NC:
Posso compreender os seus sentimentos e compartilhá-los, mas não
sei que perda foi essa. Alguma vez isso foi certo? Que eu lembre
não houve nenhuma época; o termo intelectual chegou a ser de uso
comum em seu sentido moderno geral na época dos partidários de
Dreyfus. Era uma pequena minoria. Uma minoria pequena e impopular.
A massa de intelectuais apoiava o poder estatal. Durante a
primeira guerra mundial e pouco depois, em cada um dos países, os
intelectuais apoiavam apaixonadamente ao seu próprio estado e sua
própria violência. Houve um punhado de exceções, como Bertrand
Russel na Inglaterra ou Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht na
Alemanha ou Eugene Debs nos Estados Unidos, mas todos eles foram
para a prisão. Eram marginalizados e jogados na prisão. No círculo
de John Dewey, os intelectuais liberais dos EUA que eram
fervorosos partidários da guerra, houve um de seus membros,
Randolph Warren, que se manteve aparte. Não lhe colocaram na
prisão, EUA é um país bastante livre, mas lhe tiraram das
revistas, ficou intelectualmente exilado, etc. Assim é como sempre
ocorreu.
Dê uma olhada cuidadosa nos anos sessenta, um período de grande
ativismo: os intelectuais apoiavam muito a Martin Luther King e o
movimento pelos direitos civis sempre e quando se limitasse a
atacar alguém. Enquanto o movimento pelos direitos civis perseguia
xerifes racistas no Alabama, era extraordinário. Todo mundo o
exaltava. Quando se ocupou de questões de classe, ele foi
marginalizado e suprimido. As pessoas costumam esquecer que Martin
Luther King foi assassinado quando tomava parte em uma greve dos
trabalhadores do setor sanitário e que ia a caminho de Washington
para ajudar a organizar o movimento popular dos pobres. Bem, isso
supunha cruzar um limite, isso fazia sentir que ia por nós. Ia
contra os privilégios e o norte, etc. Por isso os intelectuais
desapareceram.
Com relação à guerra do Vietnã, ocorre exatamente o mesmo. Quase
não houve nada entre os intelectuais conhecidos – houve desde cedo
pessoas à margem da sociedade, jovens e demais -, mas entre os
intelectuais com prestígio, praticamente nada. Já no final, após a
ofensiva de Tet em 1968, quando a comunidade empresarial se voltou
contra a guerra, então tu poderias ver aparecer pessoas dizendo
“Sim, sempre estive contra a guerra”... Mas não há nem o menor
indício disso, nada em absoluto.
Na realidade, há que recorrer à história mais antiga. Vamos à
Grécia Clássica, quem bebeu a cicuta? Ao indivíduo se lhe acusou
de corromper os jovens de Atenas com falsos deuses. Tomem os
registros bíblicos. Não aparece o termo “intelectual”; mas há um
termo que significa o que eles entendiam por intelectual, o de
“profeta”. É uma má tradução de uma obscura palavra hebréia. Havia
os chamados profetas, intelectuais, que formulavam a crítica
política, condenavam o rei por provocar desastres, condenavam os
crimes do rei, pediam misericórdia para os viúvos e os órfãos,
etc. Bem, estas pessoas nós poderíamos chamar de intelectuais.
Como os tratavam? Eram denunciados como pessoas que odiavam
Israel. Essa é a frase exata que se utilizava. Essa é a origem da
frase “auto-ódio judio” no período moderno. E os aprisionavam,
deixavam-lhes no deserto, etc. Mas bem, haviam intelectuais que
eram elogiados: os aduladores da corte. Séculos depois,
chamaram-se de “falsos profetas”. Mas não neste preciso momento.
Desde então, ocorre quase sempre a mesma história.
Há umas quantas exceções. No período atual, a principal exceção
que conheço é a Turquia. É o único país onde eu sei que
importantes artistas, acadêmicos, jornalistas e editores – uma
gama muito ampla de intelectuais – não somente condenam os crimes
do Estado, mas também se envolvem em constantes desobediências
civis contra ele. Enfrentando e suportando frequentemente castigos
muito duros. Dá-me vontade de rir quando chego à Europa e escuto
as pessoas queixarem-se de que os turcos não são o suficientemente
civilizados para se incorporar à sua avançada sociedade. Poderiam
aprender várias lições com a Turquia. E isso é bastante incomum.
