A mercantilização dos serviços públicos
Por Paulo Kliass
Ao longo dos últimos anos, o Brasil começou a se acomodar, de forma
passiva, com um processo lento, mas contínuo, de transformação
profunda em alguns de seus valores republicanos mais carregados de
simbolismo e conteúdo. A Assembléia Constituinte de 1988 havia sido
fruto de muita luta na caminhada rumo a um país mais democrático e
menos desigual, onde os direitos sociais básicos passaram a estar
assegurados no próprio texto da Carta Magna.
Enquanto os postulados ortodoxos do Consenso de Washington já
começavam a se fazer presentes em uma série de países ao longo dos
anos 80, aqui tentávamos superar o ciclo do regime militar, com a
construção de uma nova ordem social, política e econômica. No entanto,
o tempo foi curto. Os resultados políticos da virada ideológica que o
Brasil sofreu a partir dos anos 90 passaram a comprometer seriamente
as conquistas obtidas na década anterior.
A eleição de Collor e toda a seqüência política que se seguiu marcaram
o início do retrocesso. Apesar do sucesso político representado pelo
impeachment do Presidente acusado de corrupção, a verdade é que a
orientação das mudanças rumo a uma ordem mais liberal, mais voltada
para o mercado e assumidamente contra a “coisa pública” tornou-se
hegemônica. Vivemos duas décadas de uma espécie de tentativa
permanente de desconstrução das propostas social e politicamente
avançadas, que passaram a fazer parte integrante da famosa
Constituição Cidadã de 1988.
O avanço ideológico da ordem neoliberal vai se dar na direção oposta a
tudo aquilo que a maioria – presente no momento das votações dirigidas
por Ulysses Guimarães – tinha como projeto de Nação. Assim, pouco a
pouco, tem início a operação de desmonte dos primeiros passos que
haviam sido programados para a construção de um modelo inspirado nas
idéias de um Estado de Bem Estar Social.
A estratégia e a pauta do retrocesso foram sofrendo alterações ao
longo do tempo e dos diversos governos que se sucederam. Desde a
rápida passagem de Collor, passando pelos 2 mandatos de FHC e se
consolidando – de forma mais sutil – até mesmo com os 8 anos Lula. No
início, as grandes medidas de privatização de boa parte das empresas
estatais e desregulamentação da economia. Em paralelo, a abertura
propositalmente descontrolada da economia para as importações de bens
e serviços, bem como para as aplicações de natureza financeira do
capital especulativo internacional. Data desse primeiro momento,
também, a abertura do mercado brasileiro para aqui operarem os grandes
bancos e demais instituições financeiras estrangeiras.
Em nome de uma suposta ineficiência do setor público em sua ação
empreendedora, o discurso hegemônico propunha um menu amplo de opções,
que iam desde a venda pura simples das instituições estatais até
modelos mais sofisticados de parceria público-privada, as famosas
PPPs, passando pela transferência das novas atividades para as
empresas capitalistas sob a forma das concessões, permissões e
licitações dirigidas. Apesar das várias alternativas, a essência do
movimento era o convencimento explícito de que a ação privada era
melhor para o conjunto da sociedade e que as regras de mercado
levariam, sem sombra de dúvida, a uma oferta de bens e serviços de
qualidade superior e preços mais adequados.
O caminho aberto para tal transformação nos levou a uma situação de
extrema perversidade, em especial para as camadas da população de
renda mais baixa e com menor capacidade de articulação para fazer
valer suas demandas junto ao poder público. Vieram os processos de
privatização das estradas, das telecomunicações, dos sistemas de
geração e distribuição de energia, das empresas de saneamento, do
sistema de ferrovias, das empresas de transporte público, dos
aeroportos e por aí vai.
Do ponto de vista institucional, o modelo passou a prever a criação
das agências reguladoras. Estas deveriam ser constituídas sob a forma
de instituições autônomas, quase independentes em relação ao Estado,
com a tarefa de regulamentar, fiscalizar e controlar os novos setores
– agora, sim, funcionando sob as leis de mercado. Na verdade,
aceitava-se implicitamente a realidade da chamada “assimetria” de
poder entre as partes operando sob a nova forma liberal: os
consumidores e as empresas. No entanto, a criação de organismos como
ANATEL, ANEEL, ANTAQ, ANTT, ANS e tantos outros não assegurou os
direitos dos usuários face aos grupos empreendedores que operam no
sistema. Muito pelo contrário, a maior parte das decisões relevantes
das agências sempre tenderam a favorecer as empresas e desconsiderar
os pleitos daqueles que se utilizam do sistema. Estão aí os inúmeros
casos de tarifas elevadas, serviços de má qualidade ofertados,
concordância com pleitos de concentração e constituição de oligopólios
nos sistemas. Sob o mantra da independência político-institucional do
novo modelo regulador, abria-se a possibilidade da chamada “cooptação”
de interesses e mesmo ideológica de seus dirigentes, sem que restasse
outra alternativa que não aguardar o fim do mandato dos que haviam
sido indicados pelo Executivo, e referendados pelo Legislativo, para
dirigir tais órgãos.
Esse processo, em seu conjunto, caracteriza-se por uma verdadeira
mercantilização dos serviços públicos essenciais. Para além da questão
ideológica já mencionada, observa-se igualmente um sucateamento das
estruturas oferecidas pelo setor público, como que para reforçar a
“inevitabilidade” de sua transferência para o setor privado. As
chamadas décadas perdidas foram um longo período de redução das
alocações orçamentárias para tais áreas do Estado, comprometendo a
modernização tecnológica, impedindo a ampliação da oferta de serviços
para todas as regiões e setores e inviabilizando a permanência de
recursos humanos de maior qualificação. Com isso, abriam-se cada vez
mais as trilhas das facilidades oferecidas ao setor privado, na sua
busca permanente por novas oportunidades de acumulação de capital.
