Estudante da USP: "A única visão que eu tinha era das botas"
Uma estudante da
USP denuncia, em depoimento, que foi agredida e ameaçada por PMs na
ação de reintegração de posse da reitoria. Ela tentou registrar as
agressões na polícia, mas não conseguiu. "Um deles pegou na minha
nuca, bateu minha cabeça no chão várias vezes, na parte do couro
cabeludo, para não deixar hematoma. Nisso passou um repórter da Globo,
o primeiro a chegar no local. Quando eu o vi achei que era minha
salvação: comecei a gritar e falar o que estava acontecendo. O
repórter olhou com o maior desprezo e passou direto".
Nadya Krupskaya
(nome fictício), 25, é professora de filosofia na rede estadual e
estudante da USP. Ela foi uma das detidas após a reintegração de posse
da reitoria da universidade. Na operação, conduzida no dia 8 de
novembro, participaram cerca de 400 policiais, com carros, cavalos e
helicópteros. Para desarmar os possíveis protestos de alunos, PMs
impediram a saída de moradores do Crusp (conjunto habitacional da USP)
durante a ação, usando inclusive bombas de gás para tal fim.
Nadya afirma que
não estava na reitoria durante a operação e que foi presa e levada
para dentro do prédio por PMs, após tirar fotos da operação. Ela está
sendo indiciada, junto a mais de 70 pessoas, por desobediência à ordem
judicial e dano ao patrimônio público.
Dentro da
reitoria, ela alega ter ficado sozinha por 30 minutos com policiais
homens, que a teriam agredido e ameaçado. Na delegacia, diz que tentou
registrar as agressões, mas segundo a delegada que ouviu os detidos,
não era possível registrar tal depoimento.
Segundo advogados
que representam os estudantes detidos, o relato dela será a base de
uma denúncia que deve ser feita ao Condepe (Conselho Estadual de
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), após o resultado dos exames de
corpo de delito, ainda não finalizado.
Depoimento dado a
Raphael Sassaki:
Eu ocupei a
reitoria, participei do movimento, mas na noite da reintegração de
posse, eu não dormia lá. Eu estava no meu apartamento no Crusp, quando
acordei assustada com os barulhos dos helicópteros iluminando meu
quarto. Em seguida, desci pra ver o que acontecia, muitos amigos
estavam na reitoria.
Lá embaixo, PMs
impediam as pessoas de sair, inclusive as que tinham que ir trabalhar
ou pessoas que tem que acordar de madrugada para tocar pesquisas nos
instituto, e também, claro, quem queria ir para a reitoria ver o que
acontecia. Ainda estava bem escuro.
Eu desci junto
com essas pessoas e, passado alguns minutos vendo aquela situação,
começamos a sair por uma lateral do prédio.
Chegando próximo
à reitoria, eu comecei a tirar fotos em frente ao cordão de isolamento
da polícia, para registrar o que acontecia. Nisso apareceu um policial
por trás de mim, apontando uma arma de grosso calibre. Eu fiquei
paralisada; na minha frente o cordão de isolamento e atrás um cara
armado.
Ele me pegou , me
disse que eu estava detida e me mandou deitar no chão. Chegaram mais
dois PMs, que já me jogaram no chão para me imobilizar; eu comecei a
gritar, já que eu não estava lá dentro e eles não tinham justificativa
legal para me deter, eu só estava filmando.
Foi quando um
deles falou: "É melhor levar ela pra dentro". Na delegacia falaram que
eu tentei entrar na reitoria. Como eu vou entrar em um lugar cheio de
polícia, passando pelo cordão de isolamento?
Eles me levaram
arrastada pra frente da reitoria, quebraram o vidro e entraram. Era
uma sala escura, não havia nenhum aluno, só policiais homens.
Lá, me colocaram
de pé e mandaram deitar no chão. Como eu não fiz imediatamente o que
me pediram, eles chutaram minha perna, que ficou roxa. Acredito que
isso conste no exame de corpo de delito.
Quando me jogaram
no chão, um homem sentou nas minhas pernas, próximo ao meu bumbum, e
dois no meu tronco, pressionando com o joelho meu corpo no chão. Havia
vários em volta fazendo uma roda, porque como estavam ao lado do
vidro, se alguém estivesse passando poderia ver.
A única visão que
eu tinha era das botas. A sala estava toda escura. Devia ter uns 12
homens ali, algo descomunal para imobilizar uma mulher. O que me
chocou e o que os advogados querem caracterizar como crime de tortura
foi que nesse momento os policiais apertaram meu pescoço e taparam
minha boca e meu nariz.
Eu sou asmática e
quase desmaiei. Eles são sarcásticos, riam de mim, falavam que eu não
ia sair dali. Eu gritava e batia as mãos no chão, e eles falavam "você
está pedindo arrego?"
Um deles pegou na
minha nuca, bateu minha cabeça no chão várias vezes, na parte do couro
cabeludo, para não deixar hematoma. Eu tentei reagir e mordi a mão do
PM que segurava minha boca. Quando fiz isso, eles me falaram: "Você
conhece o porco?".
