‘Barulho’ de Cabral em torno dos Royalties é ‘biombo’ pra proteger
cartel do petróleo
Por Valéria
Nader*
A crise econômica
mundial vem demonstrando de modo enfático os métodos a cada dia mais
avassaladores, e menos dissimulados, de apropriação de riquezas por
parte dos mais poderosos, sejam eles pessoas, grupos ou países. E os
casos exemplares não estão tão longe quanto imaginamos, nas
‘longínquas’ guerras promovidas pelos EUA no Iraque, Irã e
Afeganistão... Estão bem debaixo do nosso nariz.
A recente e
acalorada discussão sobre a distribuição de royalties no país é um
caso notório. Ao olhar mais distraído, pode parecer uma mera discussão
burocrática patrocinada pelo governador do Rio, Sérgio Cabral, e
seguida por outros estados, em sua briga pra ver quem fica com a maior
parte do quinhão do petróleo. Mas, por trás dessa que tem ares de ser
mais uma prosaica querela nacional, estão poderosas aves de rapina
atrás de um recurso que se torna a cada dia mais raro mundialmente.
“O barulho do
Sergio Cabral era para dificultar a aprovação do contrato de partilha.
Como ele já foi votado e aprovado, Cabral agora quer evitar a
supressão da emenda entreguista. Assim, o barulho serve de biombo para
esconder o segredo mais bem guardado desta República: a emenda que
devolve, em petróleo, às empresas, os royalties pagos em dinheiro”. É
o que afirma com sua costumeira contundência e sagacidade o presidente
da AEPET (Associação de Engenheiros da Petrobrás), Fernando Siqueira.
E não fica por
aí: Cabral estaria também interessado em esconder os benefícios da Lei
Kandir, uma lei antiqüíssima, mas que atua ainda hoje, e com vigor, em
favor do cartel internacional e em detrimento do povo brasileiro,
segundo avalia Siqueira.
Leia a seguir entrevista exclusiva.
Correio da
Cidadania: Como o senhor tem analisado as polêmicas em torno da
distribuição dos royalties do petróleo, opondo estados produtores e
não produtores em exaustivas discussões parlamentares?
Fernando
Siqueira: A lei 9478/97, elaborada pelo Fernando Henrique era péssima
para o país, pois os produtores ficavam com 100% do petróleo produzido
e só pagavam, em dinheiro, os royalties além de uma participação
especial quando a produção fosse maior do que 94.000 barris por dia,
por campo. Como só a Petrobrás tem uma produção maior do que este
valor, só ela paga essa participação, mas apenas uma média de 11%. No
mundo, os países produtores ficam com mais de 70% do petróleo
produzido. Assim, quando o Pré-Sal foi descoberto, o presidente Lula
enviou o projeto que muda o contrato de concessão (a propriedade do
petróleo é do produtor) para partilha, em que a propriedade volta para
a União.
A Petrobrás é a
operadora de todos os campos, ou seja, propôs avanços consideráveis em
favor da União. O cartel do petróleo não gostou. E foi pra cima dos
parlamentares, apresentando 15 emendas. Uma delas colou: é aquela em
que o produtor paga o royalty em reais, mas o recebe de volta em
petróleo. Esse cartel tem um time de lobistas, inclusive citados nos
telegramas do Wikileaks: O Instituto Brasileiro do Petróleo, a ONIP e
a FIESP. Tem ainda o governador Sergio Cabral, seus secretários, o
senador Dornelles, a Agência Nacional do Petróleo e Paulo Hartung
(ES). Conta ainda com a grande mídia nacional. Cabral e Hartung
provocaram a discussão dos royalties para dificultar a mudança, pois
Lula não os incluíra na proposta. “Primeiro vamos retomar a
propriedade do Petróleo, para depois distribuí-lo”, dizia Lula.
Denunciamos essa
emenda/contrabando no Senado e a repercussão negativa foi grande. O
relator Romero Jucá retirou-a, mas, sob a pressão do lobby,
sub-repticiamente, a colocou de volta em quatro artigos: 2º, 10º, 15º
e 29. Onde o Projeto de Lei falava em ressarcimento dos custos de
produção (é normal, pois o produtor gasta dólares e recebe esses
custos em petróleo), Jucá acrescentou: “e do volume da produção
correspondente aos royalties pagos” (safadeza, pois o consórcio não
paga nada). Assim, ele dificultou a supressão, pois era preciso um
partido para cada artigo a suprimir. A nosso pedido, o senador Pedro
Simon apresentou uma emenda (art. 64§ 3º) que impedia essa apropriação
constante dos quatro artigos. Mas como ele também incluiu a
distribuição equânime dos royalties, o lobby aproveitou e fez um
grande barulho na mídia.
