Minhas lembranças do 11 de setembro
Não era a primeira vez que eu despertava com o ruído dos aviões
sobrevoando a região. Dois meses e meio antes, no final de junho,
tinha vivido essa circunstância angustiante. Tinha descido correndo
até o Palácio da Moeda, que ficava a duas quadras do prédio de
apartamento central onde eu morava.
Por Emir Sader*
A imagem era a que voltaria a presenciar poucas semanas depois: tropas
cercando o palácio presidencial. Setores das FFAA mais radicalizados
forçavam o resto das instituições militares a acelerar o golpe em
preparação. Mas as condições não estavam dadas, a tal ponto que o
Comandante-em-chefe das FFAA ainda era leal a Allende – Carlos Prats,
que percorreu todos os quarteis rebelados e, com argumentos e força
moral, conseguiu a rendição dos golpistas.
Nessa noite, com a Praca da Constituição, em frente ao Palácio da
Moneda, mais lotada do que nunca, Allende optou por consagrar as
autoridades militares vigentes, não apenas, com justiça, a Prats, mas
aos comandantes das outras armas, suspeitos de estar nas articulações
golpistas. Estes seguiram seus planos, conseguiram tirar Prats e
substituí-lo por Pinochet que passou, agora de dentro do governo
mesmo, a articular o golpe.
No dia 4 de setembro, aniversário da vitória eleitoral de Allende,
três anos antes, a maior multidão que o Chile tinha conhecido saiu às
ruas para expressar seu apoio ao governo. Mas nada brecou as
articulações golpistas. Quando Allende se preparava, dia 11 à noite,
para fazer um pronunciamento ao país em rede de radio e televisão, os
militares golpistas, alertados por Pinochet, anteciparam o golpe,
aproveitando-se também das manobras militares de um porta-aviões
norteamericano, no porto de Valparaíso.
Assim, poucas semanas depois, voltei a ser acordado pelo zumbido dos
aviões sobrevoando. Desta vez não havia dúvidas que era uma nova
tentativa de golpe, desta vez a definitiva. Desci da mesma maneira e
fui à Praça da Constituição. Desta vez o Palácio da Moeda estava
cercado por um contingente claramente maior de tropas.
Santiago já estava sendo ocupada, Valparaíso era a sede do movimento
golpista, que tomava as rádios e TVs e Pinochet anunciava o ultimato a
Allende, com prazo do meio dia, hora em que o Palácio da Moeda seria
bombardeado. Paralelamente mandaram a Allende a proposta de que ele
abandonasse o Palácio, com seus parentes, para ser enviado por
helicóptero ao exterior. Ressoou por toda a Cordilheira o palavrão com
que Allende rechaçou a oferta dos golpistas.
Allende se dirigiu pela última vez ao povo na rádio da central
sindical, seu famoso discurso em que nanuncia que “mais cedo do que se
imagina as grandes alamedas da democracia se reabrirão no Chile”. E
seguiu resistindo, a partir da janelinha mais alta do Palácio, de onde
se dirigia ao povo, com o capacete que os mineiros tinham dado a ele a
o fuzil soviético AK-47 que Fidel tinha lhe presentado. Allende, um
pacifista por excelência, empunhava armas para defender a democracia e
o mandato que o povo lhe havia concedido.
O prazo foi adiado um pouco, mas finalmente os caças bombardeiros
ingleses despejaram todo seu poder de fogo sobre o palácio
presidencial, símbolo da extraordinária continuidade democrática
chilena, só rompida, até ali, em dois breves momentos, desde 1830. A
imagem que se reproduz sempre é significativa do que se vivia naquele
momento: um presidente legitimamente eleito pelo povo chileno, cercado
pelos militares golpistas, bombardeado, como resultado de um complô
que tinha se iniciado assim que Allende ganhou as eleições, antes
mesmo que tomasse posse.
Em reunião no Salão Oval da Casa Branca, Agustin Edwards, proprietário
do jornal El Mercurio, se reuniu com Nixon e com Kissinger, começando
a planejar o golpe. Kissinger afirmou que era preciso “salvar o povo
chileno das suas loucuras”. Essa articulação desembocou no golpe, na
destruição da ditadura chilena e na instauração do regime mais feroz
que o Chile conheceu.
Allende preferiu o suicídio a abandonar o Palácio vivo. Neruda morre
poucos dias depois de 11 de setembro. Victor Jara teve seus pulsos
amputados e morreu no então Estadio Chile, rebatizado no fim da
ditadura como Estadio Victor Jara. Milhares de pessoas foram presas,
torturadas, assassinadas, desaparecidas, exiladas. A democracia
chilena foi destruída, com ela o Parlamento, a Justica, os sindicatos,
os partidos políticos, a imprensa democrática.
Tudo começou naquele 11 de setembro. Fui detido, junto com outros
brasileiros, numa delegacia de polícia, assim que o toque de recolher
foi suspenso e pudemos sair à rua. O Estádio Chile estava superlotado,
não sabiam o que fazer com tanta gente esperando nas delegacias. Antes
que voltasse o toque de recolher, liberaram uma parte dos presos, com
o que pudemos ser liberados. Há 38 anos. O Chile começava a viver
apenas o início do inferno de terror da ditadura pinochetista.
Publicado em Carta Maior
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