Na realidade, é tão incomum que apenas se conhece, não é possível
nem sugeri-lo. Mas, à parte da palavra “perdida”, creio que os
comentários de Chris Hedges são exatos, mas eu não consigo
perceber nenhuma perda.
Acredito que quase sempre aconteceu o mesmo. Desde cedo, o que
varia é a forma com que se trata esses intelectuais. Digamos que
pode ser que nos EUA sejam difamados ou algo assim, na antiga
União Soviética, na Checoslováquia nos anos sessenta e nos
setenta, podiam ser presos, como prenderam Havel. Se nessa época
te encontravas nos domínios americanos, como El Salvador, o
batalhão de elite treinado na escola especial de guerra dos EUA
podia arrebentar-te a cabeça. Portanto, sim, dependendo do país,
tratam-se as pessoas de forma diferente.
|
Amira
Hass:
Os levantes dos países árabes fizeram-lhe mudar ou revisar as
suas antigas análises? Afetaram, e como, as suas ideias sobre,
por exemplo, massas, esperança, Facebook, pobreza, intervenção
ocidental, surpresa?
(Jornalista israelense que vive na faixa de Gaza)
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NC:
Amira e eu nos reunimos na Turquia há um par de meses, tivemos um
par de horas para falar e nenhum de nós previu nada, talvez ela
sim, mas se o previu não disse nada, certamente eu não previ nada,
não estava sucedendo nada no mundo árabe, portanto, sim, mudei de
opinião a esse respeito porque foi algo inesperado. Por outra
parte, quando olhas para trás, não há diferença com o que ocorria
antes, exceto que no passado os levantes eram violentamente
reprimidos, e isso foi o que ocorreu em novembro, no início dos
levantes, no Saara Ocidental que Marrocos invadiu há 25 anos,
violando as resoluções das Nações Unidas e ocupando brutalmente.
Em novembro se produziu esse primeiro protesto não violento que as
tropas marroquinas controlaram violentamente, que é algo que há 25
anos seguem fazendo; foi bastante grave como para que se apresentasse
uma petição de investigação nas Nações Unidas, mas então a França foi
e interveio. A França é o principal protetor de atrocidades e crimes
na África Ocidental, são as velhas propriedades francesas, por isso
bloquearam a investigação das Nações Unidas do que foi o primeiro
protesto. O seguinte foi na Tunísia, de novo mais ou menos uma zona
francesa, mas teve êxito, derrubaram o ditador. E depois veio o Egito,
que é o mais importante devido a sua relevância no mundo árabe, que
foi imensamente notável, uma imensa demonstração de valor, dedicação e
compromisso. Tiveram êxito ao se desfazerem do ditador, ainda que o
regime não tenha, todavia, mudado. Talvez mude, mas ainda segue aí,
diferentes nomes, mas nada novo; esse levante, do 25 de janeiro, foi
dirigido pelos jovens que se autodenominaram como o Movimento do 6 de
abril.
Bem, o seis de abril se chama assim por uma razão, eles elegeram esse
nome porque foi a data de uma ação importante de luta um par de anos
antes, no complexo industrial têxtil de Mahalla, e que se acreditava
que seria uma greve importante, levaram-se a cabo atividades de apoio
e outras. Bem, foram reprimidos violentamente, isso foi em 6 de abril
e essa foi uma da série de greves. Certo é que pouco depois da
repressão do levante de 6 de abril, o presidente Obama foi ao Egito
dar seu famoso discurso sobre a aproximação ao mundo muçulmano e os
demais. Solicitou-se a ele em uma conferência de imprensa que dissesse
algo sobre o governo autoritário do presidente Mubarak e disse que
não, que Mubarak era um bom homem, que estava fazendo coisas boas
mantendo a estabilidade e derrotando a greve de 6 de abril e que isso
estava bem.
O mais chamativo é Barein. O que aí sucede está alarmando o Ocidente,
em primeiro lugar porque Barein alberga a quinta frota americana, uma
força militar importante na região. Segundo, porque é de maioria xiita
e se chega até ali justamente através de uma estrada construída desde
o leste de Arábia Saudita, que tem também uma população de maioria
xiita, e sucede que é onde se encontra a maior parte do petróleo.
