Carta do Cacique Mutua sobre Belo Monte
Por Cacique Mutua
O Sol me acordou dançando no meu rosto. Pela manhã, atravessou a palha
da oca e brincou com meus olhos sonolentos. O irmão Vento, mensageiro
do Grande Espírito, soprou meu nome, fazendo tremer as folhas das
plantas lá fora. Eu sou Mutua, cacique da aldeia dos Xavantes. Na
nossa língua, Xingu quer dizer água boa, água limpa. É o nome do nosso
rio sagrado. Como guiso da serpente, o Vento anunciou perigo. Meu
coração pesou como jaca madura, a garganta pediu saliva. Eu ouvi. O
Grande Espírito da floresta estava bravo. Xingu banha toda a floresta
com a água da vida. Ele traz alegria e sorriso no rosto dos curumins
da aldeia. Xingu traz alimento para nossa tribo.
Mas hoje nosso povo está triste. Xingu recebeu sentença de morte. Os
caciques dos homens brancos vão matar nosso rio. O lamento do Vento
diz que logo vem uma tal de usina para nossa terra. O nome dela é Belo
Monte. No vilarejo de Altamira, vão construir a barragem. Vão tirar um
monte de terra, mais do que fizeram lá longe, no canal do Panamá.
Enquanto inundam a floresta de um lado, prendem a água de outro. Xingu
vai correr mais devagar. A floresta vai secar em volta. Os animais vão
morrer. Vai diminuir a desova dos peixes. E se sobrar vida, ficará
triste como o índio.
Como uma grande serpente prateada, Xingu desliza pelo Pará e Mato
Grosso, refrescando toda a floresta. Xingu vai longe desembocar no Rio
Amazonas e alimentar outros povos distantes. Se o rio morre, a gente
também morre, os animais, a floresta, a roça, o peixe, tudo morre.
Aprendi isso com meu pai, o grande cacique Aritana, que me ensinou
como fincar o peixe na água, usando a flecha, para servir nosso
alimento.
Se Xingu morre, o curumim do futuro dormirá para sempre no passado,
levando o canto da sabedoria do nosso povo para o fundo das águas de
sangue. Pela manhã, o Vento me levou para a floresta. O Espírito do
Vento é apressado, tem de correr mundo, soprar o saber da alma da
Natureza nos ouvidos dos outros pajés. Mas o homem branco está surdo e
há muito tempo não ouve mais o Vento.
Eu falei com a Floresta, com o Vento, com o Céu e com o Xingu. Entendo
a língua da arara, da onça, do macaco, do tamanduá, da anta e do tatu.
O Sol, a Lua e a Terra são sagrados para nós. Quando um índio nasce,
ele se torna parte da Mãe Natureza. Nossos antepassados, muitos que
partiram pela mão do homem branco, são sagrados para o meu povo.
É verdade que, depois que homem branco chegou, o homem vermelho nunca
mais foi o mesmo. Ele trouxe o espírito da doença, a gripe que matou
nosso povo. E o espírito da ganância que roubou nossas árvores e matou
nossos bichos. No passado, já fomos milhões. Hoje, somos somente cinco
mil índios à beira do Xingu, não sei por quanto tempo.
Na roça, ainda conseguimos plantar a mandioca, que é nosso principal
alimento, junto com o peixe. Com ela, a gente faz o beiju. Conta a
história que Mandioca nasceu do corpo branco de uma linda indiazinha,
enterrada numa oca, por causa das lágrimas de saudades dos seus pais
caídas na terra que a guardava.O Sol me acordou dançando no meu rosto.
E o Vento trouxe o clamor do rio que está bravo. Sou corajoso
guerreiro, não temo nada. Caminharei sobre jacarés, enfrentarei o
abraço de morte da jibóia e as garras terríveis da suçuarana. Por cima
de todas as coisas pularei, se quiserem me segurar. Os espíritos têm
sentimentos e não gostam de muito esperar.