Resultado, Lula,
assustado, vetou o antídoto e deixou o veneno. Como era certa a
derrubada do veto e a base governista a considerava um desgaste,
buscou-se uma saída. Assim, alguns parlamentares elaboraram um Projeto
de Lei do Senado com as mesmas premissas de Simon - só que preservando
os ganhos dos estados produtores em valor absoluto -, para evitar a
derrubada do veto. Mas a grita/biombo continua para esconder o
ressarcimento dos royalties.
Correio da
Cidadania: O que pensa em particular do ‘barulho’ que faz o governador
do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, em tais discussões, inclusive
convocando manifestações populares para defender uma renda que
pertenceria por direito aos cariocas?
Fernando
Siqueira: O barulho do Sergio Cabral, como dito acima, era para
dificultar a aprovação do contrato de partilha. Como ele já foi votado
e aprovado, Cabral agora quer evitar a supressão da emenda
entreguista. Assim, o barulho serve de biombo para esconder o segredo
mais bem guardado desta República: a emenda que devolve, em petróleo,
os royalties pagos em dinheiro. Se Cabral estivesse interessado em
defender o Rio de Janeiro, a atitude tinha que ser de negociação, não
de confronto com os estados não produtores. Todos eles querem
preservar o Rio. Para ilustrar essas informações, vejamos alguns
dados:
I) Na
Constituição de 88, o José Serra conseguiu mudar a incidência do ICMS
do produtor para o consumidor. O Rio perdeu muito. E, para compensar,
ganhou um percentual alto dos royalties. Só que, na época que os
royalties começaram a ser cobrados, o montante anual era de R$ 1
bilhão. Hoje são cerca de 10 bilhões. Em 2020 pode ser o triplo. Não
dá para o Rio virar um Abu Dhabi e os demais estados continuarem na
miséria;
II) O Rio Perde
por ano cerca de R$ 7 bilhões com a isenção de ICMS devido à Lei
Kandir aplicada no petróleo, incorretamente, pois o bem mais cobiçado
do planeta não precisa de incentivo para ser exportado. Em 2020 essa
perda subirá para R$ 34 bilhões. É o Brasil subsidiando o cartel, os
EUA e os demais países desenvolvidos. Não se tem buscado corrigir essa
excrescência;
III) O Rio,
hoje, perde cerca de R$ 8 bilhões por ano com a cobrança errada do
ICMS. Pode ser um argumento forte para negociação, mas não está sendo
usado. Ou seja, o Cabral e sua turma querem é esconder o benefício da
devolução de royalties e da Lei Kandir em favor do cartel
internacional e em detrimento do povo brasileiro.
Correio da
Cidadania: A verdade é que o senhor vem denunciando há tempos estas
emendas inseridas no projeto de lei sobre os Royalties elaborado pelo
governo Lula, as quais, em um revés para tal projeto original,
determinam, como dito, a devolução, em petróleo, dos royalties pagos
pelas empresas exploradoras.
Fernando
Siqueira: Esse ressarcimento é uma excrescência entreguista. É como se
a Ford pagasse o IPI e o recebesse de volta em automóveis. O senador
Jucá retirou-a em função da repercussão negativa após nossa denúncia
através do senador Simon. Só que, sob pressão do lobby, a colocou de
volta nos quatro artigos mencionados, para garantir a apropriação
indébita do petróleo correspondente aos royalties pelo Consórcio
Produtor, em detrimento do país. Seria um volume maior do que as
atuais reservas brasileiras, descobertas pela Petrobrás. No mês de
junho deste ano, a revista Época fez uma matéria onde diz que Jucá
gastou R$ 15 milhões na sua campanha para a reeleição e declarou só R$
1,5 milhão. Diz ainda que os US$ 13,5 milhões restantes foram pagos em
dólar vivo. Mera coincidência? ”É, pode ser, com todo o respeito”,
diria o Ancelmo Gois.
Correio da
Cidadania: Estão sendo agora tentados vários arranjos para a
distribuição dos royalties, após este revés no projeto original de
Lula. Diante das atuais circunstâncias, qual seria o arranjo ideal, a
seu ver?
Fernando
Siqueira: O arranjo ideal tem que ser o fruto de uma boa negociação. O
Rio tem trunfos bons como os citados acima e pode conseguir se sair
bem, sem perdas, mas mantendo um ganho coerente. Como a produção de
petróleo vai crescer muito e o preço do barril também, não dá para o
Rio receber o percentual atual. O ideal é manter o valor absoluto do
ganho atual com a devida correção monetária para que o Rio tenha
supridos os seus compromissos a serem pagos com a renda dos royalties.
O Rio ganha, hoje, cerca de R$ 7 bilhões entre royalties e
participação especial, por ano. Pode manter esse ganho com juros e
correção monetária.
