O PODER POPULAR
 

Seminário na UFRJ abordou por vários ângulos o significado da Comuna de Paris, convulsão política que mudou a ordem burguesa durante 72 dias, em 1871

A jornalista e escritora francesa Claudine Rey abriu o seminário 140 anos da Comuna de Paris (a Adufrj-SSind participou da organização) que atraiu centenas de pessoas ao Salão Pedro Calmon na UFRJ. Claudine é presidente da Association les Amis de la Commune de Paris (Associação dos Amigos da Comuna de Paris). Primeira tentativa proletária de destruir o Estado burguês, segundo Lenin, a experiência da Comuna de Paris se refletiu na luta de classes e na história do socialismo.
A causa comum que aglutinou mulheres e homens na resistência e combate às tropas reais na capital francesa foi superar o projeto burguês de sociedade baseado na expropriação da mão de obra de muitos e na acumulação de um grande volume de capital por poucos. O governo do proletariado resistiu durante 72 dias aos canhões do exército franco-prussiano, de 18 de março a 28 de maio de 1871.

 As mulheres e a Comuna

A jornalista e escritora francesa destacou o papel das mulheres combatentes nas barricadas. Elas resistiram aos ataques do governo provisório de Luis Adolphe Thiers, comandante das tropas francesas, após a derrota do país na guerra contra a Prússia e a prisão de Napoleão III pelo príncipe Bismarck-Schönhausen, responsável pela unificação da nação alemã.

Claudine disse que, ao defender os interesses dos monarcas e grandes proprietários, Luis Thiers se submeteu ao governo de Bismark e instalou a Assembleia Constituinte em Versalhes e abriu as portas de Paris à população da Prússia. Milhares de trabalhadores organizados por um movimento operário em ascensão na Europa decidiram enfrentar o exército constituído por Thiers com o apoio das forças militares de toda a França bonapartista.

A jornalista disse que parte do movimento popular de resistência era heterogêneo, envolvendo, além dos operários, a pequena burguesia e republicanos que temiam a volta da monarquia bonapartista. Constituído o governo de Versalhes, monarquistas e republicanos conservadores tomaram a condução da Guarda Nacional que também contava com dezenas de soldados simpatizantes do levante popular.

Diante das contradições apresentadas, observa Claudine, Thiers suspende o soldo da Guarda Nacional que se volta contra os capituladores e se põe ao lado da população resistente na capital. Em 18 de março de 1871, as tropas de Thiers tentam reaver os canhões agora em poder dos comunardos, mas são derrotadas pelo povo e a Guarda Nacional.

Assalto ao céu    

Em 26 de março, é eleita a Comuna de Paris, chamada por Karl Marx de “assalto ao céu”. A partir desse momento, a luta de classes passa a se dar em patamares mais avançados, saldo da experiência de dois meses dos operários no poder.

Claudine também destacou em sua conferência a forte e decisiva participação das mulheres, organizadas pela União de Mulheres, no combate às tropas reais e ao exército prussiano. Segundo a jornalista, a Comuna de Paris deu uma lição de democracia popular que, desde então, em sua opinião, nunca mais existiu na França. “Eleita a Comuna, todos os dias havia reuniões de populares e dos comunardos para organizar o novo Estado proletário. Havia liberdade de culto nas igrejas durante os dias e, à noite, estas serviam de local para as reuniões de grupos políticos”.

Cercada pelos prussianos, a Comuna reconhece as forças políticas dos trabalhadores e pequenos burgueses e suas organizações políticas. Muitas exigiam condições de trabalho, como as mulheres que ficaram encarregadas de tocar os ateliês de manufaturado, dispensando os mestres. Os artistas se organizam e intelectuais comunardos criam o jornal oficial da Comuna que publicava diariamente as necessidades e propostas do povo organizado. Na Comuna houve, por definitivo, a separação do Estado da Igreja. O governo dos operários decretou ainda o ensino laico para todos e a entrada de meninas no sistema escolar. A comuna devolveu os materiais de produção aos artesãos. Limitou as ações dos patrões, impondo limites aos salários e tomando a gestão das fábricas.

Como resumiu Claudine Rey, “pela primeira vez na história, numa ditadura do proletariado, o povo conseguira conviver e construir com todas as correntes de pensamento”.

Especialistas: visões diferentes

A primeira mesa do seminário tratou da visão de três teóricos da Revolução, Marx, Lenin e Gramsci, sobre a experiência do governo proletário. Para o debate foram convidados os professores José Paulo Netto, Ronaldo Coutinho e Carlos Nelson Coutinho.

José Paulo Netto expôs o impacto da Comuna na obra de Karl Marx. Segundo o professor, em 1871, Marx já se encontrava na sua fase menos criativa em termos de publicação. “Em 1875, Marx entra em baixa produção intelectual, mas continua suas pesquisas, com muito pouca publicação”. Segundo José Paulo, naquele momento, Marx estava mais interessado nas questões que envolviam diretamente a criação do Partido Socialista Alemão (PSD).

