Marighella, 100 anos
 

Centenário do guerrilheiro é comemorado com exibição do filme Mariguella no Cine Glauber Rocha, em Salvador (BA)

A exibição nesta segunda-feira (05) do documentário Mariguella, no Cine Glauber Rocha, em Salvador (BA), marcará as comemorações do centenário de nascimento de Carlos Marighella em sua terra natal. O guerrilheiro, assassinado na Alameda Casa Branca, em São Paulo, em 1969, tem sua convulsiva história relembrada em filme dirigido por sua sobrinha, Isa Grinspum Ferraz. Ano que vem, a Companhia das Letras lançará alentada biografia de Marighella, escrita pelo jornalista (e ex-ombudsman da Folha de S. Paulo) Mário Magalhães. 

Depois da sessão comemorativa no histórico cinema da Praça Castro Alves soteropolitana, Mariguella ganhará sessão em praça pública de Cachoeira, no Recôncavo Baiano (dia 7), participará dos festivais Aruanda (na Paraíba) e Havana (em Cuba). Em 2012, fará o circuito europeu de festivais e chegará ao circuito comercial brasileiro.  

Mário Magalhães, que atuou como “consultor especial” do filme de Isa Ferraz, está finalizando a biografia de Marighela e promete trazer “muitas revelações” aos leitores. Em nove anos de trabalho, o pesquisador ouviu 235 entrevistados, consultou quase 50 mil páginas de documentos, acessou 40 arquivos públicos e privados e bibliografia superior a 600 livros. Modesto, Magalhães diz que o crédito como “consultor especial” no documentário Mariguella foi fruto da “generosidade de Isa” e o surpreendeu. Para ele, o resultado cinematográfico do mergulho da cineasta na vida do tio-guerrilheiro “é arriscado e brilhante”. 

O maior desafio de Isa Ferraz, ao construir um documentário de 100 minutos sobre Carlos Marighella, foi a ausência de imagens em movimento (filmes) do retratado. Ele, que viveu boa parte de sua vida na clandestinidade, deixou, também, poucas fotos. Quase nada se comparado, por exemplo, com Che Guevara, fotografado e filmado no mundo inteiro. Há, pelo menos, meia centena de filmes sobre o argentino- cubano. Sobre Marighela, há uma média- metragem de Silvio Tendler e agora o longa de Isa. Para resolver o problema, a cineasta recorreu a memórias de infância, colheu 27 depoimentos (escolhidos entre os 235 presentes no livro de Magalhães) e ao uso criativo e abundante do próprio cinema (documental e ficcional, brasileiro e estrangeiro). 

Isa somou imagens de filmes de Godard (Cine Tract 23), Agnes Varda (Panteras Negras), Cris Marker (On Vos Parle de Brésil), Gianni Minà (Che 40 Anos), Frank Capra (Por que Lutamos a Batalha da Rússia) e recorreu a trechos do épico Batalha de Argel, de Gilo Pontecorvo, filme que marcou profundamente o imaginário cinéfilo-politizado dos anos de 1960. 

Entre os brasileiros, o trecho de filme mais vibrante (e só poderia ser assim, num filme de mirada feminina) traz Dina Sfat, magnífica e imantada de rara energia, como a guerrilheira Cy, do Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade. Nada mais adequado para evocar a loucura criativa e a euforia política daquela época. E para realizar sonho de Isa, que – confessa – “na adolescência, sonhava em ser Dina Sfat”.

Além de Macunaíma, a cineasta cita, em sua busca de climas do período, O Caso dos Irmãos Naves, de Luiz Sérgio Person (neste filme, fala-se de tortura a presos comuns; em Mariguella, as imagens representam a tortura aos encarcerados políticos do regime militar), Barravento, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe (os três de Glauber), O Grito da Terra e Manhã Cinzenta (ambos de Olney São Paulo), Assalto ao Trem Pagador, de Roberto Farias, Estudantes – Condição ou Revolta, de Peter Overbeck (fotógrafo de O Bandido da Luz Vermelha), e muitos trechos de cine jornais.

Isa Ferraz, uma cinéfila apaixonada (que frequentou cineclubes como o do Colégio Equipe, o da GV, o Cine Biju, além de cinematecas brasileiras e estrangeiras) conta que desde que começou a sonhar com o filme Marighela (o primeiro roteiro foi registrado na Biblioteca Nacional, em 1986) o concebeu como um tecido que somasse filmes e mais filmes.

