Defesa, Nelson Jobim,
cuja atuação no cargo ficou marcada por ter operado como porta-voz de
setores conservadores das Forças Armadas, externou sua visão de que a
condenação não produzia efeitos jurídicos e que o ponto de vista
válido a se considerar seria o do STF. Flávia Piovesan, professora de
Direitos Humanos e Direito Constitucional da Pontífice Universidada
Católica de São Paulo (PUC-SP), lembra que as convenções
internacionais são firmadas de livre vontade pelas nações e que o
Supremo tem o dever de zelar pela implementação dos tratados e da
jurisprudência internacional. “Quando o Estado brasileiro ratifica um
tratado de direitos humanos, não é só o Executivo que deve cumpri-lo
de boa fé, mas o Judiciário, o Legislativo, o Estado como um todo”,
pontua.
O Brasil
ratificou em 1992 a Convenção Americana de Direitos Humanos, o que
significa que o país se submete às decisões proferidas pelo sistema
interamericano, encabeçado pela Corte. “A sentença da Corte será
definitiva e inapelável”, reza a carta regional, que prevê ainda que o
órgão poderá esclarecer sua interpretação sobre uma sentença desde que
isso seja solicitado por uma das partes em até 90 dias após a
notificação, o que não ocorreu. “Jobim não ofendeu, mas considerar
irrelevante é um absurdo jurídico que não é adequado a um ex-ministro
da Justiça, da Defesa, e ex-ministro do Supremo”, diz Vannuchi.
As exigências da
Corte Interamericana ao Estado brasileiro
1. Conduzir a
investigação e determinar as responsabilidades penais
2. Realizar todos
os esforços para determinar o paradeiro dos desaparecidos
3. Oferecer
tratamento médico e psicológico às vítimas que o requeiram
4. Realizar a
publicação da sentença em veículo de grande circulação e em página
oficial do Estado na internet
5. Realizar ato
público de reconhecimento da responsabilidade internacional do país
6. Implementar
programa obrigatório de treinamento em direitos humanos nas Forças
Armadas
7. Tipificar o
desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com parâmetros da
OEA
8. Continuar
iniciativas de busca, sistematização e publicação de informações sobre
a Guerrilha do Araguaia, especificamente, e da ditadura como um todo
9. Pagar
indenização material nos termos definidos pela Corte
10. Convocar os
parentes para que, dentro de seis meses, apresentem prova suficiente
que lhes permita a identificação como tais
11. Que as
famílias de Francisco Manoel Chaves, Pedro Matias de Oliveira, Hélio
Luiz Navarro de Magalhães e Pedro Alexandrino de Oliveira Filho possam
apresentar pedido de indenização
Fonte: Brasil de
Fato, 9/12/11.