O estado das universidades brasileiras
Por Maurizio Ferrante (*)
Depoimento de um experiente leitor de quadros de avisos
Uma
fonte de informações interessantes do estado atual da academia é
representada pelos quadros de avisos de universidades. Entre anúncios tipo -
aluga-se vaga em república feminina, vendem-se bicicleta com 12 marchas,
geladeira semi-nova e um Gol 1998 em bom estado - aparecem chamadas
vagamente relacionadas com estudo e carreira; por exemplo, avisos de
palestras e cursos.
Um tema que vem aparecendo mais e mais nos quadros de aviso, mas também em
jornais e revistas que de vez em quando se ocupam de educação e afins, é o
empreendedorismo. Assim mesmo: com dois ‘és’. Todos nós sabemos do que se
trata: uma atitude independente e corajosa, que pressupõe espírito de
iniciativa, destemor ao risco e, por fim, conhecimento técnico, atitudes
“manageriais” e um bocado de ambição.
Com minha longa experiência de quadros de aviso de universidades posso
atestar que nossa juventude está sendo bombardeada por mensagens que
endeusam a tal atitude. Os recipientes são estudantes das engenharias e
ciências da computação, como também físicos, químicos e biólogos. Não
consigo me livrar da impressão de que as mensagens carreguem a silenciosa
premissa de que seguir uma carreira acadêmica ou fazer carreira, primeiro em
chão de fábrica e depois em atividades mais estratégicas, seja próprio dos
menos capazes. Talvez esteja sendo injusto, mas é o que implica a
adjetivação utilizada, que recobre de méritos o engenheiro (ou químico, ou
físico...) empreendedor, e lhe aponta como inevitável o sucesso de sua
pequena empresa, invariavelmente de base científica e com grande carga de
inovação.
Em torno dessa idéia, a partir de 1984 começam a nascer os parques
tecnológicos, que hoje no Brasil são mais de duzentos (na minha cidade tem
dois), alimentados por diversos tipos de financiamento; CNPq, Secretaria de
Ciência e Tecnologia dos Estados, etc., e cujo desempenho – perdas e ganhos
– nunca foi apresentado aos pagadores de imposto. Notável é a ausência quase
que completa de capital de risco provindo de grandes empresas ou mesmo de
investidores pessoas físicas.
Sabemos que o tempo presente é a era dos serviços, natural sucessora da era
da indústria, e o empreendedorismo, alardeado como a vocação dos mais
capazes, passou a formar um mercado per se, sobre o qual se pode ganhar
dinheiro. Isso levou à proliferação de parques tecnológicos, incubadeiras de
novas empresas e entes do tipo, que logicamente necessitam de presidentes,
diretores e administradores, perpetuando-se assim o ciclo do existo porque
existo e quero continuar existindo. Das empresas amparadas por esses Parques
e incubadeiras sabe-se pouco, e as perguntas que se colocam são: qual a taxa
de mortalidade – Suíça ou de terceiro mundo? Qual o peso econômico das
empresas? Qual o seu nível tecnológico médio?
Lembro-me de quando visitei a Feira de um desses Parques, e surpreso me
deparei com o estande de uma (hoje falida) fábrica de tratores exibindo o
seu já então vetusto produto. Naturalmente há exceções, e muitas, e pontos
de vista diferentes, mas a intenção deste artigo não é tanto discutir os
prós e contras do empreendedorismo no plano econômico ou no de formador de
estruturas tecnológicas consistentes, como de levantar questões sobre o
efeito que esse pesadissimo marketing da carreira possa ter sobre os
estudantes.
Os apelos ao empreendedorismo deixam de mencionar que uma empresa de base
tecnológica depende do aparecimento de uma idéia que não surge do ar, mas é
pacientemente garimpada entre princípios científicos, experimentos e,
principalmente, conhecimento de causa. Lembro que em uma eleição passada, o
mote que acompanhava um dos candidatos era “deixe o homem trabalhar”. Eu
adaptaria essa frase aos estudantes universitários (e secundaristas também):
“deixem o estudante estudar em paz”. Sem o distrair continuamente com
palestras de empreendedorismo, ou de como elaborar um curriculum vitae,
escrever uma patente, e coisas do tipo. Tudo isso está sendo ministrado
antes do tempo, e os que seguem essa sereia (porque é mais fácil ouvi-la do
que espremer o cérebro sobre um texto de termodinâmica) acabam perdendo a
oportunidade de se preparar melhor e fundamentar melhor suas idéias, que aí
sim serão criativas.
A falta de engenheiros no Brasil é muito grande; formamos 30.000
profissionais por ano, pouco se comparado com a China – 400 mil; Índia – 250
mil, e Coréia do Sul – país pequenino com 50 milhões de habitantes que forma
80 mil engenheiros. A urgência é grande, e uma meta da CAPES (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – órgão do MEC) é a evolução
daqueles 30 mil para 40 mil nos próximos três anos. Esses números dão razão
à CNI (Confederação Nacional da Indústria) que prevê um excesso de 150 mil
vagas em setores técnicos.
Mas além da questão quantitativa, há a qualitativa: José Roberto Cardoso
diretor da Escola Politécnica da USP faz notar que "... só um entre quatro
engenheiros possui formação adequada...”. De fato, dependendo de como se
contam há 1.087 cursos no país, dos quais a metade em escolas particulares,
e uma olhada nas notas do ENADE dessa metade explica as palavras do
professor.
Se ainda por cima desviamos antes do tempo um porcentual de estudantes desse
mercado, e o distraímos com falsas e anti - tempo preocupações, não estamos
colaborando muito com a solução dos problemas, estamos?
(*) Professor do Departamento de Engenharia de Materiais, na Universidade
Federal de São Carlos.
FONTE: Carta Maior
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