Ela já havia recorrido ao cinema (a trechos de filmes), em 2000, quando fizera O Povo Brasileiro, a partir de idéias de Darcy Ribeiro. “Sabia que a utilização de trechos de filmes num documentário sobre Carlos Marighella, além de trazer estes filmes para novo contato com os jovens, permitiria que fossem ressignificados”. Afinal, “cada plano fílmico tem sua sabedoria, sua carga significativa”. Um trecho de Macunaíma (ou de Caso dos Irmãos Naves) dentro de um filme sobre Marighella” – pondera – “ganha novas significações e isto me estimula muito”. A cineasta faz questão de lembrar que contou com a inestimável colaboração do pesquisador Remier Lion Rocha. “Ele tem uma cultura cinematográfica espantosa e me ajudou muito”.

Boa parte do orçamento do filme foi consumida na aquisição de direitos autorais por uso de imagens e de composições musicais. “Jean-Luc Godard” – conta Isa – “me cedeu de graça o trecho de Cine Tract 23”. Nunca é demais lembrar que o autor de Pierrot Le Fou entende que os filmes são patrimônios públicos (é famosa sua frase “o autor não tem direitos, mas sim obrigações”).

Xurupitó

Carlos Marighella foi um radical de esquerda, que abraçou a luta armada. Morreu fuzilado, aos 58 anos. Baiano, filho de pai anarquista italiano e mãe descendente de escravos, ele cresceu numa Bahia efervescente. O filme leva isto em conta. E tem muito humor. Dá ao escritor Antônio Risério o direito de evocar a “baianidade” daquele mulato marxista, que nunca gostou de cara fechada. Ao contrário – o fi lme mostra isso com vigor – ele tinha xurupitó.

Uma peça do teatro de revista da época, chamada É do Xurupitó, descrevia aqueles que eram possuidores de tal característica. Isa conta que deve “a uma tirada de Tia Iara (Gouveia)”, irmã afetiva da dona Clara Charf, viúva do guerrilheiro, as memórias do “xurupitó” do tio evocadas no fi lme. “Ter xurupitó” – explica Mário Magalhães – “significa que Marighella tinha um encanto especial”. Cativava os que com ele conviviam.

Poeta, amante do cinema, leitor voraz, o baiano nunca cultivou imagem sisuda, comum a boa parte da militância comunista de seu tempo. Era, como bem lembra Antônio Risério, um comunista à moda baiana.

O filme, além das memórias de Isa e das imagens de filmes, traz ótimos depoimentos do filho Carlos Augusto Marighella (xerox do pai), do escritor Antonio Candido, dos ex-guerrilheiros Takao Nakano e Antonio Carlos Fom e, principalmente, da viúva Clara Charf (corajosa, comovente, jamais piegas). Clara amou um “não-judeu, preto e comunista” (para desespero total do pai judeu). E Isa Ferraz não se esquece de dar voz a outras mulheres que participaram da luta política, como a terapeuta Eliane Toscano, a jornalista Rose Nogueira e Guiomar Silva Lopes, a última militante a manter um “ponto” (de encontro) com Marighella.

Dois astros black contribuem com seus talentos para amplificar as qualidades de Marighela. O baiano Lázaro Ramos lê os versos do poeta-guerrilheiro (em crônica semanal em O Globo, José Miguel Wisnik detectou qualidade literária em decassílabos sáficos do jovem Marighella, escritos em 1939 e dedicados à Liberdade). Mano Brown fecha a narrativa com um rap arrebatador, que já mereceu mais de 100 mil acessos no Youtube.

Dois momentos da vida do guerrilheiro

Tiroteio na matinê – O cinema inscreveu- se como cicatriz no corpo do guerrilheiro. Em 1964, ele se refugiou na matinê de uma sala carioca, para fugir de militares que o perseguiam. Não teve jeito. Foi localizado e baleado. Tudo foi documentado por um fotógrafo do Correio da Manhã, que também estava no cinema. Uma foto, presente no documentário, mostra cicatriz no corpo do guerrilheiro deixada pela bala. Mário Magalhães conta que na entrada da galeria, onde ficava o Cine Eskye-Tijuca, exibia-se o anúncio da comédia Rifi fi no Safári, estrelada por Bob Hope e Anita Ekberg. O anuncio publicitário do filme prometia “Um explorador de araque na África com a mais sensacional das louras”.

Rádio Nacional no Ar – Outro momento revelador e impactante na vida de Carlos Marighella registra a audácia de um técnico da Rádio Nacional. Ele trabalhava em programa policial de enorme audiência, que a emissora irradiava às nove horas da manhã. Pois foi no meio deste programa, que o técnico inseriu discurso-convocação de Carlos Marighella ao povo brasileiro para que se aliasse às forças que combatiam a ditadura militar. Quanta ousadia. Mário Magalhães registra, em seu livro: “15 de agosto de 1969: um comando guerrilheiro tomou os transmissores da Rádio Nacional em Piraporinha e colocou para tocar uma fi ta na qual um militante lia um manifesto escrito por Carlos Marighella”. 

 

Fonte: Brasil de Fato, Maria do Rosário Caetano, 5/12/11.

 


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