A
desagradável fragrância da oliva... e a mídia em continência
Por
Gabriel Brito é jornalista*
Nesse mal acabado e degenerado
regime político brasileiro, cunhado maliciosamente de democracia,
tem-se sentido com preocupante freqüência o nauseante fedor da oliva,
semelhante àquele que adoeceu o país por duas décadas e com alto poder
de intoxicação.
Como se sabe, a abertura dos
arquivos da ditadura militar, além de um maior empenho por justiça que
suas vítimas ainda esperam, foi outro ponto em que o governo Lula
decepcionou os setores populares da sociedade, aqueles que o alçaram
ao poder após anos de luta política, inclusive contra o abjeto regime
da caserna.
No entanto, além de não ter
empreendido o esperado aprofundamento de nosso projeto de democracia,
o governo petista ainda permitiu que voltassem a eclodir, eu não diria
isoladamente, alguns ovinhos de serpente. Escrito por
Gabriel Brito.
O começo
Vale lembrar que o governo
Lula sempre tentou aprovar pautas progressistas repentinamente, sem
buscar amparo popular, de modo que ao se defrontar com o fanatismo
conservador do outro lado da trincheira, logo capitulava e colocava no
saco seu pacote de boas intenções. Aparentemente, uma tática
consciente de ‘jogar pra torcida’ e arrefecer suas bases. E um caso em
que tal característica de atuação (a covardia, o jogo duplo, que a
política ‘moderna’ batizou governabilidade) se deu foi na tentativa de
implementar o 3º. Plano Nacional de Direitos Humanos, em fins de 2009.
Como pode ser conferido na
redação completa do projeto, o Plano apenas visava aprofundar os
mecanismos legais, já existentes e protegidos pela Constituição, de
acesso aos direitos básicos de qualquer democracia, ou seja, educação,
saúde, saneamento, cultura etc. Passava ainda pela intenção de
regulamentar outras questões relativas aos direitos individuais, como
o aborto, a união homoafetiva sem prejuízo de direitos civis, questões
de direitos humanos, carcerários...
Porém, um ponto afetou
profundamente o humor de nossa mídia comercial: a democratização do
feudo brasileiro da comunicação. Outro, fez mal às iluminadas mentes
que habitam ‘nossas’ forças armadas: a instauração da Comissão da
Verdade, Memória e Justiça.
Foi a senha para que velhas
alianças fossem tiradas de empoeirados sarcófagos. A mídia grande,
aliada da ditadura, não gostou de ver as diversas obscuridades da
comunicação postas em xeque (como as concessões de radiodifusão e seus
incontáveis desrespeitos às leis e pessoas). Já as Forças Armadas, não
gostaram da possibilidade de ver seu passado de traição à pátria ser
escarafunchado e seus integrantes, até hoje prestigiados e graduados,
deslocados para o devido lugar da história, o da vergonha e
esquecimento.
A pressão foi feita e como
sempre o governo petista recuou, entregando um arremedo de PNDH e
desprestigiando de forma lamentável todo o trabalho levado a cabo
através de inúmeros fóruns públicos, das mais diversas áreas, e em
especial do Secretário de Direitos Humanos Paulo Vannucchi - de
elogiável trabalho pela elucidação e punição dos crimes daqueles
fatídicos anos.
A Comissão que cuidaria da
autêntica justiça de transição à democracia foi reduzida ao seu
primeiro objetivo: a verdade. Porém, como nos lembra a jurista Inês
Virginia Prado Soares, em artigo na revista do Movimento Ministério
Público Democrático*, "de modo sistemático, a comunidade internacional
menciona quatro obrigações do Estado: a) adotar medidas razoáveis para
prevenir violações de Direitos Humanos; b) oferecer mecanismos e
instrumentos que permitam a elucidação das violências; c) dispor de um
aparato legal que possibilite a responsabilização dos agentes que
tenham praticado as violações; d) garantir a reparação das vítimas,
por meio de ações que visem a reparação material e simbólica".
Perna curta...
Nessa direção, convergem os
fatos de o Brasil ser signatário de diversas convenções dos direitos
humanos (sempre fáceis de cobrar dos outros, como ensinam os EUA) e
subordinado à Comissão e Corte Interamericanas, que ajudaram a
desnudar outro setor visceralmente aliado ao passado sujo e fardado da
nação: o judiciário, que absurdamente interpreta a Lei de Anistia de
1979 como extensiva àqueles que praticaram crimes ligados ao
terrorismo de Estado (os generais fardados e torturadores),
considerados pelo Direito Internacional como de lesa-humanidade e,
portanto, imprescritíveis. Além do mais, não houve anistia "ampla,
geral e irrestrita", uma vez que aqueles que foram corretamente
anistiados pelos crimes políticos não puderam ter suas condições
anteriores ao golpe restabelecidas. Por exemplo, vários funcionários
públicos, das mais distintas esferas, que jamais foram reconduzidos de
volta aos seus cargos.