Eu aprendi desde pequeno a falar com o Grande Espírito da floresta.
Foi num dia de chuva, quando corria sozinho dentro da mata, e senti
cócegas nos pés quando pisei as sementes de castanha do chão. O meu
arco e flecha seguiam a caça, enquanto eu mesmo era caçado pelas
sombras dos seres mágicos da floresta. O espírito do Gavião Real agora
aparece rodopiando com suas grandes asas no céu. Com um grito agudo
perguntou: ‘Quem foi o primeiro a ferir o corpo de Xingu?’ Meu coração
apertado como a polpa do pequi não tem coragem de dizer que foi o
representante do reino dos homens.
O espírito do Gavião Real diz que se a artéria do Xingu for rompida
por causa da barragem, a ira do rio se espalhará por toda a terra como
sangue e seu cheiro será o da morte.
O Sol me acordou brincando no meu rosto. O dia se abriu e me perguntou
da vida do rio. Se matarem o Xingu, todos veremos o alimento virar
areia.
A ave de cabeça majestosa me atraiu para a reunião dos espíritos
sagrados na floresta. Pisando as folhas velhas do chão com cuidado,
pois a terra está grávida, segui a trilha do rio Xingu. Lembrei que,
antes, a gente ia para a cidade e no caminho eu só via árvores.
Agora, o madeireiro e o fazendeiro espremeram o índio perto do rio com
o cultivo de pastos para boi e plantações mergulhadas no veneno. A
terra está estragada. Depois de matar a nossa floresta, nossos
animais, sujar nossos rios e derrubar nossas árvores, querem matar o
Xingu.
O Sol me acordou brincando no meu rosto. E no caminho do rio passei
pela Grande Árvore e uma seiva vermelha deslizava pelo seu nódulo.
Quem arrancou a pele da nossa mãe? Gemeu a velha senhora num
sentimento profundo de dor. As palavras faltaram na minha boca. Não
tinha como explicar o mal que trarão à terra. Leve a nossa voz para os
quatro cantos do mundo, clamou. O Vento ligeiro soprará até as conchas
dos ouvidos amigos, ventilou por último, usando a língua antiga,
enquanto as folhas no alto se debatiam.
Nosso povo tentou gritar contra os negócios dos homens. Levamos nossa
gente para falar com cacique dos brancos. Nossos caciques do Xingu
viajaram preocupados e revoltados para Brasília. Eu estava lá, e vi
tudo acontecer.
Os caciques caraíbas se escondem. Não querem olhar direto nos nossos
olhos. Eles dizem que nos consultaram, mas ninguém foi ouvido.
O homem branco devia saber que nada cresce se não prestar reverência à
vida e à natureza. Tudo que acontecer aqui vai voar com o Vento que
não tem fronteiras. Recairá um dia em calor e sofrimento para outros
povos distantes do mundo.
O tempo da verdade chegou e existe missão em cada estrela que brilha
nas ondas do Rio Xingu. Pronta para desvendar seus mistérios, tanto no
mundo dos homens como na natureza.
Eu sou o cacique Mutua e esta é minha palavra! Esta é minha dança! E
este é o meu canto!
Porta-voz da nossa tradição, vamos nos fortalecer. Casa de Rezas,
vamos nos fortalecer. Bicho-Espírito, vamos nos fortalecer. Maracá,
vamos nos fortalecer. Vento, vamos nos fortalecer. Terra, vamos nos
fortalecer. Rio Xingu! Vamos nos fortalecer!
Leve minha mensagem nas suas ondas para todo o mundo: a terra é fonte
de toda vida, mas precisa de todos nós para dar vida e fazer tudo
crescer. Quando você avistar um reflexo mais brilhante nas águas de um
rio, lago ou mar, é a mensagem de lamento do Xingu clamando por viver.
Cacique Mutua,
Xingu, Pará, Brasil, 08 de junho de 2011.
FONTE: Correio da Cidadania