Escândalo Murdoch reitera que mídia comercial jamais terá serventia
pública e cidadã
Por Gabriel
Brito*
Os últimos dias
chacoalharam o Reino Unido com um escândalo nos moldes em que seus
famosos tablóides adoram se lambuzar. Graças à sanha comercial que
pauta os veículos de comunicação da atualidade, uma monumental rede de
espionagem sustentada pelo jornal dominical News Of The World (NotW)
veio à tona, escandalizando toda a comunidade britânica e
internacional, especialmente com os desdobramentos que ainda se
desenvolvem.
Nessa teia
criminosa, o jornal de propriedade do bilionário das comunicações
Rupert Murdoch conseguiu grampear telefones e mensagens particulares
de cerca de 4000 mil pessoas, entre elas políticos, celebridades,
nobres, veteranos das guerras do Iraque e Afeganistão e vítimas de
crimes. Em resumo, os protagonistas diários desse tipo de imprensa,
antes de sensacionalista, espúria e alienante.
Ligações
perigosíssimas
As suspeitas
sobre tais práticas já existiam há uns bons anos, mas eram
acompanhadas com parcimônia pela mídia local, apesar de contar com
alguma ênfase dos rivais da News Corporation, o conglomerado que
abarca todos os negócios de Murdoch na comunicação. No entanto, o caso
de escuta ilegal da caixa postal de uma garota de 13 anos desaparecida
aparenta ter sido o estopim, diante do fato de que ao acessarem e
apagarem seus recados, deram esperanças à família de que ainda
estivesse viva.
Dessa forma,
sucedeu-se aquilo que ninguém queria: uma série de escândalos sendo
descortinados a partir do primeiro, desmoralizando as cortejadas
instituições da nação e o recém-eleito governo dos Conservadores. No
momento, o primeiro-ministro David Cameron tenta convencer a opinião
pública e o Parlamento de que não tinha idéia das práticas de Andy
Coulson, seu assessor de comunicação que anteriormente fora editor do
NotW. Já os números 1 e 2 da Scotland Yard, Paul Stephenson e John
Yates, não resistiram aos fatos e já deixaram seus cargos, pois ficou
inequívoca a conivência da direção policial com os esquemas de escutas
e espionagem contratadas pelo jornal. Além disso, contrataram Neil
Wallis, ex-executivo do NotW, como relações públicas... Pra completar,
a ex-editoria, presa e já solta sob fiança, Rebekah Brooks, tinha
passe livre nos corredores, eventos e festejos que envolviam a
política, a corte e o que há de influente na sociedade inglesa.
Isto é, a
impostura que parecia restringir-se somente a um veículo privado de
imprensa explode mundialmente por expor uma série de promiscuidades
nas engrenagens do Estado, funcionando em total sinergia com os
executivos de redação de uma grande corporação, que após fazerem
carreira no folhetim circense foram contratados para trabalhar em
altos escalões do governo e até da própria polícia.
Com isso, o
castigo por tamanha leniência com um grande barão da mídia veio a
cavalo: após anos encostando governos e autoridades na parede com sua
rede de chantagem e poder, quando o escândalo virou notícia o foco
logo se voltou às autoridades britânicas, após breves esclarecimentos
de Murdoch na Câmara dos Comuns, ao lado de seu filho e executivo da
News Corp., James.
E assim, Murdoch
ganha tempo e forças para se defender com mais contundência nas
próximas semanas. Já o governo inglês, com toda a crise financeira que
lhe aperta o calo, apenas perde. E a atenção que deveria recair sobre
o bilionário de nacionalidades australiana e estadunidense vai se
desfazendo em várias direções.
Quem só vê
caras...
Já o resto da
imprensa comercial, acompanha tudo com uma mistura de estupefação e
cautela. No primeiro caso, pelo óbvio engulho que causa a qualquer
pessoa as ilegalidades do NotW. Já no segundo, para evitar questionar
pontos que afetam por tabela toda a mídia, não apenas o império de
Murdoch.
Como de costume
nos casos que escancaram a inerente corrupção das democracias calcadas
nos valores liberais de mercado, a mídia prefere priorizar os desvios
de conduta dos personagens envolvidos ao invés de questionar o que
permite a um empresário chegar a tal patamar de influência e hegemonia
sobre as comunicações e conseqüentemente sobre a própria sociedade que
habita.
