“Processos revolucionários no mundo árabe questionam regimes políticos
e abalam conjunto das relações internacionais”, diz Coggiola
Oswaldo Coggiola |
Disponibilizamos a entrevista concedida por Oswaldo Coggiola, professor
do departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) e 3º
vice-presidente do ANDES-SN, durante o 30º Congresso do Sindicato
Nacional, em Uberlândia (MG).
Na
entrevista, ele analisa os últimos acontecimentos que têm transformado a
correlação de forças política no mundo árabe, e explica as razões pelas
quais tais eventos podem ser entendidos como revoluções.
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Primeiro foi a
Tunísia e, agora, o Egito. Nós podemos dizer que há uma revolução em curso
no mundo árabe?
Oswaldo
Coggiola -
Sim, e são processos revolucionários no sentido amplo da palavra, porque
questionam os regimes políticos internos e porque abalam o conjunto das
relações internacionais. Tunísia e Egito eram duas verdadeiras
cleptocracias. No caso de Ben Ali, a fortuna de sua família, obviamente toda
ela depositada no exterior, está calculada em U$S 18 bilhões, que é quase
exatamente o valor da dívida externa do país. No caso do Egito é pior ainda.
A fortuna da família Mubarak está calculada em US$ 70 bilhões. Essas
fortunas são o preço que esses governantes cobraram para sustentar por tanto
tempo esses regimes que agradavam ao ocidente. E, neste momento, há um
esforço concentrado para preservar os regimes políticos, a despeito da saída
dos governantes, para preservar, principalmente, a aliança entre o Egito e o
Estado de Israel, porque assim se preserva o papel de polícia que Israel
exerce na região, já que é o único país que possui arsenal atômico nesta
região do planeta. O próprio exército que assumiu o Egito já declarou que a
aliança com Israel será mantida. O principal líder da oposição, o prêmio
Nobel da Paz, Muhammad Al-Baradai, também declarou, e com isso fundamentou
sua candidatura, que estaria disposto a preservar o acordo com Israel.
Mas a
população que tomou as ruas da Tunísia e do Egito queria apenas tirar os
dirigentes ou queria também uma mudança de regime?
Oswaldo
Coggiola -
O que unificava a população era a luta pela saída de Ben Ali e Mubarak.
Agora que eles caíram, começam a aparecer as contradições do momento. Alguns
querem parar a revolução aí, e por enquanto esses são majoritários, e há
setores em crescimento que pretendem ir mais longe, que querem não apenas
tirar os ditadores do seus postos, mas também julgá-los e reaver o que eles
roubaram. E também julgar seus regimes políticos. Este processo está bem
mais adiantado na Tunísia, porque o governo que sucedeu Ben Ali conta com
membros do seu próprio governo. Isso já provocou algumas reviravoltas
políticas. Por exemplo, a central sindical tunisiana, a UGTT, havia
designado três ministros para o governo de transição, mas a pressão das
bases foi tamanha que eles tiveram que retirar esses ministros do governo,
que era denunciado pelas bases como continuidade. Isso significa que se
abriu uma luta política interna na revolução. É como o que ocorreu na Rússia
de 1917. No primeiro momento, todos estavam unidos para derrubar o czar. Mas
depois apareceu uma divisão no interior do movimento e houve uma luta
política que todos sabem como acabou. E a comparação também para por aqui,
porque na Rússia de 1917 se tinha, em primeiro lugar, uma guerra mundial.
E existe o
risco de que as revoluções no mundo árabe acabem provocando uma nova guerra
mundial?
