Movimento estudantil para além da USP
 

A partir das mobilizações estudantis na maior universidade do país, sociólogo debate movimento em perspectiva histórica

A mobilização dos estudantes da Universidade de São Paulo (USP) contra a Polícia Militar no campus fez o debate sobre o papel do movimento estudantil ser retomado. A mídia corporativa se apressou em afirmar que as correntes estudantis dividem-se entre extremistas de esquerda violentos e adesistas que se calam diante de movimentos como o de combate à corrupção. Para além dessa análise superficial, o especialista em movimento estudantil e pesquisador da Fundação Perseu Abramo, Carlos Henrique Menegozzo, discute os temas relativos às pautas dos estudantes, como a presença de partidos nas entidades, o repúdio à PM nos campi e a configuração ideológica das correntes mais atuantes. Confira:   

Brasil de Fato – O repúdio à PM no campus é uma bandeira histórica do movimento estudantil, da USP e de outras universidades? Há outros exemplos de movimentações como essa na história?

Carlos Henrique Menegozzo – Acho que a própria ideia das “bandeiras históricas” é uma primeira questão a se debater. Muito mais que retratar uma realidade histórica, o emprego do termo reflete uma busca por legitimação, como se “histórico” significasse “certo”. Mas a história muda e o que foi correto numa época nem sempre será em outra. Ao mesmo tempo, o uso do termo reflete a tentativa de recuperar um sentido de continuidade do qual carece o movimento em função da transitoriedade da condição estudantil. Então, evitando a expressão, acho que o mais adequado seria considerarmos que há uma tensão ao longo da história entre as forças policiais e um certo espírito universitário, hoje marginalizado. Antes, mais do que atualmente, a universidade era considerada e valorizada como espaço de reflexão, estabelecendo-se assim como foco privilegiado de contestação cultural e política. Coisa que nunca combinou com ação policial, daí a tensão. Exemplos disso não faltam: além da invasão da USP ocorrida em 2009, poderiam ser citadas as ações policiais realizadas na USP, UnB e UFMG nos anos de 1970, quando a ditadura empenhou-se em impedir a reorganização do movimento após o período mais duro de repressão política.    

Ao criticar o movimento estudantil da USP, a mídia aponta que as bandeiras atuais são ilegítimas, ao contrário daquelas dos que lutavam contra a ditadura. Qual é sua opinião sobre esse fato e como era o posicionamento dessa mesma mídia sobre aquelas movimentações?

A ação dos principais meios de comunicação no Brasil, concentrados nas mãos de poucos, reflete geralmente interesses corporativos que se confundem com os da elite. Na ditadura, muitos desses veículos que hoje celebram a luta democrática foram beneficiados e chegaram a colaborar ativamente com um regime. E se alguma luta do movimento é considerada legítima ela, muito provavelmente, é fruto das tentativas da própria mídia em manipular os estudantes a seu favor e a favor dos grupos que representa. Isso ocorreu em importantes manifestações estudantis nos anos de 1968, 1977 e 1992, por exemplo. Hoje, esses meios ainda se pautam em função de interesses corporativos e da sua associação com os grupos dominantes. Concretamente, tais interesses se traduzem, por exemplo, na exploração comercial da violência e na tentativa de manipulação da opinião pública, reduzindo a cobertura jornalística a um texto panfletário. Paradoxalmente, isso acaba em parte beneficiando o movimento: quando retratado na imprensa, mesmo que de modo distorcido, o meio estudantil recupera um sentimento de identidade coletiva enfraquecido nas últimas décadas por uma série de fatores, o que potencializa ações mais massivas. Isso ocorreu na USP com a invasão da PM em 2009 e tornou a ocorrer neste ano.     

Esses agrupamentos da chamada ultraesquerda são uma novidade no movimento estudantil da USP? Em sua opinião, essas agremiações têm chances de dirigir alguma entidade de caráter nacional e pautar as ações dos estudantes?

Esses grupos não são uma novidade. Ao contrário, o meio universitário tem se mostrado um viveiro de posições extremistas, tanto à esquerda quanto à direita. Esse processo é complexo e envolve uma série de fatores estruturais e conjunturais. Entre os estruturais vale destacar a fragmentação da sociabilidade no meio acadêmico, resultante de políticas de adequação do ensino às necessidades do mercado. Tais mudanças, que vêm sendo implementadas desde os anos de 1970, implicaram, por exemplo, na segregação das áreas do saber, refletida na arquitetura do campus, e também na implantação do sistema de matrícula por créditos. Ao fraturar o convívio na universidade, essas mudanças desencadeiam a formação de guetos de experiência no meio estudantil que se fecham cultural e politicamente às diferenças, produzindo um ambiente propício ao desentendimento e aos extremos. A ultraesquerda, em parte produzida por essa situação socialmente fragmentária, tem tido dificuldades de superar sua própria estreiteza, de elaborar uma leitura da situação e de, assim, dialogar com setores mais amplos. Na minha opinião, esses são alguns dos fatores que explicam a incapacidade da ultraesquerda em assumir posições dirigentes.     