Dessa forma,
Coulson, Stephenson, Rebekah e, para coroar, Cameron, são os que devem
explicações ao público, principalmente ao enorme contingente de
espionados. Já o mega-aparato de desinformação e manipulação levantado
por Murdoch ao longo de três décadas, passa ao largo das discussões.
Ainda por cima aproveita-se a oportunidade para desmoralizar a
regulamentação na mídia, visto que a Inglaterra dispõe de tal advento
e foi lá que esse enorme descalabro ocorreu.
...não vê o
capitalismo
Entretanto, ao
invés de pararmos para avaliar quem é o mais delinqüente de todos,
deveríamos voltar a nos questionar novamente sobre a necessidade de
mecanismos anti-monopólios e aprimoramentos na regulação midiática. Ou
ainda, podemos questionar se a regulação da mídia não é mera quimera
em meio a uma sociedade capitalista, inerentemente contraventora e
fraudadora, pois o lucro é o céu e o resto não se discute.
Apesar dos
ditames do mercado realmente já terem abduzido os profissionais do
setor há tempos, não é crível que tal esquema para consecução de
informações privilegiadas que resultavam em mais exemplares e anúncios
vendidos, com entranhas na direção da Scotland Yard, fosse comandando
por subordinados e toda uma numerosa redação sem que o grande capo
sequer suspeitasse, mesmo após seus editores terem sido contratados
para trabalhar nas instituições estatais...
Mas diante da
evidente teia de promiscuidades –
como bem descreve o jornalista Luiz Egypto - o movimento de abafa
não poderia faltar com seus socorros. Começando pelo próprio
parlamento britânico, que mostrou todo seu temor e submissão ao
magnata ao chamá-lo para depor como colaborador, não como suspeito,
mesmo sendo o chefe dos tais ‘jornalistas’ há anos e tendo acesso
livre aos corredores do governo desde os tempos de Thatcher...
Tudo fica ainda
mais suspeito quando após relatos estarrecedores o ex-repórter do
jornal, Sean Hoare, aparece morto em casa. Ele havia contado a todos
que Coulson o estimulava abertamente a se utilizar das escutas, além
de ter revelado alguns podres do jornalismo atual, contando que ele e
vários outros profissionais são pagos para seguirem estrelas e
celebridades e conviver com elas no mesmo ritmo de extravagâncias e
alucinações, em meio a diversões regadas a toda sorte de drogas,
bebidas etc. Pode ter sido queima de arquivo ou um mal súbito de quem
já estava com a saúde completamente deteriorada por tamanho ‘empenho
profissional’, mas torna tudo ainda mais nebuloso.
E para ilustrar
porque devemos esquecer os lacaios do magnata que praticaram todos
esses delitos contra a privacidade e a reputação das pessoas, deve-se
relembrar o tamanho do império de Rupert Murdoch e todo seu poder de
destruição, conforme resgatado pelo professor
Venício Lima de
matéria da France Presse:
“A News
Corporation é um império midiático e de entretenimento construído por
seu fundador, Rupert Murdoch. Cobrindo uma enorme região geográfica,
cotado em bolsa em Sydney e Nova York, o grupo se distingue também
pela diversidade de suas atividades, que vão da TV aos jornais, do
cinema à internet, contando também com ícones da imprensa conservadora
como The Times e Wall Street Journal, e tablóides sensacionalistas
como News of the World e New York Post. À frente do conglomerado,
Rupert Murdoch, 80 anos, seu presidente-executivo e “self made man”
nascido na Austrália, mantém as rédeas de um império de US$ 60 bilhões
em ativos e um volume de negócios anual de US$ 33 bilhões no exercício
encerrado no fim de junho. (…) Na Inglaterra, adquiriu primeiramente o
News of the World e depois o The Sun, o tablóide mais popular da
atualidade, o tradicional The Times e o Sunday Times. Também possui,
entre outros 175 títulos, o The Australian e o The New York Post. Nos
Estados Unidos, país onde reside e do qual se tornou cidadão, sua
cadeia de notícias a cabo Fox News, que durante a invasão ao Iraque
bateu a pioneira CNN em audiência, jamais ocultou seu apoio ao governo
do republicano George W. Bush. Além da cadeia Fox, o grupo News Corp.
impôs-se na televisão a cabo na Europa (BSkyB na Grã-Bretanha ou Sky
na Itália, nascida da fusão Stream/Telepiu) e também na Ásia, com sua
filial Star TV. Murdoch também tem interesses no mundo editorial
(HarperCollins) e no cinema, com os estúdios Twentieth Century Fox,
que produziu êxitos mundiais como Guerra nas Estrelas e Titanic. (…)
Em 2007, um dos maiores êxitos do grupo foi a compra da Dow Jones e do
Wall Street Journal, por um total de US$ 5,6 bilhões”.