Durante anos, os planejadores ocidentais se preocuparam pelos
incidentes históricos e geográficos dali, porque a maior parte do
petróleo mundial se encontra nas zonas xiitas, justamente ao redor
desta parte do Golfo, Irã, sul do Iraque, leste da Arábia Saudita.
Bem, se o levante de Bahrein se estende à Arábia Saudita, as potências
ocidentais vão se ver realmente em dificuldades e de fato Obama
modificou a retórica que utilizava oficialmente para falar dos
levantes. Durante um tempo falou de mudança de regime, agora fala de
alteração do regime. Não queremos que haja mudanças, é extraordinário
poder contar com um ditador que nos faça o trabalho sujo.
Na atualidade, um fato bastante surpreendente sobre tudo isto é
que..., dê uma olhada nos vazamentos de WikiLeaks, é muito
interessante. Os mais conhecidos no Ocidente, as grandes manchetes, os
vazamentos dos embaixadores que diziam que o mundo árabe nos apoia
contra Irã... Mas havia algo que faltava nessas reações nos jornais,
nos colunistas e outros, a saber: a opinião pública árabe, o que
queriam dizer com isso de que os ditadores árabes nos apoiam? O que se
passava com a opinião pública árabe? Não havia nada, não se informava
nada. Nos EUA: zero, creio que há um informe na Inglaterra, de
Jonathan Steele, e provavelmente nada na França, não sei. Mas sabe-se
bem, e muitas agências prestigiosas publicaram, que os árabes que
pensam que Irã é uma ameaça representam 10%.
A maioria, a imensa maioria, pensa que a maior ameaça vem dos EUA e
Israel. No Egito, 90% dizem que os EUA é a maior ameaça, na realidade
a política dos EUA é tão dura que eu acredito que no Egito quase 80%
pensam que o regime seria melhor se Irã tivesse armas nucleares. Por
toda a região, a maioria pensa assim. Voltando a John Berger e ao
termo democracia, a valorização dos intelectuais ocidentais da
democracia é tão profunda e está tão profundamente arraigada que a
ninguém ocorre perguntar o que pensam os árabes; quando nos sentimos
eufóricos de que os árabes nos apoiem, a resposta é que não nos
interessam, enquanto estejam quietos e submetidos e controlados,
enquanto há isso que chamamos de estabilidade, não importa o que
pensam. Os ditadores nos apoiam e ponto, sentimo-nos eufóricos perante
este tipo de vínculos, junto a uma boa quantia de questões... Mas,
voltando ao comentário de Amira Hass, o sucedido deveria nos levar a
pensar no que esteve sucedendo não somente no mundo árabe, mas em mais
lugares e que muito frequentemente está motivado por uma razão
essencial: a de terem sido submetidos com violência e assim ocorreu ao
longo de todo um século.
Quero dizer que os britânicos estiveram reprimindo o movimento
democrático no Irã há mais de um século. No Iraque, houve um levante
xiita e, tão logo como os britânicos improvisaram o país após a
primeira guerra mundial, reprimiram violentamente os grandes levantes;
um dos primeiros usos da aviação foi para atacar os civis. Lloyd
George escreveu em seu diário que isso foi algo grandioso porque
tínhamos que nos reservar o direito de bombardear os “negros”.
Continuou em 1953 quando os EUA e a Grã Bretanha se uniram para
derrotar no Irã o governo parlamentarista. De 1936 a 1939, houve um
levante árabe na Palestina contra os britânicos que foi violentamente
combatido.
A primeira Intifada foi de novo um levante popular muito importante.
Não foi violento em absoluto, mas sim, um verdadeiro movimento
popular, com grupos de mulheres protestando contra a estrutura feudal,
tentando destruí-la. Foi combatida sem piedade. Tão logo sucediam
coisas como essas, elas eram combatidas. O que é incomum nesta ocasião
é que na maioria dos países são suficientemente fortes como para poder
sustentar-se. Não sabemos o que sucederá no Barein e Arábia Saudita.