Nos anos 1860, entre a ascensão do movimento operário europeu, depois da derrota durante a crise de 1848, e meados dos anos 1870, foi criada, em 1864, a Associação Internacional dos Trabalhadores que ficou conhecida como a I Internacional.  Seis meses antes da I Internacional, Marx diria que um governo proletário em Paris naquele momento seria “prematuro, espontaneísta e aventureiro”. Mesmo com as ressalvas em sua análise da conjuntura como Secretário do Congresso Geral da I Internacional, “Marx redige uma moção de solidariedade à Comuna, que sofria com as infâmias da imprensa burguesa”.

Ronaldo Coutinho tratou da obra de Vladimir Ilitch Lenin à luz da Comuna. O professor disse ter sido a primeira vez, inclusive, em que era convidado para falar sobre o autor do livro “O que fazer?” nos meios universitários. “Lenin incomoda, irrita alguns acadêmicos porque seus escritos são sobre o processo de revolução real que dá plenitude do sentido de sua adesão ao marxismo”.

Para Ronaldo, no pensamento de Lenin, a Comuna de Paris foi, de fato, uma ditadura do proletariado, constituída a partir da revolução operária no centro da luta de classes.
Antonio Gramsci praticamente não menciona a experiência revolucionária da Comuna de Paris em suas “Memórias do Cárcere”, de acordo com o estudioso Carlos Nelson Coutinho. “Gramsci se importava mais em tratar da teoria política e os fatos não aparecem citados”.

A única referência da Comuna na obra de Gramsci foi quando este tratou de um texto de Marx nos Grundisse (coletânea de textos anteriores ao O Capital). “Gramsci vai tratar a Comuna como um elemento fundamental da representação de um governo proletário”. Segundo Carlos Nelson, Gramsci especialmente durante a construção de suas memórias na prisão estava mais concentrado em entender o por quê de as revoluções socialistas não darem certo no Ocidente em relação aos sucessos obtidos pelo movimento operário nas nações do Oriente.

Assalto operário ao poder

As lutas da classe trabalhadora não podem se limitar a responder às consequências da crise capitalista. Devem atuar no sentido de mudança da própria sociedade, observou Nikos Seretakis, representante do Setor de Relações Internacionais do Partido Comunista da Grécia (KKE), e um dos convidados estrangeiros do Seminário sobre os 140 anos da Comuna de Paris. Nikos discursou na mesa  que tinha como tema “O poder popular e as organizações dos trabalhadores”.

O convidado internacional, que proferiu sua palestra em português, destacou que o grande heroísmo dos homens, mulheres e crianças do primeiro “assalto operário” ao poder, 140 anos atrás, continua presente até hoje: “Avançamos pelo futuro; aprendemos com o passado”, disse. O representante comunista grego deu o depoimento de como está a conjuntura em um dos países mais afetados pela atual crise capitalista: “Meu partido compreende a crise atual como de superprodução do capitalismo. O que torna mais agudo o conflito entre classes”, disse.

Valério Arcary, dirigente nacional do PSTU e professor do Cefet-SP, lembrou que uma parte dos sobreviventes da Comuna de Paris foi exilada para o arquipélago da Nova Caledônia, território francês na Oceania, a 20 mil quilômetros da metrópole. E, mesmo nessa situação, deram provas da força de suas convicções, para inspirar as atuais e futuras gerações. Riscaram as paredes dos alojamentos onde ficaram com facas para escrever: “Viva a Comuna! A Comuna não morreu!”.

O professor enfatizou que a experiência do século XX demonstrou que toda tentativa de chegar ao poder sem uma disposição revolucionária do proletariado, e sem a auto-organização democrática do proletariado, resultou em desastres: “Em regimes deformados, tirânicos desde o início”. Valério citou o exemplo da Coréia do Norte e garantiu que todos daquele salão estariam presos naquele país, se estivessem militando politicamente na defesa de uma sociedade mais igualitária.

Gilmar Mauro, representante do MST, lembrou que a Comuna de Paris foi também um importante evento para extrair lições: “Acho que estamos nesse momento, extraindo lições, no mundo e no Brasil”. Outro desafio da atual conjuntura, segundo o militante, é fazer um balanço das instâncias organizativas da classe trabalhadora. Para ele, diante do avanço do capitalismo sobre os direitos sociais, é preciso pensar em novas organizações. E em uma nova metodologia: “Às vezes, em vez de estimular a participação, nós vamos nos fechando em verdades absolutas. Temos dificuldade de dialogar com quem pensa diferente”.

 Trabalho e autogestão no debate

O professor Marcelo Badaró (UFF) afirmou que a Comuna de Paris levou Marx a entender que não bastava à classe trabalhadora ocupar o Estado, pois sua estrutura burocrática não permite o avanço da revolução socialista: “Ele percebeu que era preciso destruir o Estado”. Segundo Badaró, a Comuna destruiu a burocracia burguesa do Estado e colocou como referência o salário do operário médio para quem assumisse cargos públicos. “Acabaram realizando o ‘sonho’ burguês de constituir um governo barato”, disse. Isto porque, entre outras ações, dissolveu o exército permanente e realizou eleições para um conselho que ao mesmo tempo desempenhava as funções do Executivo e Legislativo.

