O
golpe, os desaparecidos e o direito à verdade
Por Francisco Bicudo*
As
lembranças inocentes da primeira infância me dizem que eram tempos
estranhos. Não entendia muito bem a movimentação e a correria na praça
da igreja matriz, as tropas marchando nas ruas, a cavalaria, as bombas
de gás lacrimogêneo, os professores agitados e tensos, os comerciantes
apressados fechando suas lojas, as pessoas caminhando com passos
largos e acelerados querendo chegar logo em suas casas, os semblantes
carrancudos e nervosos espalhados pelas esquinas.
Aos sete
anos, reconheço que, sem saber ao certo o que estava acontecendo,
ficava feliz quando as aulas eram suspensas e saíamos mais cedo da
escola, o saudoso colégio São José. Em casa, vivíamos uma espécie de
pacto do silêncio motivado pelo medo: eu desconfiava que algo não ia
bem, mas não perguntava; como não eram provocados, meus pais não
respondiam. São as primeiras memórias que guardo da ditadura militar,
na minha São Bernardo, ABC paulista, em 1979.
Muitos anos
depois, morando então na capital paulista, já tinha conseguido escapar
dos limites dos segredos para começar a montar essa história e
perceber o tamanho da tragédia que havia se abatido sobre o Brasil no
dia 1 de abril de 1964, com o golpe militar - e as perseguições,
prisões, censura, exílios, torturas, mortes e desaparecimentos. Ao
final da graduação, ao decidir o tema de meu Trabalho de Conclusão de
Curso de Jornalismo (ECA/USP), conheci Helena Pereira dos Santos,
àquela época presidenta do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo.
Nascida em
Ilha das Flores, interior de Pernambuco, em 1919, Helena conheceu uma
infância sofrida, vagando pelas usinas de açúcar da região, com o pai
sempre em busca de trabalho. Sonhava ser professora. O pai proibiu.
Casada muito jovem, veio para São Paulo em busca do eldorado em março
de 1954, já com dois filhos, Miguel e Misael. Enfrentou na megalópole
toda sorte de preconceitos - "o nordestino atrasado e preguiçoso, que
chega para tirar os nossos empregos". Começou a trabalhar como
costureira.
Para
orgulho da mãe, Miguel, o filho mais velho, terminou o ensino
secundário na Escola de Aplicação da Universidade de São Paulo e
entrou em Agronomia na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz,
a Esalq, em Piracicaba. Pouco mais de um ano depois, em 1965, aos 19
anos, abandonaria o curso, dizendo para a mãe que "queria conhecer o
mundo". Terminou um namoro de quatro anos. Mergulhou na militância
política e logo caiu na clandestinidade, para finalmente participar da
Guerrilha do Araguaia, integrando o exército revolucionário popular
mantido pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B).
Helena
passou anos sem ter notícias do primogênito. Com a Anistia, conseguiu
confirmar que Miguel combatera mesmo no Araguaia. Em 1979, decidiu
procurar José Genoino, que a colocou em contato com João Amazonas.
Consternado, o então presidente do PC do B confirmou a morte de Miguel
na guerrilha, vítima das forças de repressão. "Ele me disse que foi
uma perda irreparável, que o Miguel era muito dedicado e preparado,
que era ele quem abria os caminhos na selva para os companheiros
passarem", me contou Helena, durante a produção do TCC.
Os anos
restantes da vida dela foram incansavelmente dedicados a buscar
informações sobre as condições da morte - e o corpo - do filho, que a
ditadura (e depois a democracia) insistia em lhe negar. Participou de
caravanas ao Araguaia, de reuniões com representantes dos governos e
das forças armadas, presidiu o Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo.
Faleceu em 28 de novembro de 1996, sem conseguir reencontrar e
enterrar Miguel. Quando viu o filho pela última vez, em 1967, estava
doente, tinha sido operada e se recuperava da cirurgia. Foram apenas
15 minutos. "Ele estava muito maltratado, magro, um bigode enorme.
Quase nem reconheci. Chorou nos meus braços", lembrou, sempre em
nossos encontros para o TCC.
Miguel
Pereira dos Santos, conhecido também pelo codinome Cazuza, é um dos
379 mortos e desaparecidos políticos assassinados pela ditadura
militar brasileira. De acordo com depoimentos de companheiros, foi
morto pelas forças armadas em 20 de setembro de 1972. Na Argentina,
foram julgados e condenados 486 ex-militares por terrorismo de Estado
ou violações de direitos humanos cometidas durante o regime militar
que governou o país vizinho (1976-1983). No Brasil, torturadores e
militares que participaram da repressão seguem impunes. Muitos dos
arquivos produzidos sobre o período continuam fechados, secretos e
inacessíveis. A História recente do país vem sendo apagada.
"Lamentavelmente, temos que dizer que as forças armadas brasileiras,
as daquele período histórico, têm as mãos sujas de sangue. Essa gente
tem nome e sobrenome. Daí a importância do resgate da verdade. Se
ainda estão vivos, torturadores e assassinos precisam ser punidos, e o
primeiro passo é o conhecimento da verdade. Não há prescrição para
esse tipo de crime. Não pode haver. À luz do direito internacional, do
nosso direito e à luz dos direitos humanos", escreve o jornalista e
deputado federal Emiliano José (PT/SP), em
artigo
publicado pela Agência Carta Maior. Ele continua: "a Comissão da
Verdade quer apenas a verdade, o exercício do direito à verdade, à
memória. O direito que tem qualquer pai, qualquer mãe de família,
qualquer parente de saber o que ocorreu com seus entes queridos,
muitos deles desaparecidos, milhares torturados pelos criminosos
fardados ou não sob as ordens dos generais-presidentes entre 1964 e
1985".
Em
entrevista
publicada originalmente pelo jornal "O Estado de São Paulo", o
cientista político Paulo Sergio Pinheiro afirmou que "é preciso saber
a verdade sobre os crimes cometidos pelos agentes do Estado. O que
aconteceu com os dissidentes estamos cansados de saber". Segundo o
pesquisador, "as pesquisas mostram que nos países onde houve Comissões
da Verdade as democracias tornaram-se muito mais eficientes, os crimes
contra os direitos humanos diminuíram e se tortura muito menos. No
Brasil, os torturadores atuais continuam torturando, apesar de ser
crime. Eles acham que está tudo numa boa, que não acontecerá nada".
Basta. O
silêncio é também criminoso, nefasto. Não é mais possível aceitar que
a História nos seja negada. Nesse aspecto, o ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva representou profunda decepção. Espera-se que a
presidenta Dilma Rousseff, que carrega no corpo e na alma as marcas da
tortura, crie finalmente a Comissão da Verdade, com poderes para
investigar, publicizar e estabelecer responsabilidades pelos crimes
cometidos pelas forças da ditadura, entre 1964 e 1985. Para que não
caiam no esquecimento as trajetórias de sonhos, de esperanças, de
lutas e de resistências de Helena e de Miguel Pereira dos Santos, a
quem presto reverência e homenagem, na semana em que o golpe completa
47 anos.
* Francisco
Bicudo é jornalista e professor de Comunicação na Universidade Anhembi
Morumbi.
Fonte:
http://www.oblogdochico.blogspot.com/