Na realidade, não sabemos o que vai suceder no Egito. O exército, que
conservou até agora ao menos o controle e o alto comando militar, está
profundamente embutido no velho regime opressor. Haviam se apoderado
de grande parte da economia, eram os beneficiários da ditadura de
Mubarak, não vão ceder facilmente, por isso nos resta ver o que vai
suceder ali.
|
Ken Loach:
Como superar o sectarismo na esquerda?
(Cineasta britânico)
|
NC:
Não acredito que consigamos algum dia. Há uma forma de sectarismo
que é bem vinda, a saber: a discrepância. Há muitas coisas pouco
claras, deveríamos discutir, buscar diferentes opções e, além
disso, ver o que quer expressar Ken com sectarismo e o que
significa em geral; são uma série de iniciativas que algumas vezes
tentam, e frequentemente conseguem, dividir os movimentos
populares. As pessoas individuais ou os grupos políticos que têm
sua própria agenda e querem se construir com o controle se
convertem em pequenos Lênin. Não acredito que algum dia esse tipo
de sectarismo seja eliminado. Pode-se marginalizá-lo, como por
exemplo, durante os levantes do mundo árabe, ou seja, Egito, a
Praça de Tahrir, eles foram surpreendentemente muito pouco
sectários e havia muitos pontos de vista diferentes, mas havia
unidade e um objetivo comum. Lamentavelmente, isso está começando
a alterar-se.
Justamente ontem houve uma manifestação de mulheres para exigir seus
direitos. Foram reprimidas. É uma sociedade muito sexista e atacaram
as mulheres. Ok, isso é sectarismo. Agora, há também um sectarismo
religioso em desenvolvimento, quero dizer que quando um objetivo comum
já não serve para unir as pessoas em luta, então te deparas com o
sectarismo. Essa é a forma de unir as pessoas. Por exemplo, no
movimento de trabalhadores nos EUA. A força trabalhadora foi
extremamente racista e não necessariamente só contra os negros; por
exemplo, no final do século XIX, tratavam-se igualmente os irlandeses
e os negros. Quero dizer que podias passear por Boston e ver cartazes
que diziam “Nem cachorros nem irlandeses”, etc.
Éramos chamados de hunos, isso significa alguém que vem da Europa
Oriental, um amargo racismo contra os bárbaros, contra os italianos,
estendia-se até onde alcançava a vista. Mas quando começam as ondas de
greves nos fins do século XIX e vão adquirindo importância, houve
lugares como os centros mineiros do carvão e do aço no oeste da
Pensilvânia, nos quais as pessoas tomaram as cidades e as governaram.
Neste ponto, o sectarismo desapareceu, o racismo desapareceu e se
uniram para tratar de conseguir algo. O mesmo ocorreu com a
organização CIO na década de 1930, superou o racismo contra os negros
e trabalharam juntos. Essa é a única forma que eu conheço de conseguir
as coisas. O mesmo aconteceu no movimento pelos direitos civis. Se
tiveres um objetivo comum e podes coordenar-te para tentar alcançá-lo,
então se deixam de lado os esforços sectários, não é que desapareçam,
há pessoas que seguem manobrando na periferia e talvez se os motivos e
os compromissos se suavizam, elas podem começar a tentar fazê-lo com o
todo, como começamos a ver no Egito, mas não conheço outra forma de
consegui-lo.
|
Paul
Laverty:
Provavelmente não houve nunca uma época na qual tenha ocorrido
tanta concentração da riqueza e de poder em tantas poucas mãos. Os
poderosos utilizam sistemas sofisticados para manter este estado
de coisas, mas talvez nós, na esquerda, utilizamos isto também
como desculpa para ocultar nossas deficiências. O que você pensa
que falhou em nosso esforço imaginativo para construir uma
campanha de massas internacional que democratize os recursos e
desafie o poder corporativo? Você pode imaginar uma época na qual
possamos organizar com êxito nossas vidas e economias sobre uma
base de cooperação ao invés de uma base competitiva?
(Advogado e
cineasta escocês)
|
NC:
Claro que posso imaginar e, na realidade, houve diversos
experimentos com êxito, alguns deles justamente agora. Nenhum
deles utópico, nenhum deles do tipo que eu ou você ou outros
aspirariam, mas não foram insignificantes. Tomemos, por exemplo, o
sistema de Mondragón, na Espanha, gerenciado pelos trabalhadores.