“Trabalho, economia e autogestão” foi o tema da mesa que teve a participação, além de Badaró o professor Mário Duayer (Uerj) e Pedro Santinho, trabalhador da fábrica Flaskô, em São Paulo. Semelhante ao que aconteceu na Comuna de Paris, quando por força de decreto, as fábricas abandonadas foram ocupadas pelos operários, a Flaskô, desde julho de 2003, é gerida pelos trabalhadores. A fábrica, localizada na região do Sumaré, em São Paulo, foi abandonada pelo dono, em 2003, após o acúmulo de dívidas resultantes do processo de abertura econômica e consequente enxurrada de multinacionais no Brasil. Com o abandono, os trabalhadores organizados ocuparam a empresa e passaram a tirar dela o sustento diário. “Nosso Conselho é formado por pessoas de todas as áreas da fábrica, que também realizam seus trabalhos diários, além das resoluções da nossa fábrica. A isto, o capital chama de autogestão. Nós preferimos chamar de fábrica controlada por trabalhadores”, afirmou Pedro Santinho. Hoje, o Movimento das Fábricas Ocupadas busca na justiça a expropriação da fábrica. “É importante saber que o socialismo não está relacionado com a propriedade coletiva, mas com a não propriedade”, disse Santinho. 

Já o professor Mário Duayer sublinhou a diferença fundamental entre Marx e outros filósofos e críticos da mesma época: “Enquanto pensadores trabalhavam na sociedade existente sem ultrapassar aquela realidade que se colocava, Marx, ao contrário, apontou para a construção de outra realidade”.

Nesta nova realidade, para Marx, não seria possível que o trabalho tivesse papel central na vida dos sujeitos. “O Marx era contra a centralidade do trabalho. Ele é um crítico ao fato de o trabalho designar o que é o indivíduo. Só na sociedade capitalista há isso: nós só somos alguma coisa se trabalharmos. Somos reduzidos a meros trabalhadores, desconsiderando o que somos de fato. Marx é usado muitas vezes para reconfigurar o trabalho. Não pode ser isso. O Marx era um crítico à lógica de que o trabalho é a condição de nossa existência social”, finalizou.

A Comuna de Paris e a educação

O professor Roberto Leher (UFRJ) e a doutoranda da Unicamp Jane Barros debateram “Educação, Emancipação e Revolução”, na tarde de 15 de setembro.

Sobre a organização da educação na Comuna de Paris, Roberto Leher disse que as proposições da Comuna sobre a educação tinham como ponto principal a educação laica e realizada pelo povo: “Os trabalhadores organizados utilizavam-se das escolas públicas para educar a população. Não havia distinção de gênero, os castigos físicos foram proibidos. Os espaços de arte e cultura passaram a ser abertos ao povo. A Comuna instaura uma educação que humaniza. O fim das relações de poder faz a escola como local fundamental da construção do novo homem e da nova mulher da Comuna de Paris”, disse.

Roberto Leher defendeu que, embora nenhum país hoje tenha conseguido implementar o que a Comuna de Paris realizou, muitas das discussões que hoje se colocam em várias partes do mundo são frutos justamente da Comuna. Um exemplo é a luta pelo fim da divisão social do trabalho. “Na Comuna acabou a divisão entre o trabalho intelectual e o braçal. A Escola Unitária tem esse pressuposto. Isto está presente hoje nas escolas do MST, por exemplo, nas proposições das escolas zapatistas”.

Jane Barros apresentou seu tema da pesquisa do doutorado: “O papel da educação na luta de classe”. A educação no século XIX, segundo Jane, foi de fundamental importância porque na época o capital entendia que era impossível falar do desenvolvimento das forças produtivas sem haver trabalhadores qualificados para isso. “Associado a esse movimento, os trabalhadores pressionavam cada vez mais pelo direito à educação, sobretudo na segunda metade do século, quando houve um enorme avanço das escolas primárias na Europa”, esclareceu.
Para Jane, o principal legado da Comuna é a experiência da luta dos trabalhadores no campo da educação: “Alguns elementos são importantes serem retomados, inclusive o próprio debate sobre que sociedade queremos construir”, afirmou.

Ela também contou que a Comuna de Paris, além de não distinguir por gênero os estudantes, também pregava que as mães tivessem tempo para amamentar seus filhos. “Isto, no entendimento da Comuna, fazia parte do processo de formação do ser humano, por isso merecia ser valorizado. Além disso, as mulheres deveriam ter o direito de adequar seus trabalhos em torno da amamentação”, destacou a pesquisadora.
Participaram da cobertura do seminário em comemoração aos 140 anos da Comuna de Paris os jornalistas Ana Manuella Soares, Kelvin Melo de Carvalho, Silvana Sá e a estagiária Dally Schwarz. Na próxima edição, veja a participação das mulheres no levante.
 

Fonte: ADUFRJ

 


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