Licença para matar e desmatar
Escrito por Leo Lince*
Existe, sim, um nexo efetivo entre a votação do Código Florestal e os
novos assassinatos de trabalhadores rurais. Não adianta negar. Por
mais que cause irritação em setores do governo, nos donos do
agronegócio e nos políticos que lhes prestam serviço no parlamento
brasileiro, tal vínculo existe. É ele, aliás, que explica também o
surto atual de crescimento das áreas desmatadas.
Quem aperta o gatilho, claro, é um pistoleiro de aluguel. Mata,
arranca a orelha para provar a execução do serviço, recebe o pago do
mandante e fica acoitado na espera de novas encomendas. Pistolagem,
grileiros, contrabando de madeira de lei, desmatamento ilegal, entre
outras, são violências antigas no campo brasileiro. Mas flutuam de
intensidade a depender das relações de forças na política. Os que
assassinam opositores e destroem florestas estão, na quadra atual,
certos da impunidade, e se imaginam respaldados de cima.
O método do arrastão com correntes entre tratores abre clareiras
quilométricas. Por sua ostensiva visibilidade, só é praticado quando
se tem a absoluta certeza da impunidade. O mesmo acontece com o
assassinato de trabalhadores com militância ambiental. Trata-se de
recado para sinalizar posição de mando, intimidar, definir quem reina
no pedaço. Sem garantia de impunidade, seria um tiro pela culatra. São
crimes conexos e articulados ao estupro do Código Florestal. Quando os
conservadores ostentam maioria em cima, os que barbarizam na base
nadam de braçada.
Estufadinhos de dinheiro, os donatários do agronegócio estão com a
bola toda na política. A corporação dos ruralistas hegemoniza um
espantoso arco de alianças. Os maiores partidos da mal chamada
oposição, PSDB e DEM, votaram com eles. A maioria da base de apoio do
governo, o PMDB unido e boa parte do PT, também. Vale ressaltar, para
espanto de alguns, o papel desempenhado no processo pelos
ex-comunistas do PC do B. O deputado Aldo Rabelo, com seu semblante de
jagunço, foi o relator da matéria e assumiu a condição de grande
timoneiro da proposta conservadora. Segundo as más línguas, ele
operou, na linha chinesa, como bom discípulo de Deng Xiaoping: “não
importa a cor do gato, importa é que ele financia campanha...”.
O governo, atordoado pelo descontrole total de sua base, reagiu como
quem ainda não sabe o que fazer. Formou grupo interministerial, criou
comissões. Michel Temer, o vice em exercício, antigo mordomo que agora
dá cartas, requentou velhos programas e liberou grana parca para
pequenos deslocamentos burocráticos. Quantia ridícula, que não paga
palestra do Lula, nem consultoria do Palocci. Maria do Rosário,
responsável pelos direitos humanos, disse que não pode garantir
segurança sequer para um terço da lista dos ameaçados de morte.
Os marcados para morrer que se cuidem, pois a alma do governo está
empenhada ao agronegócio. Como afirmou o advogado da Comissão Pastoral
da Terra em Marabá, José Batista Afonso, “o governo desde o início
optou por acordo com setores ligados ao agronegócio para garantir a
governabilidade e abriu mão de implementar políticas públicas que
contrariassem esses interesses”. Tratados a leite gordo, os herdeiros
da violência secular do latifúndio vão continuar aprontando, da ponta
engomadinha até a cauda envenenada.
Donatário de capitania, senhor de engenho, latifundiário, grande
fazendeiro, ruralista, os nomes mudam, mas a mentalidade é a mesma.
São tiranos de baraço e cutelo, donos de gado e gente, portadores de
uma arrogância consolidada em cinco séculos de latifúndio. Os debates
sobre o Código, transmitidos ao vivo pela TV Câmara, atualizaram esta
triste realidade.
Em pleno século 21, a hegemonia dos reacionários nos faz lembrar
Oswald de Andrade. Na mesma década do século passado, falando sobre
realidades vindas de séculos anteriores, ele escreveu um poema que
parece mais atual do que nunca. O título, ao modo da época, é “Senhor
Feudal”. São cinco breves versos que resumem o que continua valendo:
“Se Pedro Segundo/Vier aqui/Com história/Eu boto ele na cadeia”.
Os donos da terra se julgam donos de tudo e não aceitam qualquer
limite para seu arbítrio absoluto: não precisam de licença para matar
e desmatar.
* Léo Lince é sociólogo.
Fonte: Correio da
Cidadania.