É uma forma de cooperativa que teve muito êxito, com um êxito
muito amplo.
Se olha ao redor dos EUA, há provavelmente centenas de empresas
autogerenciadas, não são imensas, ainda que algumas, sim, são bastante
grandes, mas estão tendo êxito. Tomemos justamente agora o Egito, uma
das coisas mais interessantes que estão sucedendo no Egito é que o
movimento dos trabalhadores, que se manteve militante durante anos
(como mencionei antes, este levante não saiu do nada), em alguns dos
centros industriais, como o caso de Mahalla, ao que tudo indica os
trabalhadores tomaram a empresa e a estão dirigindo. Bem, se isso é
verdade, esse poderia ser o começo de uma revolução, para voltar às
palavras de Berger. Portanto, sim, é perfeitamente factível.
O comentário sobre a desigualdade é muito real. Não conheço as
estatísticas detalhadas de outros países, mas nos EUA a desigualdade
está justamente agora no nível mais alto de sua história desde a
década de 1920. Mas isso é enganoso, porque a desigualdade nos EUA
está muito concentrada, no alto temos exatamente 1% da população.
Observe a distribuição dos ingressos, vai de forma muito aguda até o
extremo superior e é, literalmente, a décima parte do 1% da população.
Aí se dá uma riqueza extraordinária. De fato isso está impulsionando a
desigualdade, se tomas essa parte, vês que é desigual, mas não pode se
ocultar totalmente. Quem são? São os gestores de fundos de cobertura,
os diretores executivos, os banqueiros, etc. Bem, algo muito grave
esteve acontecendo.
Desde os anos setenta, a economia mudou de forma significativa,
“financiarizou-se”. Voltando aos setenta, as instituições financeiras,
os bancos, as empresas de investimento representavam uma pequena
percentagem dos benefícios corporativos. Agora, em 2007, por exemplo,
alcançaram 40%. Não beneficiam à economia, na realidade provavelmente
a prejudicam, não têm utilidade social, mas são poderosas. Com poder
econômico se controla o poder político. Por razões bastante óbvias.
Por isso conseguiram um extenso poder político, por exemplo, as
instituições financeiras que colocaram Obama no poder, é delas que
procede a maior parte de seu financiamento.
Com poder político tens a oportunidade de modificar o sistema
legislativo e isso é o que estiveram fazendo. Portanto, sobretudo
desde os anos oitenta, modificaram-se as políticas fiscais, as
políticas tributárias, para assegurar uma muito alta concentração da
riqueza. Modificaram-se as normas da governança corporativa. Permitem,
por exemplo, que o diretor executivo de uma corporação selecione a
junta que vai determinar o seu salário. Bem, tu podes imaginar quais
são as conseqüências de tudo isso. Na atualidade, lemos todos os dias
nos portais dos jornais, lemos sobre os imensos bônus que são dados
aos encarregados da gestão, daí é de onde sai.
Toda a regulação veio abaixo, com efeitos muito destacados. Isto se
generaliza pelo resto do mundo. Estou falando dos EUA porque é o que
melhor exemplo que conheço. Realmente, a regulação do New Deal impediu
até os anos oitenta que surgisse uma crise financeira. Desde a década
de 1980, crise após crise, várias durante os anos de Reagan, bastante
graves, de fato Reagan deixou o poder com a pior crise financeira
desde a depressão. O escândalo de Sayings & Loans, depois chegou
Clinton, depois esta crise da moradia, malditos oitocentos bilhões de
dinheiro desapareceram, a economia devastada. Bem, tudo isso é fruto
de decisões políticas.
Enquanto isso, o custo das campanhas eleitorais segue incrementando-se
e isso obriga as partes a irem profundamente aos bolsos dos setores
corporativos onde está o dinheiro. Espera-se que as próximas eleições,
em 2012, custem ao redor de 2 bilhões de dólares. Dê uma olhada na
administração Obama e se dará conta que esteve incorporando executivos
ao seu governo. São os que têm acesso ao financiamento das corporações
que vão comprar as eleições. As eleições estão convertendo-se em uma
mera farsa dirigida pela indústria das relações públicas. É um esforço
de marketing, estão dizendo abertamente. Na realidade, Obama ganhou o
prêmio da indústria da publicidade pela melhor campanha de marketing
em 2008, sabe-se exatamente do que se trata o assunto. Bem, tudo isso
é uma espécie de círculo vicioso. Aumenta a concentração da riqueza,
incrementa o poder político, que atua para aumentar ainda mais a
riqueza.