Na União Nacional dos Estudantes (UNE), maior entidade estudantil do país, o PCdoB e o PT são as maiores forças políticas há décadas. Por que na USP essa realidade não é refletida? Isso é uma tendência histórica?

O PCdoB tem se mostrado mais eficiente em dialogar com amplos setores no meio estudantil, o que o torna hegemônico na UNE. Ao mesmo tempo, assume um programa mais moderado e sofre o desgaste à esquerda com o direcionamento dado àquela entidade há décadas. Isso o faz alvo de oposição ferrenha junto a parcelas da esquerda, geralmente melhor implantadas em instituições universitárias públicas de grandes centros urbanos, como a USP. Nessa parcela da esquerda incluem-se partidos como Psol, PSTU e correntes do PT, além dos grupos políticos minoritários como os que protagonizaram a ocupação da reitoria da USP este ano. A ausência do PT na USP, por sua vez, eu atribuiria a uma inflexão na conjuntura política da universidade com a crise de 2005. Para alguns setores, aquela crise representou a prova da falência histórica do PT enquanto instrumento transformador, reforçando posições que pretensamente se opõem ao petismo e ao lulismo pela esquerda. Num contexto propício a extremos, esse movimento implicou também num fortalecimento relativo da ultraesquerda, que apesar disso continua minoritária no meio universitário.     

A eleição do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da USP, adiada para 2012, terá uma chapa de direita chamada “Reação”. Diante da fragmentação da esquerda, você acredita que movimentos como esses podem ganhar força? Existe algum exemplo na história parecido com esse?

Uma análise mais sistemática da presença da direita no movimento estudantil acaba prejudicada porque, diferentemente da esquerda, essa posição não chega muitas vezes a apresentar-se como uma força política organizada. De todo modo, acredito que essa posição tenha adquirido mais peso e capacidade organizativa nos últimos anos, por meio de grupos religiosos e partidos políticos. Esse processo se insere num contexto geral de polarização ideológica que se tem observado no meio acadêmico, ao qual me referi antes, e que se deve a inúmeros fatores estruturais e conjunturais. No caso do fortalecimento da direita, em particular, eu não incluiria entre os principais fatores a fragmentação da esquerda. Creio que essa fragmentação, ainda que seja uma causa a considerar, é mais uma consequência do mesmo processo de polarização. Acho que o fortalecimento da direita na universidade reverbera uma reação de parte das camadas médias e dos setores privilegiados da sociedade ante aos avanços relativos obtidos pelos segmentos mais pobres das populações ao longo do governo Lula. Ao mesmo tempo, esses grupos se ampliam canalizando um sentimento mais ou menos difundido no meio acadêmico, e muitas vezes carente de orientação política clara, de crítica aos excessos e equívocos da ultraesquerda, que aos olhares desavisados acaba associada imediatamente à forma de organização partidária.    

A crítica aos partidos políticos, que usariam os estudantes como massa de manobra, aparece também nesse caso atual da USP. Essa crítica é válida?

Considero que esse é um dos temas centrais e complexos da política universitária na atualidade. Não obstante sua importância, está também entre os temas que têm recebido o pior dos tratamentos. Frustrações imediatas e preconceitos à parte, o fato é que nos anos de 1960 o movimento estudantil foi forte num tempo em que a presença dos partidos era significativa. E também muito fraco nos anos de 1980, quando os partidos caíram em descrédito. Isso mostra o quão superficial têm sido as análises que atribuem os problemas do movimento estudantil à mera presença dos agrupamentos partidários. Conceitualmente, os partidos políticos correspondem a grupos dedicados a elaborar e construir projetos globais de sociedade. Minha opinião é a de que esse ponto de vista partidário é necessário a toda reflexão seriamente empenhada em compreender o potencial, os limites e os desafios do movimento estudantil no contexto social mais amplo. Coisa que o próprio movimento tem dificuldades de fazer por conta própria em função de características que lhe são intrínsecas, tais como a transitoriedade da condição estudantil, por exemplo. Nesses termos, eu diria que as dificuldades de viabilização do movimento estudantil como ator político relevante se deve muito à ausência de um ponto de vista genuinamente partidário. Ausência que se tem sentido apesar da presença dos partidos no meio universitário.

 

Fonte: Brasil de Fato, Renato Godoy de Toledo, 7/12/11.

 


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