O porco é uma
bolacha de plástico que enfiaram na minha boca e me impedia de falar e
dificultava minha respiração, pois sou asmática. Eu fiquei com isso na
boca enquanto eles falavam: "é melhor ficar quieta senão vai ser
pior".
Eu pensei que não
havia mais ninguém lá dentro, que todo mundo já havia sido retirado e
que iam fazer o que quisessem comigo. Depois eu soube que tinha uma
sala ao lado, onde as meninas ouviram tudo o que aconteceu ali, elas
são minhas testemunhas. Onde eu estava, não tinha uma mulher, ninguém.
Depois de vários
minutos dessa situação, me prenderam com um lacre, com as mãos pra
trás. Apertaram isso muito forte e me levantaram pelos cabelos do
chão; tiraram o 'porco' da minha boca e me levaram pra outro lugar,
mais iluminado.
Eu reclamava do
meu braço, que ficou roxo; isso não saiu tanto no corpo de delito, já
que ele foi feito às 2h da quarta-feira, e a reintegração foi às 5h do
dia anterior.
Eu reclamava que
meu braço doía muito quando passou um repórter da Globo, o primeiro a
chegar no local, o que fez toda a cobertura da desocupação. Quando eu
o vi achei que era minha salvação: comecei a gritar e falar o que
estava acontecendo. O repórter olhou com o maior desprezo e passou
direto.
Mas os câmeras
filmaram um pouco, tanto que as imagens estão no Jornal Nacional, onde
eu reclamo da minha mão. Eu falando o que tinha acontecido eles não
colocaram. Um cara [PM] ainda me falou "viu, não adianta nada você
reclamar".
Eu não conseguia
ficar de pé, mas eles me forçavam; um PM pegou o cassetete e apertou
contra a minha garganta pra eu ficar em pé, junto à parede.
Eu estava assim,
quando chegou uma policial mulher, uma loira, que imagino que eu possa
identificar no processo -- foram 25 mulheres presas e apenas 3
policiais mulheres, que contamos, essa era a única loira.
Eu achei que ela
fosse ter o mínimo de sensibilidade. Eu falei [para o PM] 'você vai me
bater de novo?". Nisso a policial mulher chegou, tirou ele de lá e
falou: "Ele não pode te bater, mas eu sou mulher e posso" e pegou na
minha blusa e me jogou duas vezes contra a parede. Eu reagi e dei uma
cotovelada; ela saiu.
Eles continuaram
em volta de mim. Essa loira reapareceu com minha máquina dentro da
caixinha; achei delicado terem guardado, somente para ver depois que a
máquina estava quebrada e sem o cartão de memória.
A policial
[mulher] ainda me falou: "Se você colaborar eu vou te levar junto das
meninas, senão, você vai ficar aqui com os meninos [os PMs] viu?".
Me levaram para a
sala, onde todas as mulheres estavam sentadas no chão com vários
policiais, que tampavam o vidro com escudos para que não pudessem
vê-las.
Tinha mais
polícia do que meninas, como se fossem oferecer grande risco. Elas
disseram que eles falaram: "Não se preocupem com os gritos, é
procedimento normal". Ainda disseram, 'não é nada, é só uma louca que
entrou gritando'. Depois, soube que foram 30 minutos aproximadamente
que eu fiquei sozinha com os PMs.
Ficamos um bom
tempo nessa sala e começaram a me ligar. Eu atendi e disse que estava
lá dentro; ninguém entendeu o que eu tava fazendo lá. Eu disse que
passava mal, que precisava da minha bombinha. Aí sim os policiais
acreditaram que eu tinha asma e 20 minutos depois me trouxeram minha
bombinha, que meu namorado levou.
Depois mandaram
eu desligar o celular e ficamos incomunicáveis. Havia vários policias
sem farda, à paisana, filmando nossos rostos. Todos os PMs estavam sem
identificação, dentro e fora. Reclamamos disso e a PM que me agrediu
disse: "O que você entende de Polícia Militar pra saber o que PM pode
ou não?".
Fomos levados
para a sala principal, onde ficam os quadros dos reitores. Colocaram a
gente na parece e nos obrigaram a sermos fotografadas, armados e
ameaçando, vestidos com roupa normal e sem identificação. Sem
identificação por quê? Porque se acontecesse algo muito sério ninguém
poderia ser punido?
Eles sabem onde
eu moro, sabem meu nome, por isso não me identifico. Eu estou visada
por que eles sabem que o que fizeram foi irregular. Eles têm imagens
nossas, de perfil, de lado, fizeram um 'book' da gente. Estávamos
todos assustados, porque não sabíamos o que ia acontecer.
Nos levaram para
a delegacia, onde ficamos mais de 20 horas. Durante o interrogatório,
nos perguntaram nosso número USP. Por que isso importa? Pra reitoria
nos perseguir?