Lembremos que o
petróleo do Pré-Sal está a cerca de 300 km da costa. Pelo artigo 20 da
Constituição ele é da União. Mas os estados, DF e municípios têm
direito a participar dos royalties “de acordo com a Lei”, que pode ser
negociada. Quem provê as facilidades de produção são as empresas
produtoras e, se houver acidente, elas se encarregam de eliminar os
seus efeitos. Há benefícios para os estados confrontantes como geração
de empregos, desenvolvimento tecnológico e a instalação de empresas
fornecedoras de bens e de prestadoras de serviços. Assim, os estados
confrontantes podem se contentar em manter os ganhos atuais, enquanto
os demais saem do zero até chegar a um montante próximo ao desses
estados confrontantes, em médio e longo prazos.
Correio da
Cidadania: Em entrevista ao Correio, no final de 2009, o senhor
ressaltou que continuamos sem garantias de que “empresas asiáticas,
européias, norte-americanas e o cartel internacional, por precisarem
de petróleo para sobreviver, venham para cá ávidas para produzir o
mais rápido possível para resolverem os problemas dos seus países”.
Realmente, há um foco demasiado nessas discussões sobre os Royalties
no atual momento, ao lado de um quase abandono das discussões
essenciais sobre, por exemplo, esta questão dos leilões, tanto os que
foram feitos antes do Pré-Sal como os que devem certamente prosseguir
pela frente.
Fernando
Siqueira: Como eu disse acima, os royalties são o biombo para esconder
a discussão essencial. Quando o Pré-Sal foi descoberto, o presidente
Bush reativou a quarta frota naval, argumentando que era para proteger
o Atlântico Sul. Ora, no Atlântico Sul, só estão Brasil e Argentina e
esta já entregou o seu petróleo para o cartel. Então, a quarta frota é
para “proteger” o Pré-Sal. As invasões do Iraque, da Líbia, do
Afeganistão e a atual pressão sobre o Irã nos dão uma pista, uma
mensagem muito forte de que precisamos nos preparar para defender o
Pré-Sal, que é uma reserva equivalente à do Iraque, só que na América
Latina. O cartel internacional e os países desenvolvidos precisam de
petróleo para sobreviver. Estamos entrando no pico de produção mundial
e a oferta vai cair fortemente. Os países desenvolvidos da Europa, da
Ásia e os EUA estão numa insegurança energética brutal. Querem
petróleo a qualquer custo e o mais rapidamente possível. Como impedir
a produção veloz e predatória? Portanto, as premissas que nortearam a
sua pergunta continuam válidas.
Correio da
Cidadania: Setores progressistas defendem a volta do monopólio estatal
do petróleo, no lugar do modelo de exploração em que serão combinados
concessão e partilha . Acredita que esta discussão ainda esteja ou
possa voltar à pauta da nossa nação? Qual seria a importância da
retomada deste debate para o nosso país?
Fernando
Siqueira: Esta discussão está mais atual do que nunca. A Petrobrás,
durante 40 anos, acreditou e pesquisou o Pré-Sal. Quando a tecnologia
permitiu, ela perfurou e achou, correndo todos os riscos. Lembro que
durante 13 anos a área do Pré-Sal esteve entregue às empresas
estrangeiras detentoras dos contratos de risco. E elas não arriscaram
nada. A Petrobrás é a empresa que mais conhece a tecnologia de águas
profundas, visto que foi a primeira a acreditar na existência de
reservas nessa profundidade. Portanto, fazer leilão não tem qualquer
justificativa ou vantagem para o país.
Imaginemos que
essa emenda da devolução dos royalties passe. Pela simulação que
fizemos, com o petróleo a US$ 100 por barril e os custos de produção
previstos em US$ 45 por barril, teríamos o seguinte absurdo: A União
ficaria com 28% do petróleo produzido, a Petrobrás, como operadora,
ficaria com 21,6% e o líder do Consórcio Produtor ficaria com 50,4%,
sem fazer nada (a Petrobrás é quem opera, produz e corre todos os
riscos) e sem correr qualquer risco. Por outro lado, se o royalty
previsto de 15% for pago em petróleo, sem essa devolução, o Brasil
ficará com 43%, livres, a Petrobras, com 17,1%, e o líder do
consórcio, com 39,9%. Sendo que ele despendeu dólares com os custos de
produção.
Dá para aceitar,
a pior situação? Leilão é sinônimo de desnacionalização do petróleo,
inclusive com elevada velocidade de extração, em detrimento dos
interesses nacionais, como está ocorrendo em todos os países que
privatizaram suas reservas. E o caso Chevron reforça bem essa tese.
Correio da
Cidadania: O que tem ocorrido de relevante no setor, que não costuma
ser noticiado na mídia, especialmente no que se refere aos leilões
favoráveis às empresas, nacionais ou multinacionais, e lesivos à
sociedade? Quem têm sido os maiores beneficiários desse atual estado
de coisas?