Nisso, a mídia mostra toda sua
podridão, ao se colocar em favor da falaciosa ‘conciliação’ histórica,
mostrando, de fato, que não tem a menor idéia do que é cidadania e
humanidade. As incontáveis torturas e execuções cometidas por
policiais do período pós-ditadura, em números muito maiores (!), já
esclareceram todas as pessoas de boa fé do país que o passado
autoritário e criminoso não foi superado, devendo, portanto, ser
revisitado.
No entanto, tamanha farsa
felizmente tem perna curta. Não tardou para que após o vergonhoso
parecer do STF a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenasse o
Brasil pela primeira vez em tal âmbito, devido à negligência nacional
em buscar restos mortais dos guerrilheiros do Araguaia. Aliás, nossas
forças armadas voltaram a ter papel vexatório no assunto, esbanjando
má-vontade em colaborar com o governo nas buscas, que não à toa deram
em nada.
"Essa sentença condenatória
mostra o caráter invariavelmente dúplice das classes dirigentes
brasileiras: civilizadas por fora e selvagens por dentro", afirmou o
jurista Fabio Konder Comparato, em artigo recente no Correio.
Comparato, aliás, referência em lutas de direitos humanos, não escapou
do fogo autoritário da Folha de S. Paulo, no memorável caso
‘ditabranda’, gerando protestos contra o folhetim e escancarando, mais
uma vez, sua verdadeira faceta, que agora volta a disfarçar na
cobertura das revoltas árabes.
"Acontece que, como diz o
ditado, ‘a morte liquida todas as contas’. "Nossos dirigentes vão
obviamente esperar que os últimos assassinos, torturadores e
estupradores sobreviventes do regime militar entreguem suas almas a
Deus (ou ao demônio), para informarem à Corte Interamericana de
Direitos Humanos de que sua decisão (é bem o caso de dizer) foi
religiosamente cumprida", completa Comparato.
As forças armadas de hoje
Em meio ao apanhado de
recentes exibições de autoritarismo em oliva, devidamente apoiadas por
setores aliados à ditadura de ontem e auto-declarados democratas,
podemos fazer também uma breve avaliação da atuação militar dos dias
de hoje. E constatamos que continuamos desprovidos de qualquer motivo
de orgulho.
Na mais notória de suas atuais
atividades, o exército brasileiro (?) comanda desde 2004 a ocupação
militar do Haiti, configurando mais um capítulo trágico para a sua já
nada nobre história. Como se sabe, nenhuma das mazelas sociais
haitianas foi minimamente reduzida, o país segue no chão um ano após o
terremoto de 200 mil mortes e os cascos azuis (como são chamadas as
tropas) já foram acusados de incontáveis crimes contra os direitos
humanos e de também vedarem a participação política de líderes
comunitários e partidários mais radicais, apresentando-os à mídia -
sempre em continência - como marginais ou subversivos - expediente
familiar...
Dessa forma, sabendo que não
se pacifica nenhum país com armas e exércitos estrangeiros deixando de
lado as necessidades sociais e humanas, não foi difícil levantar a
lebre sobre o que estaria fazendo, realmente, esse exército em terras
tão arrasadas como as do país centro-americano.
O governo brasileiro deu a
resposta, empregando-o vez por outra em operações de segurança tidas
como mais complexas (como as do Pan 2007), até chegar à consagração da
ocupação dos morros do Complexo do Alemão, num dos capítulos mais
farsescos da história nacional de ‘luta’ contra o crime. Não precisa
dizer qual mídia novamente se prestou a produzir a novela.
Dessa forma, fica patente que
tais forças armadas estão em busca de treinamento adequado para o
enfrentamento de ‘guerrilhas’ urbanas. O Haiti é aqui. Na falta de
comunistas, os milicos agora saem em busca de pobres favelados,
excluídos de todo o conjunto de direitos sociais constituídos, gente
que do Estado conhece só as balas e fardas. Não faltaram flagrantes
violações a diversos direitos nas buscas, já ilegais, realizadas nas
casas dos moradores das áreas invadidas. "O Haiti foi estratégico",
comentou Jobim recentemente, relacionando ambas as operações. E nesta
semana, a Força Nacional de Segurança foi a Porto Velho conter a
revolta dos trabalhadores da Usina de Jirau, esgotados pelas
horrorosas condições de trabalho oferecidas pela empreiteira Camargo
Correa.