Por que não há reação? Agora, sim, está havendo reação, pela primeira
vez, o que está sucedendo em Wisconsin é uma reação muito importante.
Há dezenas de milhares de pessoas nas ruas, dia após dia, com muito
apoio popular, talvez lhes apoiem as duas terceiras partes da
população. Estão tentando defender os direitos dos trabalhadores, o
direito à negociação coletiva, que está sob ataque. Refiro-me ao fato
de que o mundo dos negócios compreende muito bem que a única barreira
perante a sua total tirania corporativa é o movimento organizado de
trabalhadores. Por isso há que destruí-lo. A história do movimento dos
trabalhadores nos EUA foi extremamente violenta, mais que na Europa e
ali se fizeram esforços e mais esforços para acabar com os sindicatos,
mas seguem renascendo. Agora há um esforço importante contra, mas está
se resistindo. Os grandes movimentos populares resistem.
Mas onde está a esquerda? É interessante o que está sucedendo agora
com a esquerda. Depois da década de 1960, na qual houve um grande
renascimento, não houve grande ativismo na esquerda. Há agora muito
jovens mais ativistas que nos anos sessenta. Mas os problemas mudaram.
Algumas vezes são denominados como pós-materialistas. São temas
importantes, não os deprecio. Os direitos dos homossexuais, os
direitos ambientalistas, os direitos das mulheres, são todos
importantes, mas não chegam a preocupar as pessoas que estão sofrendo
um desemprego em níveis de época de depressão. Não chegam aos 20% da
população que necessita de bônus de ajuda alimentícia. Não houve este
tipo de difusão e organização. Por isso, quando começaram há umas duas
semanas os protestos em Wisconsin, não houve praticamente nenhuma
iniciativa da esquerda. Bom, um par de personalidades bem conhecidas
chegou para dar uma palavra, mas nada mais, não estava organizado por
grupos de esquerda que deveriam estar no mesmo coração de tudo. Mas
estão por aí e é melhor que se apresentem ou vamos ter problemas.
Ainda que o ativismo de esquerda seja importante, muito importante,
está bastante divorciado da luta diária pela sobrevivência e uma vida
decente da maioria da população e essa é uma brecha que deve ser
superada de algum modo.
|
Alice
Walker:
Creio que é inevitável a solução de um único Estado ao impasse
Palestina/Israel, e que é mais justa do que poderia ser a solução
dos dois estados. Isto se deve ao fato de que não acredito que
Israel deixe alguma vez de tentar ter sob seu controle os
palestinos, sejam já cidadãos de Israel ou vivam nos territórios
ocupados. Com a solução dos dois Estados haveria um estado
israelita e um bantustão palestino.
(Escritora
estadunidense e autora do livro A Cor Púrpura)
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NC:
Surpreendeu-me muito seu rechaço à ideia de um Estado como algo
quase absurdo e gostaria de entender por que pensa assim. Não há
nenhuma esperança de que israelitas e palestinos possam viver
juntos como os brancos e negros após a caída do apartheid, na
África do Sul?
É uma pergunta
interessante. Ela é uma mulher maravilhosa, faz um bom trabalho, está
realmente comprometida com a causa palestina, mas a pergunta diz algo
sobre o recente movimento de solidariedade palestino. Quero dizer, se
eu tivesse lhe feito a pergunta, digamos, por que pensa que é absurdo
tentar defender direitos civis para os negros nos EUA? Ela teria se
sentido desconcertada, dedicou grande parte de sua vida nisso. De
fato, a única resposta possível seria: De que planeta você saiu? Isso
é o que estive fazendo toda a minha vida.
