A América Latina e o socialismo do século 21
Novo livro de
Ricardo Antunes discute o trabalho na América Latina
O nome do
professor Ricardo Antunes está diretamente ligado ao tema do trabalho.
Autor de diversos livros sobre o tema, professor de sociologia do
trabalho na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele agora se
debruça sobre o continente latino-americano em sua nova obra, O
continente do labor. “Labor, como sabemos, é o trabalho aviltado,
intensificado, superexplorado. É a ideia que esse continente foi feito
para a extração, para a sucção de riquezas para o mundo avançado,
primeiro a Europa, depois os Estados Unidos”, aponta. Depois de anos
de estudo sobre o caso brasileiro e sobre países de capitalismo
avançado, desta vez sua pesquisa se volta para o conjunto de países
que, se por um lado têm sua história marcada pela exploração, por
outro também é referência por suas revoltas, rebeliões, lutas por
independência e autonomia. Nesta entrevista, ele fala sobre a
pesquisa, sobre a nova morfologia do trabalho, os governos e a
necessidade de levantar os pontos centrais que garantam a unidade
entre a classe trabalhadora ampliada.
Brasil de Fato – Por que estudar a América Latina agora e por que
chamá-la de “o continente do labor”?
Ricardo Antunes –
A decisão de estudar a América Latina deveu-se a alguns motivos. Nas
últimas décadas, até 1990, estudei o caso brasileiro. De 90 até hoje,
continuo estudando as mudanças que vêm ocorrendo no capitalismo
avançado para discutir criticamente, para me posicionar contra as
teses daqueles autores que defendiam o fim da importância da classe
trabalhadora, o fim da centralidade do trabalho. Mas visitando e
viajando pela América Latina nessa última década, especialmente a
partir dos livros Adeus ao trabalho? e Os sentidos do trabalho, fui
desenvolvendo uma percepção da particularidade do trabalho na América
Latina. Em 2005, recebi um convite para escrever um verbete sobre o
trabalho na América Latina para a Enciclopédia latino-americana, que
foi publicada no ano seguinte pela Boitempo. Para escrever o verbete,
fui estudar vários países para não fazer um verbete apenas brasileiro,
mas latino-americano. O resultado é que esse texto foi publicado numa
versão muito parcial e muito alterada, e o texto integral ficou
separado e inédito. A partir daí, veio a ideia de organizar o volume.
Qual é a especifidade do trabalho na América Latina frente às mudanças
que vêm ocorrendo no capitalismo em escala global? Por isso o nome de
“continente do labor”: este continente nasceu, a partir do processo de
descobrimento da América, como um prolongamento da exploração
colonial. Nasceu seguindo o que Marx chamava de acumulação primitiva
do capital, onde espanhóis e portugueses montaram aqui colônias de
exploração, visando, no caso da colonização espanhola isso é mais
claro, a extração do ouro e da prata, e no caso brasileiro, dado que
no primeiro momento o ouro e a prata não apareceram, deu-se a
exploração do pau-brasil e muito rapidamente a montagem de um sistema
de produção voltado para o cultivo do açúcar, que era um produto
escasso e de muito valor na Europa. Montou-se um processo colonial
fundado na intensa exploração do trabalho, no labor. Labor, como
sabemos, é o trabalho aviltado, intensificado, superexplorado. É a
ideia que esse continente foi feito para a extração, para a sucção de
riquezas para o mundo avançado, primeiro a Europa, depois os Estados
Unidos. É o continente do labor, da opressão, do sofrimento, mas
também das revoltas, das rebeliões, das lutas pela sua independência e
autonomia. Como a revolução haitiana, a primeira revolução contra a
escravidão, a rebelião dos quilombos, a revolução mexicana de 1910, a
revolução cubana de 1959, entre tantas outras formas de luta que o
continente apresenta.
Com tantas mudanças no mundo do trabalho é possível falar ainda em uma
única classe trabalhadora?
É possível falar
em muitas classes, classes burguesas e suas frações; as camadas médias
e a classe trabalhadora no sentido amplo, que compreende o conjunto de
assalariados do campo, da cidade, dos serviços... É claro que é uma
classe ampla, heterogênea, complexificada. Em alguns casos, como o
campesinato, por exemplo, poderia ser visto como uma classe de
pequenos proprietários, mas muitas vezes eles trabalham algum período
do ano no cultivo do açúcar, do algodão, etc. Alguns autores falam em
“classes trabalhadoras”. Eu prefiro falar em classe trabalhadora
ampliada, porque estou procurando entender, centralmente, a classe
trabalhadora assalariada que vive da venda de sua força de trabalho
visando à geração, direta ou indiretamente, de mais-valia, de valor,
que valoriza o capital. Então essa classe trabalhadora não é só a
classe operária industrial, é a classe ligada ao operariado, é a
classe ligada à agricultura, por exemplo, os trabalhadores chamados de
boias-frias no Brasil, ou os trabalhadores do corte da cana-de-açúcar,
inclui o proletariado de serviços, trabalhadores ligados ao call
center, ao telemarketing, aos supermercados... Compreende o que chamo
da nova morfologia do trabalho.
