Folha: de rabo preso com a ditadura de plantão
Escrito por
Sergio Domingues
A Folha de S. Paulo
completou 90 anos no sábado, dia 19 de fevereiro. Nascido em 1921, o jornal
só ganhou o nome atual em 1931. Até então, era Folha da Noite. De 1986 a
2010 foi a publicação jornalística de maior circulação do país. Perdeu o
primeiro lugar para o tablóide mineiro Super Notícia. Mas, sem dúvida segue
sendo um dos mais influentes no país.
Relembrando sua história,
o jornal fez uma confissão rara em sua edição do dia 20/02. Assumiu
claramente seu apoio ao golpe militar de 1964. Disse que sua redação foi
entregue a jornalistas "entusiasmados com a linha dura militar" como parte
de uma reação da empresa "à atuação clandestina" de militantes da Ação
Libertadora Nacional (ALN) nas dependências do próprio jornal. Uma desculpa
mais que esfarrapada.
Quanto ao uso de suas
caminhonetes de entrega de jornal por agentes da repressão, a Folha atribui
o relato a denúncias de presos políticos e não as confirma. Mesmo assim,
surpreende a admissão do papel do jornal no apoio à ditadura. Ou não?
Na verdade, esse
repentino ataque de franqueza nada tem de contraditório. A Folha fez um
movimento inteligente no início dos anos 1980. Pressentindo a crise do
regime militar, trocou seu apoio à ditadura dos generais pela militância
pela ditadura do mercado. Essa guinada recebeu o nome de Projeto Folha. O
próprio histórico publicado no jornal ajuda a esclarecer:
A Folha foi o jornal que
mais se associou às Diretas. Seu engajamento é anterior ao das principais
lideranças de oposição que, em fins de 1983, ainda não formavam uma frente
compacta, deixando prevalecer os interesses partidários. Nessa altura,
quando o movimento mal conseguia encher uma praça, o jornal criticou o
sectarismo dos políticos e o silêncio da imprensa.
Ou seja, sentindo as
dificuldades do governo dos generais para se manter no poder, a Folha
cobrava da classe dominante unidade em torno de outro projeto. O movimento
das Diretas teria sido o "o apogeu do consenso suprapartidário das
oposições". Mas, uma vez derrotada a emenda que propunha eleições diretas
para presidente, "cada partido tratou de traçar sua própria estratégia".
"Respondendo a essa
fragmentação, continua o texto da Folha, a direção do jornal elegeu o
pluralismo e o apartidarismo (...) como os principais pilares do Projeto
Folha". Segundo o final feliz do histórico do jornalão paulista, "o Projeto
Folha transformou-se numa influente escola de jornalismo". Teria se tornado
um veículo apartidário e comprometido com a sociedade civil. Ou conforme
campanha publicitária dos anos 1980, um jornal "de rabo preso com o leitor".
José Arbex foi um dos
jornalistas que acompanhou esse projeto muito de perto. Fazia parte da
redação da Folha na época de sua implantação. Em seu livro "Shownarlismo"
(Casa Amarela-2001), Arbex diz que o Projeto Folha significou a adoção do
discurso para o mercado. Nada mais do que o tratamento da notícia como
mercadoria.
A pose da Folha como
porta-voz da democracia, escondia uma política interna autoritária. Um
rígido controle industrial e ideológico da produção de informação
materializado em seu famoso Manual de Redação. Arbex diz que o jornal
escolheu "a estratégia de transformar a democracia em marketing".
Na verdade, trata-se da
adoção da "democracia de mercado", em que o que importa é o funcionamento
das leis capitalistas. Se a Folha sobreviveu à censura dos generais, por que
não veria com tranqüilidade a implantação de um sistema baseado em eleições
e outras liberdades? Afinal, a condição de monopólio da mídia empresarial já
lhe garantia poder suficiente para funcionar como um bloqueio econômico à
verdadeira liberdade de informação. Foi isso o que a Folha enxergou antes de
sua concorrência.
O Projeto Folha implicava
uma opção clara. Era pelo fim do apoio da empresa à ditadura política dos
militares. Mas também pelo engajamento na defesa do livre funcionamento da
ditadura das leis do mercado. Uma postura que ajudava também a reforçar o
lado conservador da "transição democrática". Aquele que tentou e conseguiu
manter o essencial dos aparelhos de repressão reforçados pela ditadura
militar. Algo que resultou, por exemplo, no tratamento ilegal e violento
dispensado pelas polícias e forças de segurança a pobres e negros. Assim
como na criminalização dos movimentos sociais.
Essa promessa de fé no
império da acumulação do capital ajuda a explicar algumas recaídas que
lembram a relação submissa do jornal com o regime militar. Uma delas foi o
episódio da "ditabranda", palavra inventada pela Folha em editorial de
fevereiro de 2009. O neologismo procurava dar à ditadura de 64 um caráter
moderado.
Esta espécie de ato falho
talvez revele disposição em aceitar a volta do uso de medidas ditatoriais.
Basta que se mostrem necessárias para garantir a enorme concentração de
poder e lucros das grandes corporações.
Mas, a razão mais
concreta da recente "confissão" da Folha parece ser mais simples. Por
ocasião de seus 90 anos, o jornal colocou à disposição do público seu
conteúdo integral desde 1921. São quase 2 milhões de páginas totalmente
indexadas. Uma medida que certamente deixa mais óbvias muitas das relações
podres da Folha com o poder.
Aí, a melhor política
passa a ser confessar logo aquilo que vai ficar claro demais para ser
negado. Mais uma amostra da linha flexível do jornal quando se trata de
manter o essencial de seu projeto. Além disso, aproveita o momento em que os
principais atores políticos do país se recusam a acertar contas com os
carrascos da ditadura.
O aniversário da Folha
mereceu um discurso da presidenta da República em evento comemorativo. Dilma
não nega nem renega sua atuação na resistência à ditadura. Mas, manteve em
seu governo Nelson Jobim, figura submissa à cúpula conservadora das Forças
Armadas. A última proeza de Jobim foi propor a cassação da anistia concedida
a militares que se rebelaram contra o golpe de 64.
Acrescente-se a isso a
presença de Dilma nas comemorações do jornalão paulista. Péssimo sinal. O
evento festejava mais uma vitória da mídia empresarial. Saudava sua
capacidade de disfarçar seus interesses particulares e antipopulares com a
máscara da liberdade de imprensa. Comemorava a maestria da Folha em esconder
seu rabo preso às ditaduras de plantão. As políticas e as econômicas.
Sergio Domingues é dono do blog
Mídia Vigiada.
Fonte: Correio
da Cidadania
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