Logo, em meio aos ditatoriais
projetos de infra-estrutura nacional, Copa e Olimpíadas, sempre
ausentes do debate público e decididos de forma cada vez mais
autoritária e ao arrepio das leis e contrapartidas (sociais,
ambientais, técnicas, econômicas), em escandalosos conluios de
governos e empreendedores, não parece desatinado concluir que os
herdeiros do golpe de 64 serão ótimo suporte, garantindo toda a
‘segurança’ necessária à concretização de tais objetivos. Isto é,
contendo o inimigo de hoje, no caso os pobres e miseráveis brasileiros
esquecidos pelo poder público. Tanto é assim que nos desastres da
região serrana esse mesmo exército teve pífia eficiência, demorando
dias para chegar ao local dos eventos e atuar com alguma utilidade.
Novos embates, pois eles
não descansam
Mostrando todo o rancor que
tange a mentalidade desses pseudo-patriotas, não faltou articulação
(suja, abjeta) para minar a candidatura de Dilma Rousseff à
presidência. Começando pela ficha falsa que a Folha de S. Paulo teve a
capacidade de publicar, insistindo na indecente tese de que quem lutou
contra a ditadura militar também foi terrorista, prestando seu
milionésimo desserviço ao intelecto nacional.
Posteriormente, não faltaram
fantasmas de um Brasil funesto para reforçar a campanha de José Serra,
contando, claro, com a participação de entes ligados à ditadura de
1964-1985 (como a TFP, o Clube Militar e seus velhacos, o Opus Dei e
outros setores marginalizados por seu fundamentalismo e intolerância).
E com a vitória da ex-militante da VAR-Palmares, o que para nossa
imprensa apátrida não traz nenhum heroísmo ou dignidade, o ódio da
direita, sem-vergonha o bastante para chamar suas vítimas de
revanchistas, voltou à tona.
Provocação ou não, a faceta
antinacional deste exército voltou a aparecer no final do ano passado,
em episódio que em qualquer país sério causaria enorme crise política
e provavelmente revolta popular: a turma de oficiais do exército recém
graduada pelos Agulhas Negras foi batizada de... Emilio Garrastazu
Médici. E voltamos a nos dar conta de como essas forças armadas são
degeneradas e desprovidas de qualquer respeito pela suposta democracia
que vivemos.
Não muito depois, nos
primeiros dias de Dilma na presidência, o general José Elito Siqueira,
nomeado para o Gabinete de Segurança Institucional, veio à mídia
declarar que o país não deve se envergonhar de ainda possuir
desaparecidos políticos. Ao invés de exonerado, foi apenas advertido
pela ex-guerrilheira, mostrando que o poder deve mesmo conceder uma
impressionante capacidade de conciliação – com tudo e todos.
E como se nada disso bastasse,
a mídia não se cansa de dar espaço ao que pensam os militares,
inclusive a corrente que inapelavelmente está condenada ao lixo da
história. Mostrando desconhecer o que é democracia, continua sendo de
odiosa neutralidade em suas matérias sobre o período sombrio do país,
colocando ambos os lados como adversários equivalentes e igualmente
toleráveis, que em determinado momento da história (a qual sempre
evitam contar em detalhes) tiveram pequenas divergências.
De resto, Nelson Jobim
continua flanando livremente por onde bem entende para defender e
acobertar os assassinos, estupradores e violadores selvagens da
ditadura com a qual simpatiza, usando seu discurso dissimulado de que
"não vale a pena mexer nesse vespeiro", "que tal revanchismo não leva
a nada" e outras baboseiras de quem quer afrontar a legalidade – e a
inteligência humana.
Enquanto isso, o governo Dilma
já começa cercado de pressões pela não abertura dos arquivos da
ditadura. A mídia gorda, que apoiou e até financiou o regime
autoritário e terrorista, segue trabalhando ardorosamente pela não
elucidação dos fatos, com editoriais e matérias cada vez mais
freqüentes que apresentam tal caminho como um "erro", "um perigo",
"que criaria muitas tensões", como cansaram de concordar com Jobim a
Folha de S. Paulo, o Globo, a Veja e seus espelhos regionais...
Para não alongar mais ainda,
enquanto não se encarar essa dolorosa, mas indispensável, transição à
democracia, punindo os algozes ao invés de lhes fazer concessões
vergonhosas e covardes, seguiremos sendo o país cuja polícia mais mata
no mundo, o da eterna democracia de mentira. E lembremos que a Verdade
não é o bastante, pois todos os entendimentos jurídicos consagrados
mundialmente nos dão direito também à Memória, Justiça e Reparação,
outro ‘detalhe’ dissimulado pelos criminosos civis-militares de ontem
e hoje...
PS: Diante do exposto,
fiquemos atentos à possibilidade de o exército começar a ser usado com
finalidades de ‘contenção’ aos pobres e às lutas sociais, em outras
palavras, se irá aderir abertamente à criminalização da pobreza e dos
movimentos sociais.
*
Gabriel Brito é jornalista.
FONTE: Correio da
Cidadania. Edição n. 28, especial de 30 anos da Lei de Anistia.