Estados depositam segurança global nas mãos de mercenários
Nos últimos anos, a contratação de mercenários em conflitos militares
tem crescido no mundo todo
A Organização das
Nações Unidas (ONU), através do Grupo de Trabalho sobre o Uso de
Mercenários, sinaliza para um quadro alarmante: o ressurgimento das
empresas privadas militares e de segurança em conflitos bélicos
representa uma ameaça aos direitos humanos e à autodeterminação dos
povos.
Durante reunião
do Conselho de Direitos Humanos da entidade, em setembro deste ano, em
Genebra (Suíça), a relatora da pasta Faiza Patel pediu aos países
membros uma maior regulação da atividade dessas empresas, e a
responsabilização dos mercenários por abusos cometidos.
Foram analisadas
pela ONU as experiências de uso de mercenários em conflitos sociais na
África do Sul, Guiné Equatorial e Iraque, em 2010 e 2011. Segundo a
relatora, elas representam exemplos distintos de um mesmo problema: o
Iraque como um palco de atuação de multinacionais da segurança
privada; a África do Sul como uma fonte de combatentes com experiência
profissional e militar na área – que não encontram emprego desde o fi
m do apartheid, em 1994 ; e a Guiné Equatorial com o envolvimento de
grupos de mercenários na tentativa de um golpe de Estado, em 2004.
“Dupla face”
Esses exemplos
ajudam a ilustrar o que o professor de Relações Internacionais da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Reginaldo
Mattar Nasser, chama de a “dupla face da privatização da segurança”.
Segundo ele, “um dos primeiros argumentos que justificam o
aparecimento dessas empresas é que elas ocorriam onde os Estados eram
‘fracos’, principalmente aqueles que entraram em colapso na África ou
no Oriente Médio. A outra face da moeda é que as grandes potências
passaram a utilizar cada vez mais essas forças para suas ações”.
Destaca-se, nesse contexto, o uso de mercenários, pelos Estados
Unidos, nas invasões do Iraque e Afeganistão.
No cenário
internacional, tais empresas contratam para o seu corpo de
funcionários ex-combatentes militares de qualquer lugar do mundo e
passam a vender seus serviços para clientes, também, de qualquer parte
do globo – são consideradas multinacionais nesses aspectos.
Em situações de
conflito, elas atuam em diversas áreas, como logística, serviços de
inteligência, treinamento de tropas e combate de fato. Algumas das
grandes multinacionais do ramo são a Blackwater (que mudou de nome
para Xe), DynCorp e Triple Canopy. Estima-se que o mercado global da
segurança privada movimente cerca de 100 bilhões de dólares anuais.
A edição de 2011
da “Pesquisa sobre Armas Leves”, publicada em julho pelo Instituto de
Graduação em Estudos Internacionais e do Desenvolvimento (Genebra,
Suíça), com base em dados da ONU, registra que entre 19,5 e 25,5
milhões de pessoas são empregadas em segurança privada no mundo,
número que ultrapassa o de policiais em nível global.
Por que usá-las?
A explicação de
Nasser para a questão do uso das forças privadas de segurança ajuda a
compreender a preocupação da ONU com a violação dos direitos humanos
decorrente da atuação de mercenários. Para ele, entre as “vantagens”
que servem como justificativa para o uso de empresas de segurança está
a de que, nos combates, os mercenários não entram nas estatísticas de
baixas dos exércitos. “Quando morre alguém em combate ele não volta no
caixão com a bandeira de seu país, porque não está formalmente
combatendo pelo seu país, ele foi contratado”, sintetiza o professor –
fazendo referência ao que se convencionou chamar de “Síndrome do
Vietnã”, ou seja, o repúdio que tomou conta da opinião pública
estadunidense quando os caixões com os corpos dos soldados que morriam
na guerra no Sudeste Asiático começaram a desembarcar no país.
Outro ponto que
preocupa a ONU diz respeito à falta de regulamentação do direito
internacional para os crimes cometidos nesse tipo de conflito. Os
seguranças contratados não são passíveis de serem julgados por
tribunais de guerra, pois eles não são soldados que compõem as Forças
Armadas de uma nação. Nasser explica que diante disso “os trabalhos
chamados de ‘serviços sujos’ ficam nas mãos dos mercenários, como
torturas e execuções”.