O bem público passa a ser encarado e tratado como aquilo que é a
essência mesma do modelo em que vivemos: simples mercadoria. E ponto
final! Não apenas os setores acima citados entram na nova dinâmica,
mas também a saúde, a educação e a previdência. Tudo passa a ser
decidido e operado nos termos de precificação das atividades, dos
conceitos de oferta e demanda de serviços básicos associados à
condição de cidadania. A mercadoria saúde passa a ter seu preço. A
mercadoria educação só pode ser oferecida se apresentar uma taxa de
rentabilidade que seja considerada adequada pelo empreendedor. A
mercadoria previdência passa a ser definida nos termos da redução dos
custos e aumento das receitas das empresas operadoras desse tipo de
produto.
O percurso verificado na educação dos antigos “primeiro e segundo
graus” é revelador do risco da tragédia social em curso. Com a redução
paulatina da qualidade dos estabelecimentos públicos (com poucas e
honrosas exceções, diga-se de passagem) pelo País afora, a classe
média acabou optando por colocar seus filhos nas escolas privadas. Foi
um caminho lento, mas que apresenta um retorno muito difícil para a
situação anterior. A engrenagem de salários baixos dos professores e
de poucos recursos para investimento na infra-estrutura acaba
inviabilizando um serviço educacional de qualidade no âmbito do
Estado. O poder de pressão dessas camadas sociais que abandonaram o
modelo da escola pública deixa de ser exercido e elas passam a se
contentar com a possibilidade da dedução do seu imposto de renda no
final do ano. Quem quiser botar seu filho em escola considerada boa
vai ter que fazer muita “pesquisa de mercado”, avaliar a melhor
alternativa “custo x benefício” e também fazer as contas do “retorno
desse investimento”. Uma verdadeira loucura!
O ensino universitário vai na mesma toada. Universidade virou
“business”, como adoram se referir os operadores do mercado. Com a
reduzida expansão da rede estatal do ensino de terceiro grau,
assistiu-se a um crescimento enorme e descontrolado das faculdades
privadas. Ao contrário de sua característica de atividade
intrinsecamente pública, nesses casos o ensino e a pesquisa científica
também passam a ser encaradas pela lógica mercantil e do lucro do
empreendimento. Os resultados estão aí prá todo mundo avaliar. A venda
da ilusão de um diploma que pouco significa para o cidadão, obtido em
condições na grande maioria dos casos (novamente, salvo as poucas e
honrosas exceções) de cursos noturnos, classes superlotadas,
professores desmotivados e com baixos salários, ausência de
equipamentos básicos, etc. E as empresas proprietárias de tais
estabelecimentos ainda recebendo benefícios de toda ordem, a exemplo
dos repasses do governo federal, por meio de programas como o PROUNI
para alimentar o caixa de suas empresas.
O nosso sistema de saúde público ainda segue resistindo, aos trancos e
barrancos. O modelo do SUS é considerado referência internacional, mas
padece de um conjunto amplo de dificuldades. Dentre elas, a falta de
verbas em condições adequadas às necessidades do País. A exemplo do
ocorrido com a educação, foi crescendo por fora, pela margem, um
segmento importante da medicina privada. O modelo baseia-se no
financiamento por meio de planos e seguros de saúde e pode provocar a
falência do sistema público, caso medidas como o fim da CPMF e outras
terminem por secar os recursos orçamentários para esse fim. No limite,
a mercantilização da medicina pode levar àquele pesadelo do qual os
próprios Estados Unidos tentam escapar. Não tem recurso ou cartão de
seguro? Pois, então, ponha-se para fora da porta do hospital, pois
aqui o atendimento pressupõe o pagamento do serviço. A vida? Aqui,
isso não tem muita importância, não! A exemplo da educação, a classe
média usa cada vez menos o SUS e acaba optando por se conformar com o
sistema privado, que vem junto com os obstáculos dos preços extorsivos
e dos procedimentos médicos não cobertos nas alíneas do seu contrato
com a empresa de saúde.
A previdência também corre sério risco. Apesar do caráter universal do
Regime Geral de Previdência Social (RGPS), o sistema de complementação
por meio dos seguros privados e fundos de previdência é uma realidade
para setores significativos dos que pretendem se aposentar com
benefícios superiores ao teto do INSS. Aliás, valor mensal que se vê
cada vez mais reduzido desde a implantação do famigerado fator
previdenciário por FHC em 1999 e carinhosamente mantido por Lula e
Dilma. Com a atual ameaça da mudança da base arrecadadora, em que se
sairia da contribuição calculada sobre a folha de pagamento para um
salto ao desconhecido de um percentual sobre o faturamento das
empresas, existe a probabilidade de inviabilizar o sistema no longo
prazo. Também nessa área, a lógica mercantil da empresa privada
pressupõe a redução de despesas e o amento das receitas. Ou seja, ao
longo da vida os participantes tenderão a sofrer maior cotização para,
no momento da aposentadoria, enfim passar a receber um valor menor do
que o esperado.
É por essas e outras que tais modalidades de serviço público devem
permanecer na sua característica de bens oferecidos pelo Estado aos
cidadãos. Isso não significa, é claro, mero conformismo com a baixa
qualidade ou a reduzida eficiência dos serviços atualmente oferecidos
pelos organismos públicos, seja no âmbito federal, estadual ou
municipal. Há muito a se avançar na melhoria de tais setores, mas a
mercantilização não é, com toda a certeza, o melhor caminho a se
trilhar.
* Paulo Kliass é especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
(Publicado em 25.06.11, no Correio do Brasil)
Fonte:
ADUA