Fernando
Siqueira: Certamente o cartel internacional do Petróleo é sempre o
beneficiado. Foi ele que induziu o presidente FHC a fazer a absurda
lei 9478/97 que dá 100% do petróleo a quem produz e o direito de pagar
somente os royalties e a participação especial, em dinheiro, numa
média de 21% no total. No mundo, os países exportadores ficam com uma
média superior a 70%, em petróleo, do volume produzido, que é a
riqueza real que move as grandes economias e a produção de novas
riquezas. O valor pago em dólar é irrelevante para quem imprime dólar
sem qualquer lastro.
Vou relatar um
episódio recente que ilustra bem a ação dos lobbies, e que só sai no
Wikileaks: Uma semana antes de o senador Vital do Rego apresentar o
PLS 448 (alternativa à derrubada do veto de Lula), no Senado, eu
estava em reunião na AEPET quando recebi uma ligação de um dos
parlamentares da comissão que elaborou o projeto. Ele me perguntou a
situação dos artigos e como teria que fazer para suprimir esses
contrabandos. Quando eu comecei a responder, ele passou o telefone
para o assessor legislativo que iria ajudá-los a elaborar o projeto.
Ele foi dizendo: “engenheiro, quem pediu essa emenda de devolução dos
royalties foi a Petrobrás”. Respondi, irritado: “Isto é conversa dos
lobistas do IBP. Eu conversei com os diretores da Petrobrás e eles
jamais discutiram esse assunto”. Ele insistiu: “não, foi o
representante da empresa aqui em Brasília”. “Outra mentira. O
representante em Brasília nunca faria isto sem autorização da
Petrobrás. Conheço-o bem”, eu retruquei. Então ele passou o fone para
o deputado, a quem eu adverti sobre a conversa.
Na semana
seguinte, preocupado, fui para Brasília. No gabinete do senador Pedro
Simon, vimos a leitura da proposta pelo senador Vital do Rego e
consegui uma cópia do projeto. Passei a noite lendo o calhamaço do
projeto. E descobri duas cascas de banana: o assessor incluíra um
artigo que quebrava a espinha dorsal da Lei de partilha. O artigo
dizia: “A União poderá fazer ‘joint ventures’ com empresas mediante
licitação”. Ora, na nova Lei o ponto alto era a Petrobrás ser a
operadora de todos os campos e a nova proposta derrubava isto. Outra
safadeza era mudar a configuração do IBGE fazendo com que o Rio
deixasse de ser o estado confrontante no Pré-Sal. A maioria desses
assessores tem casa no Lago Sul, não por coincidência.
Correio da
Cidadania: Como enxerga, finalmente, o último vazamento de petróleo na
Bacia de Campos, envolvendo a empresa Chevron, à luz de toda esta
discussão?
Fernando
Siqueira: Como uma rotina da atuação dessas empresas. Elas produzem
devastação no mundo todo. A Shell fez um estrago na Nigéria. A Chevron
está num processo no Equador com multa da ordem de US$ 20 bilhões. É
comum ocorrerem estas coisas. Agora, em Frade, ocorreu uma série de
erros da Chevron.
Primeiro, ela
alugou uma plataforma improvisada. Segundo o Wall Street Journal, essa
plataforma, obsoleta, funcionava como hotel flutuante no Mar do Norte.
Foi adaptada para esse trabalho e cobra uma diária de US$ 315mil,
contra cerca de US$ 700 mil das plataformas tecnicamente preparadas
para esse trabalho. Segundo, há algum tempo tendo alguns poços
produtores, ela tinha condições de conhecer a pressão do reservatório.
Mesmo assim seus engenheiros erraram no cálculo da densidade da lama
de perfuração, onde uma das suas funções é equilibrar a pressão do
reservatório. Com uma lama mais leve, quando atingiram o reservatório,
um “Kick” de pressão ameaçou a perda de controle do poço. Afobados, os
técnicos injetaram lama mais pesada, mas com uma pressão acima da
tolerada pelo reservatório. Assim fraturaram o invólucro selador do
reservatório.
Depois foi uma
sucessão de desinformações, mentiras, falácias, uma saraivada de
inverdades, que a grande mídia brasileira recebeu passivamente, sem
questionamentos e verificações. Imagina se uma ocorrência desse tipo
fosse com a PETROBRAS! Qual seria o tratamento?
Portanto, essa
ocorrência em frade reforça a nossa tese do FIM dos leilões. O país
nada ganha com eles.
* Valéria Nader,
economista, é editora do Correio da Cidadania; colaborou Gabriel
Brito.
Fonte: Correio da
Cidadania, 25/11/11.