Outra ameaça é a
“privatização da segurança” se chocar com a democracia. Como esse é um
serviço terceirizado, quem contrata, por vezes, é o próprio Estado.
Desse modo, tal custo entra no orçamento sem a necessidade de passar
pela aprovação do Congresso, o responsável por liberar ou não os
recursos públicos para as guerras. “Isso é uma ‘vantagem’ também
porque não expõem [a questão do uso de mercenários] ao debate público.
Nesse sentido, chama a atenção a questão da democracia. São fatos e
acontecimentos da maior importância que não aparecem em público”,
conclui Nasser.
Entre os diversos
casos possíveis de relato, as guerras do Iraque e do Afeganistão – no
contexto de “guerra global ao terror” – são os mais emblemáticos. No
livro “Blackwater – A ascensão do exército mercenário mais poderoso do
mundo”, o jornalista Jeremy Scahill relata como essa empresa faturou 1
bilhão de dólares somente com os contratos firmados com o Departamento
de Defesa estadunidense para atuar no Iraque até 2007. De acordo com o
autor, os mercenários da Blackwater não foram punidos judicialmente
por nenhum das dezenas de crimes cometidos contra civis iraquianos.
Para além das
guerras
A relatora da ONU
para a questão, Faiza Patel, afirmou em outro painel da entidade,
realizado em novembro deste ano, que as preocupações do órgão não
podem se restringir ao uso de seguranças privados em guerras. Ela
sinaliza que “não são apenas os governos que se aproveitam dos seus
serviços, mas também as ONGs, empresas privadas e até as Nações
Unidas”, como nos casos das ajudas humanitárias ou em conflitos como
na Bósnia e na República Democrática do Congo. Entram também na gama
de atividades do setor a atuação em um número crescente de países que
combatem o narcotráfico, a exemplo da Colômbia, e em programas de
reconstrução pós-conflito.
O uso de milícias
privatizadas por empresas transnacionais, que atuam no ramo de
extração de minério e petróleo, para proteger seus funcionários e
instalações, como em vários países africanos, é relatado pelo
professor da PUC como mais um exemplo de possibilidades do setor. “As
empresas de segurança atuam diretamente no funcionamento de economias
do tipo de extração de recursos e de circulação de mercadorias,
qualquer que seja a empresa, independentemente do país a que pertença.
É como contratar um segurança para uma agência bancária, só que em
dimensões muito maiores. Inclusive, as empresas de segurança
participam com o fornecimento de veículos, armas e assim por diante”,
observa Reginaldo Nasser.
Megaeventos
“Se nós pensarmos
quais são as percepções a respeito de ameaça – em todo e qualquer
lugar onde se tem fluxo de pessoas, bens e mercadorias, que está
passível de ser alvo de ataques e, portanto, deve ser protegido –,
qualquer que seja o tipo de atividade, ela vai passar a ter uma
atuação maior dessas empresas privadas. Inclusive, alguns analistas já
têm feito a especulação a respeito das consequências das Olimpíadas e
da Copa do Mundo que ocorrerão no Brasil”.
O apontamento
feito por Nasser sinaliza para um possível efeito que os megaeventos
esportivos que serão sediados pelo Brasil podem trazer ao mercado da
segurança no país e, também, para a entrada de grupos multinacionais
do setor em seu território.
À medida que as
concessões do governo para a atuação de empresas do ramo de segurança
vão sendo garantidas através de mudanças nas leis, os cuidados com a
fiscalização e controle por parte do Estado deveriam acompanhar essas
alterações. Segundo Nasser, essa abertura do uso de meios de violência
– antes monopólio estatal – para a atuação empresarial devem soar como
um alerta de perigo, uma vez que “corroem os princípios que sustentam
o estado democrático de direito”, pois, embora estejam sobre a
vigência da lei do país, o acionamento de mecanismos de proteção dos
direitos humanos em relação a esse tipo de atividade fica
comprometido.
Ele acrescenta
que o crescimento da atuação de empresas de segurança “é uma tendência
muito forte” e que “se deve ter o máximo de cuidado no Brasil com
essas atividades, porque, além de tudo, a linha que separa o que é
passível de ser reprimido ou sofrer ação dessas forças e outras
situações é muito tênue. E, por vezes, elas podem estar atuando contra
movimentos sociais, movimentos políticos ou até no cotidiano da vida
das pessoas”.
Fonte: Brasil de
Fato, Vivian Fernandes, 8/12/11.