Oswaldo
Coggiola -
Sim, porque a região é o centro nevrálgico do problema das relações
internacionais. Israel detém armas atômicas e já declarou que pode usar
essas armas contra o Irã. Israel pode, por exemplo, usar estas armas contra
o Irã para condicionar o fim das revoluções nos países árabes. O Irã não é
um país árabe, mas é um país muçulmano. Nos países árabes prevalece o
islamismo sunita. Na Rússia de 1917 havia os chamados Sovietes, havia um
grau elevado de organização popular, de organização operária, com
independência. E no Egito e na Tunísia não está claro que isso está
acontecendo. Nós sabemos que há organizações estudantis e operárias mas,
daqui, de longe, é difícil avaliar o grau de desenvolvimento. Então, é uma
situação que abala todas as relações internacionais e que vai se decidir
através da luta política interna dentro desse processo revolucionário. Esse
é o fator essencial, sendo que existem dois fatores que condicionam todo o
processo de mobilização dos povos árabes: de um lado, a luta pela causa
palestina contra o Estado de Israel, porque, se Israel mantiver seu papel de
polícia com a ameaça atômica que ele representa, isso vai condicionar todos
esses processos. Quer dizer, a pressão de Israel pode limitar esses
processos. O segundo fator, diretamente vinculado ao primeiro, é a ameaça de
Israel, e também dos Estados Unidos, contra o Irã, que é hoje o principal
foco de tensão que pode vir a resultar em um conflito militar. Essas
questões já existiam, claro, mas se colocam atualmente em um patamar
diferente, porque elas se condicionavam à neutralidade dos países árabes e
esta neutralidade pode deixar de ocorrer em função das mobilizações e dos
processos revolucionários.
Nos processos
revolucionários em curso, qual é o peso da questão econômica e também das
lutas pelas liberdades individuais, questão de gênero, e questão religiosa?
Oswaldo
Coggiola -
Todo processo revolucionário abala todas as esferas da vida. Em primeiro
lugar, esse processo revolucionário se enquadra dentro da crise capitalista
mundial, que já tinha provocado algumas manifestações pelo mundo, em
especial na Grécia, na Irlanda, na Espanha, e até greves na China. Mas sem
desmerecer essas manifestações, o que está acontecendo nos países árabes é
qualitativamente mais importante, porque não se trata apenas de mobilizações
de resistência, mas de uma situação em que o povo tomou uma ofensiva contra
os governos. O que ocorreu no Egito, na Tunísia, e que deverá ocorrer como
efeito dominó na Argélia, significa uma ameaça a própria existência dos
governos. O estopim das mobilizações foi a crise econômica mundial. Afinal,
foi a necessidade que provocou a imolação por fogo de um jovem na Tunísia.
Há desemprego em massa nesses países. Nos países árabes (Argélia, Tunísia,
Mauritânia, Marrocos etc), a grande saída para o desemprego foi sempre a
migração para a Europa. Só que, atualmente, na Europa não há mais emprego
nenhum. Nem na economia informal, nem no mercado negro. Isso resultou na
revolução. A questão econômica foi o estopim. Mas a partir do estopim,
revelou-se as outras situações de opressão política, com as ditaduras, de
corrupção, de todas as ordens, da discussão sobre o papel do exército na
sociedade. Depois do de Israel, o exercito Egípcio é o que recebe mais
subsídios dos Estados Unidos, US$ 1,5 bilhão. E também são questionadas as
relações de gênero em países que historicamente destinam à mulher um papel
secundário, a obrigam a usar determinado tipo de roupa, e o próprio papel da
religião na sociedade, porque essa opressão sobre as mulheres, por exemplo,
está prescrita na fundamentação religiosa. Nas imagens da revolução
tunisiana, nós vemos mulheres vestidas à maneira islâmica, mas também com
camisas, calças etc.. com véus, com roupas islâmicas, embora na Tunísia
esse comportamento já fosse normal antes da revolução.