É de perder o
fôlego somente a leitura do patrimônio de Murdoch. Dessa forma, fica
claro porque ele decidiu fechar o NotW imediatamente após a explosão
da crise em voga, pois trata-se claramente de apenas um fração mínima
de seus negócios ‘jornalísticos’. Com simplicidade, demitiu os 200
redatores do jornal e culpou seus editores executivos pelas
iniqüidades, apesar de outro ex-editor, Colin Myler, ter declarado
após o depoimento de Rupert e James que o segundo sabia no mínimo
desde 2008 das escutas. Assim, diante da teia de relações dissecada,
não faltam motivos pra suspeitarmos que na verdade todos os citados no
caso tinham idéia da existência do esquema.
Aliança com o
imperialismo, o belicismo e o financismo, não com a sociedade
Além do monopólio
estrondoso, é necessário lembrar que a News Corp. foi aliada de
primeira hora dos mais conservadores setores da sociedade
norte-americana e européia, dando legitimidade e cobertura épica às
invasões do Afeganistão e Iraque, além de participar do processo
difamatório de diversos países cujos governos divergem dos EUA e atuam
à revelia de suas ordens, tais como Venezuela, Equador, Bolívia, Irã e
até outros menos demonizados pela mídia comercial e de direita.
Seu império
midiático serve até hoje para os discursos delirantes e
ultra-reacionários do Partido Republicano, que atingiu as raias da
loucura ao cunhar de nazistas ou socialistas alguns programas de
governo do democrata Obama, emprestando terreno fértil também para a
ascensão do Tea Party, a nova vertente ultraconservadora da política
estadunidense.
Dessa forma, o
episódio das escutas ilegais reforça dois entendimentos cada vez mais
consolidados. O primeiro é que a mídia comercial jamais servirá a uma
comunicação cidadã, que vise justiça e ofereça igualdade de voz e
oportunidades a todos os segmentos. Ela estará sempre refém de suas
relações políticas e comerciais, vitais para sua sobrevivência e
sucesso econômico. A outra necessidade que volta a transparecer, cada
vez mais reforçada, é a do controle social da mídia, no sentido de
evitar toda sorte de monopólios, oligopólios e burlas que façam um
mesmo império ter incontáveis ramificações por todos os locais em que
se queira instalar e reinar.
A regulação tem
seus limites
No entanto, com
uma globalização do capitalismo que não foi acompanhada pela formação
de arcabouços jurídicos igualmente globais e fortemente respeitados,
não se pode depositar todas as esperanças na regulação a ser
estabelecida ou aprimorada por governos de democracias capitalistas,
historicamente coniventes com os desserviços da mídia comercial,
geralmente muito bem relacionada nos altos escalões de poder.
Murdoch não é
exceção alguma, e sim o padrão de empresário da mídia. Suas práticas
não diferem em nada se compararmos com os donos dos veículos
comerciais brasileiros. Não à toa, não se vêem editoriais enérgicos,
as matérias tratam apenas de relatar as delinqüências dos subalternos
e outros magnatas da estirpe de Roger Cohen até ganham espaço em
artigos encomendados para defender um tradicional habitué do ranking
Forbes de bilionários.
Seu caso ganhou
corpo e virou manchete internacional por conta da sordidez de suas
“investigações jornalísticas”, jamais imaginadas pela vasta maioria do
público consumidor de seus folhetins e programas. Resta ao governo
inglês conseguir abafar o caso e seguir a vida, aos demais governos
esconderem melhor suas relações espúrias com barões da comunicação,
aos Murdoch continuar tocando seus negócios. E aos que ficam fora
disso, seguir na construção de outra mídia.
* Gabriel Brito é jornalista.
FONTE: Correio da Cidadania