É exatamente o
mesmo aqui. Já faz setenta anos que estamos defendendo o que na
recente ressurreição recebe o nome de um acordo para Um Estado. O
acordo para Um Estado, que não é solução. Esse Acordo de Um Estado
chama-se, frequentemente, de um acordo binacional e se se pensa nele,
sim, terá de ser um acordo binacional. Isso foi o que eu estive
fazendo quando era um jovem ativista nos anos quarenta, em oposição a
um Estado judeu. E assim continuarei sempre. E é duro perder isso.
Desde os últimos anos da década de 1960 escrevi toda uma série de
livros, um número imenso de artigos, palestras constantemente,
milhares delas, entrevistas, sempre ao redor do mesmo. Tentando
trabalhar por um acordo binacional, em oposição a um Estado judeu.
Fiz toneladas de
trabalhos sobre este tema, trabalho ativista, escrevendo, etc. Mas não
é somente o slogan e acredito que é por isso que alguém como Alice
Walker o desconhece. Não é somente um slogan, “vivamos juntos e
felizes”. Trata-se de enfrentar seriamente o problema. Quando és sério
sobre isso, pergunta-te “como podemos conseguir?” Bem, depende das
circunstâncias, como todas as opções táticas. No período anterior a
1948, era simples, não queremos um Estado judeu, tenhamos um Estado
binacional. De 1948 a 1967, dizias a ti mesmo que não era sensato
eleger essa posição. Em 1967 abriu-se de novo a possibilidade. Houve
uma oportunidade em 1967 de avançar para algum tipo de sistema federal
para depois chegar a uma integração mais estreita, talvez um autêntico
Estado laico binacional.
Em 1975,
cristalizou o nacionalismo palestino e se introduziu na agenda, e a
OLP ponderou um acordo de dois estados, com o imensamente doloroso
consenso internacional dessa época para um acordo de dois estados na
forma que todo o mundo conhece. De 1967 a 1975 era impossível
defendê-lo diretamente e era um anátema, algo odiado, denunciado
porque era ameaçador. Era ameaçador porque podia cumprir-se e isso
prejudicaria a formação política. Portanto, enquanto se davam conta,
denunciava-se e difamava-se. Desde 1975 podias ainda manter esta
posição, mas tinhas de enfrentar a realidade, que teria que se
alcançar por etapas. Há somente uma proposta que nunca escutei, a de
que vivamos todos juntos em paz; a única proposta que conheço,
começando com o consenso internacional, é a do acordo de dois Estados.
Reduzirá o nível de violência, o ciclo de violência, abrirá
possibilidades para uma interação mais estreita que já se produz em
algum nível, inclusive nas circunstâncias atuais, comercial, cultural
e outras formas de interação. Isso poderia levar a desgastar as
fronteiras. Isso poderia levar a uma maior interação e talvez a algo
como o velho conceito de Estado binacional.
Chamo agora de
acordo porque não acredito que este seja o final do caminho. Não vejo
razão particular alguma para render culto às fronteiras imperialistas.
Assim que quando minha esposa e eu nos voltamos para quando éramos
estudantes e íamos com a mochila pelo norte de Israel, e sucedia que
cruzavas o Líbano, porque não há uma fronteira marcada, já se sabe,
aparecia alguém nos gritando e nos dizendo para voltar. Por que
deveria fazer uma fronteira ali? Foi imposto mediante a violência
francesa e britânica. Tínhamos que avançar até uma maior integração de
toda a região, não se fazia um acordo de um Estado se é que falamos da
palavra. De qualquer forma, há uma série de coisas equivocadas com
respeito aos Estados, por que deveríamos prestar culto às estruturas
estatais? Teríamos de miná-las. Mas bem, em uma série de passos. Se
alguém pode pensar em outra via para chegar até aí, então deveria nos
contar. Podemos lhe escutar e falar sobre isso. Mas não sei de outra
via. Portanto, tudo o que estive escrevendo e falando é demasiado
complexo para colocá-lo em uma mensagem de twitter. Nesta época, isso
significa que não existe. Tens de apoiar tanto o acordo para dois
Estados como o acordo para um Estado. Tens de apoiar ambas as coisas,
porque uma delas é o caminho para conseguir a outra. Se não fazes o
primeiro movimento, não vai a lugar algum. Agora Alice Walker diz que
Israel não aceitará um acordo de dois Estados. Tem razão. Tampouco vai
aceitar o acordo de um Estado. Portanto, se esse argumento tem alguma
força, sua proposta está fora de lugar, a minha também.