Eles disseram que
íamos somente assinar um termo circunstancial e ser liberados, mas
depois de um ligação recebida, mudaram e decidiram nos imputar os
crimes, inclusive formação de quadrilha e crime ambiental, que depois
foram desconsiderados.
Fui atentidada
pela delegada [Maria Letícia Camargo], tentei falar para ela sobre a
violência que praticaram comigo; ela me disse que o questinário partia
do pressuposto que eu estava lá dentro, e que não havia uma lacuna
onde ela pudesse relatar o que que queria falar.
Então resolvi
declarar em juízo. Quando eu saí, tinha um policial gordinho de olhos
azuis, que quis botar as meninas que estavam fumando para dentro do
ônibus. Como questionamos isso ele me disse: "É pra você acatar, que
você já conhece minha força"; Eu disse 'então você estava lá, seu
filha da puta, você me agrediu'. Depois disso ele desapareceu e eu não
o vi mais.
Eu tentei fazer o
boletim de ocorrência, mas a delegada se negou a registrar.
E é por isso que
eu estou dando esta entrevista, porque ela teve a pachorra de dizer
depois, em entrevista, que nenhum estudante alegou ter sido agredido.
O Movimento
Havia uma
comissão para fazer material, outra para falar com a imprensa. Tinha a
comissão de segurança, para garantir que não entrassem PMs nem
imprensa, e que não fotografassem as pessoas. Tinha comissão de
cultura, música, dança. É um absurdo falar que era um movimento de
traficantes. Acha que tantas pessoas se organizaram dessa forma pra
defender somente o direito de fumar maconha?
Ninguém ali está
lutando pelo direito individual, polícia tem em todo lugar. Defendemos
o direito de ter uma universidade de fato pública e aberta, para que
as pessoas não tenham suas bolsas revistas e sejam punidas por crimes
que não cometeram.
Agora os
policiais estão ali, sabem onde eu moro, e podem me intimidar para eu
não denunciar. Você pode achar um exagero, mas na USP há um programa
de vigilância, com câmeras escondidas e funcionários do Coseas
registrando as pessoas, inclusive relatórios da vida íntima e política
das pessoas.
É estranho a
mídia nos tachar de burguesinhos, porque se de fato fôssemos, o que
íamos querer era justamente polícia pra nos proteger 'dos favelados'.
Eu já fui babá,
monitora escolar, bóia fria, frentista de posto de gasolina, trabalhei
em fábricas, em telemarketing, no comércio.
Hoje sou
professora na rede pública estadual, dou aulas de filosofia para
crianças. Quando eu voltei para a escola os alunos falaram: "Êba, a
professora foi solta!". Eles já sabem que as coisas não são como
mostram.
Eu nasci no sul
do país, meu pai era militante e coordenador do MST, já morei em
acampamento e isso sempre foi natural. Eu vim para a USP porque aqui
me parecia um lugar livre, onde tinha moradia estudantil e jovens
podiam pensar livremente; tudo engano.
Desde criança
sempre tive um veia crítica sobre as coisas; eu não sou direita, mas
também não sou xiita ou radical, como falam.
Sou só uma
estudante que se indigna, que quer uma universidade que não seja só
para ela; a USP pra mim foi um sonho, e eu queria que outras pessoas
pudessem compartilhar isso.
Não queremos
universidade para a elite, mas para os trabalhadores e filhos de
trabalhadores, algo que o reitor tenta impedir, bancado pelo governo.
Sou apenas uma
indignada, que gosta de estudar, fazer política e morar no Crusp.
Espero que eu não seja jubilada e possa prestar concurso para dar aula
como professora efetiva, sem sofrer nenhuma represália, principalmente
da própria universidade.
O outro lado
A Polícia Militar
disse não ter conhecimento sobre os fatos relatados pela professora e
disse que a Corregedoria da PM está aberta para denúncias contra a
ação policial.
A PM também
afirma que nenhum detido durante a operação foi ferido, segundo o
resultado do exame de corpo de delito.
Negando isso, a
Secretaria de Segurança Pública disse que o laudo do exame fica pronto
em 30 dias a partir do pedido e que não é possível consulta antes
deste prazo.
A Polícia Militar
ainda afirma que todos os homens da corporação devem usar
identificações durante as operações, mas ressalta que é possível que a
identificação tenha sido dificultada por causa dos coletes táticos
usados, que encobririam o nome.
Segundo a PM, as
pessoas levadas para dentro da reitoria foram presas pois depredaram
viaturas.
O delegado Dejair
Rodrigues, titular da 3ª Delegacia Seccional, disse que “entre as
perguntas formuladas pela Polícia Civil aos estudantes, uma delas
abordava a questão de possível agressão durante a desocupação,
entretanto, todos os jovens manifestaram o desejo de somente se
manifestar em juízo; e tudo foi acompanhado pelos advogados.”
Fonte: Ag. Carta
Maior, Raphael Ken Ichi Sassaki, 28/11/11.