Agora, temos o
representante dos EUA que quer que a Irmandade Muçulmana entre no governo,
no processo de transição. Curiosamente, os EUA, depois de ter ameaçado o
mundo com o fantasma do terrorismo islâmico, agora talvez se veja obrigado a
entrar em acordo com os islâmicos para que eles próprios exerçam o papel de
opressores na região. Não é apenas a religião islâmica, mas todas as
religiões exercem o papel de freio nos processos revolucionários. Mas também
temos em todos esses países, assim como temos uma Teologia da Libertação na
América Latina, uma interpretação revolucionária do islamismo. Ou seja, o
próprio islamismo, que já tem a vantagem de não ter um papa, uma autoridade
superior reconhecida, e por isso, ser uma religião bem mais democrática do
que a católica. Mas o próprio islamismo exercerá papel importante no campo
de batalha. A Irmandade Muçulmana exerce papel bem moderado, mas há outras,
e há também partidos de esquerda, porque esses países não entraram agora na
história. Tem uma longa historia nas costas. Curiosamente, os partidos que
estavam no poder na Tunísia e no Egito eram filiados à Internacional
Socialista. E apenas no dia 18 de janeiro, quando a revolução já estava em
andamento, quando Ben Ali já havia sido posto para fora do poder, é que a
Internacional Socialista tomou a medida elementar de colocar o partido dele
para fora. Somente quatro dias depois da queda do governo. E está
acontecendo a mesma coisa com o partido democrático do Egito. E não há
apenas um partido comunista nessa região, são vários. São países que não têm
apenas tradição islâmica, como se costuma pensar, mas têm tradição laica,
cultural, intelectual... no Egito temos Prêmio Nobel de Literatura...
Quais as
relações entre essas revoluções e as lutas que os trabalhadores brasileiros
irão enfrentar no período?
Oswaldo
Coggiola -
Em primeiro lugar é preciso chamar a atenção dos trabalhadores brasileiros
sobre o que está acontecendo nos países árabes, porque a tradição
internacionalista não é forte nesses países. É preciso chamar a atenção de
que esses trabalhadores árabes estão lutando contra os mesmos opressores da
América Latina: os EUA. Em segundo lugar, há dois elementos que devem ser
levados em conta: o que está caindo nos países árabes não são simplesmente
ditaduras, não são ditaduras militares como as que já ocorreram na América
Latina. Mubarak e Ben Ali foram eleitos democraticamente com altos índices
de aprovação popular. São regimes de forte teor nacionalista. No Egito, o
nacionalismo nasce com Nasser que era muito mais radical, por exemplo, do
que Chávez. Nasser nacionalizou toda a economia do Egito. Perto dele, Chávez
é um amador, porque não nacionalizou grande coisa. E quando nacionalizou,
pagou por isso. Nasser fez guerra. Chávez só ameaçou os EUA.
Então, os regimes
nacionalistas de cunho personalista podem até começar muito radicalizados,
como aconteceu também aqui na América Latina, mas quando derivam para uma
ditadura caudilhista e não baseada na organização autônoma dos
trabalhadores, mas no papel de um caudilho, acabam como o que aconteceu nos
países árabes: ditaduras personalistas e corruptas. Aqui no Brasil, isso não
chega a se repetir de maneira exata, mas é preciso estarmos atentos porque
Lula tem o papel de uma figura carismática, embora não se perpetue no poder
como os demais.
Em segundo lugar,
é preciso perceber que a popularidade de um governo não é fator inabalável,
contra o qual não se pode fazer nada. Dilma não é um fator inabalável. Na
Tunísia também havia partidos de oposição. Entretanto, nas últimas eleições,
Ben Ali ganhou com percentual superior ao de Lula, com mais de 95% dos
votos. Mesmo que a população tenha votado em Ben Ali por falta de opção, por
apatia, por medo... o que importa é que o quadro mudou. Isso significa que
esses índices são muito relativos e podem mudar. As lições que tiramos de
tudo para a América Latina, ressalvadas as devidas diferenças, são enormes,
porque elas abalam todas as relações internacionais, das quais Brasil e
América Latina estão inseridos. As características políticas são diferentes,
mas não totalmente diferentes. Outro fator importante é que, apesar do
processo de mobilização inicial da população, o que quebrou a espinha dorsal
desses governos foram as greves. Primeiro, você tinha praças ocupadas. Mas
depois, você tinha a economia inteira paralisada. Nesse momento, mesmo os
setores do exercito e do EUA que continuavam apoiando os governos desistiram
de apoiá-los. As greves abrangeram todas as categorias profissionais. Até
médicos, engenheiros, todos pararam. O papel da greve foi decisivo e foi o
que derrubou Mubarak. Na Tunísia também. Houve 40 dias de mobilização, mas
no momento em que as greves se generalizaram, o próprio exército.
FONTE: ANDES-SN.
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