Por esse mesmo
argumento, poder-se-ia tratar de demonstrar que o apartheid nunca
teria fim. Que os nacionalistas brancos nunca aceitariam por fim ao
apartheid, o que é verdade, então, Ok, renunciamos a luta contra o
apartheid. Indonésia nunca renunciaria a Timor Leste, os generais
diziam alto: “é uma província nossa e vamos mantê-la”. Isso tinha sido
verdade se as ações tivessem se produzido no vazio. Mas não havia tal
vazio, havia outros fatores implicados. Um dos fatores, que é
importante, e de fato nestes casos é decisivo, é a política
norte-americana. Bem, isso não está gravado em pedra. Quando a
política dos EUA mudou sobre a Indonésia e Timor Leste, tomou-se
literalmente uma frase do presidente Clinton para conseguir que os
generais indonésios se fossem. Em um determinado momento ele disse:
“Acabou-se”. E se retiraram.
No caso do
apartheid, foi um pouco mais complicado. Cuba desempenhou um grande
papel. Por exemplo, Cuba expulsou os sul-africanos de Namíbia e
protegeu Angola. Isso teve um grande impacto. Mas foi quando mudou a
política dos EUA, até 1990, quando esse movimento, o apartheid, veio
abaixo. Agora, no caso de Israel, EUA é decisivo. Israel não pode
fazer nada sem contar com o apoio dos EUA. Proporciona-lhe apoio
democrático, militar, econômico e ideológico. Quando esse apoio se
retira, fazem o que os EUA dizem. E assim sucedeu realmente uma e
outra vez.
Portanto, se
fosse verdade que se estivesse atuando em um vazio, nunca teriam
aceitado algo que não fosse o que estão fazendo agora. Apoderando-se
da prisão que é a Gaza, apoderando-se de todo o território que lhes dá
vontade, já se sabe, e assim seguirão. Mas não estão atuando em um
vazio. Há coisas que podemos fazer, como em outros casos, para mudar
isso. E neste caos, penso que pode se considerar e, inclusive,
traçar-se um plano para poder avançar em direção ao acordo de um
Estado como um passo até algo inclusive melhor; há que seguir. Pelo
que se pode ver, o único caminho para conseguir isso é apoiando o
consenso internacional como primeiro passo. Um passo, um prelúdio para
mais passos. Isso significa ações muito concretas. Não temos de
organizar um seminário para discutir as possibilidades abstratas. Há
passos muito concretos que podemos dar.
Por exemplo,
retirar o exército israelense da Cisjordânia. Essa é uma proposta
concreta e há toda uma série de medidas a adotar para levá-la a cabo.
Por exemplo, a Anistia Internacional, que não é precisamente uma
organização revolucionária, pediu um embargo de armas sobre Israel.
Bem, se os EUA, Grã Bretanha, França e outros, se os povos podem
pressionar os seus governos para que aceitem essa proposta e dizer que
haverá um embargo de armas ao menos que retires o teu exército da
Cisjordânia, isso teria efeito. Há outras ações que poderiam ser
feitas. Se o exército sai da Cisjordânia, os colonos irão também com
eles. Subirão nos caminhões que lhes facilitem e se transladarão desde
suas casas subvencionadas na Cisjordânia para as suas casas
subvencionadas em Israel. Da mesma forma como fizeram em Gaza, quando
lhes foi dada a ordem. É provável que alguns fiquem, mas isso não
importa, se querem seguir em um Estado palestino, isso é assunto seu.
Portanto, há coisas muito concretas que podem ser feitas. Sei que não
é questão de estalar os dedos e já está, mas não é pedir muito mais
que o tipo de coisas que sucederam em outras partes quando a política
das grandes potências mudou, sobretudo a dos EUA.
* Frank Barat é coordenador do Tribunal Russel sobre Palestina e acaba
de editar o livro de Noam Chomsky e Ilan Pappé Gaza in Crisis:
Reflections on Israel’s War Against the Palestinians.
Traduzido do inglês para Rebelión por Sinfo Fernández
Traduzido para Diário Liberdade por Gabriela Blanco
Extraído de www.brasildefato.com.br