Como incluir na luta de classes os elementos gênero, etnia e geração
sem cair no discurso pós-moderno que coloca apenas esses elementos
como centrais?
Estudar questão
de gênero, etnia ou geração, é vital desde que se tenha a dimensão de
classe. Quando você vai no mundo do trabalho latino-americano, nos
países de colonização espanhola, você olha a classe trabalhadora e vê
que ela tem a cara indígena. Claro que às vezes há mesclados, índios
com espanhóis, mas no geral a classe trabalhadora tem uma função
fortemente indígena e as classes burguesas têm uma feição mais
hispânica. No Brasil ou em Cuba, por exemplo, a classe trabalhadora
tem uma feição mais aproximada do negro e do mulato, enquanto as
classes burguesas têm uma feição mais branca. A classe trabalhadora
tem homens e mulheres, mas as mulheres têm salários menores que os
homens, condições mais precarizadas, elas têm menos direitos. Há
empresas que preferem contratar trabalhadores homens e mais velhos;
outras preferem mulheres e jovens, e assim por diante. Mas a dimensão
de trabalho é crucial, porque ela é uma categoria transversal. Isso
significa dizer que é fundamental fazer a articulação entre gênero,
etnia, geração e classe. O pensamento pós-moderno desconsidera a
dimensão de classe, porque a nega, e acaba fazendo conta das questões
de gênero, étnicas, geracional, isoladamente, como se não tivesse
capitalismo, como se não tivesse exploração do trabalho, como se não
tivesse a centralidade do trabalho. A minha pesquisa vem procurando
mostrar que para compreender a classe trabalhadora hoje é preciso
compreendê-la na sua nova morfologia, relacionar a dimensão de classe
com gênero, etnia, geração, etc, sem perder o vínculo fundamental de
classe. O gênero tem classe, a geração e a questão étnica também. Os
bolivianos, indígenas, camponeses, não são burgueses. As revoltas na
Inglaterra foram tocadas por jovens, pobres, imigrantes, trabalhadores
precarizados ou sem trabalho.
O que as eleições de governos mais progressistas significaram para a
América Latina?
É preciso fazer
uma separação entre quais governos são progressistas e quais não são.
A vitória de Chávez na Venezuela de 1999 e seu governo de lá pra cá
vem procurando imprimir um sentido antineoliberal e com traços
antiburgueses e anti-imperialistas. O processo chamado de revolução
bolivariana tem uma preocupação de pensar uma alternativa, inclusive
fora dos marcos do capitalismo. Quando eleito, ele não tinha uma
proposta socialista, era uma proposta popular, contrária aos partidos
dominantes. Mas ao longo da década de 2000, vai percebendo que a
Venezuela tem que buscar um caminho alternativo e isso aproxima do
socialismo. É um projeto de inspiração socialista, mas que não quer,
por um lado, incorrer nos erros da União Soviética, mas que tem
dificuldades no seu desenvolvimento. Não é fácil no século 21 - embora
seja imprescindível – redesenhar um projeto socialista, porque é
preciso fazer uma análise profundamente crítica da experiência do
socialismo no século 20, especialmente da União Soviética, que viveu
um processo brutal de estalinização da sua história e por fim levou a
sua derrota cabal. Precisamos analisar a importância do socialismo de
romper com o que o Mészaros chama do tripé processo estruturante do
capital. É preciso demolir tanto o capital privado, quanto o trabalho
assalariado e o Estado. Se esse tripé não é eliminado, o capital tende
a se impor novamente. Claro que a experiência venezuelana é ainda
incipiente, tem limites, tem dependências com a persona do Chávez...
Além disso, tem a experiência boliviana: a vitória do Evo Morales foi
uma vitória do movimento popular. Agora estamos vendo o governo sendo
dura e criticamente confrontado por indígenas e pelo movimento popular
porque eles são contra uma espécie de subimperialismo brasileiro,
associado com o governo boliviano, que implemente projetos que
beneficiem o Brasil e empresas de construção em detrimento dos povos
tradicionais. São movimentos de contenções, e dou mais valor no meu
livro às lutas populares nestes países, à impulsão popular. O que
esses governos têm de positivo é resultado da mobilização popular.
Nenhum desses países, nem a Venezuela, a Bolívia ou Equador, viveram
revoluções socialistas. O fato de não terem vivido revoluções mostra
um processo muito difícil que é conviver dentro da ordem e contra a
ordem. É uma espécie de “revolução institucional”, ou uma
“institucionalidade revolucionária”. A última experiência que tivemos
parecida com essa foi a bela experiência de Salvador Allende, no
Chile, que foi deposta por um golpe em 1973, que juntou o Exército
ditatorial chileno, o imperialismo norte-americano e as classes
burguesas. Na América Latina, Florestan Fernandes nos ensinou isso,
Caio Prado também, quando as reformas têm um sentido mais radical,
elas começam a se aproximar do espaço da revolução. E isso provoca as
contra-revoluções. Esse é o momento do cenário latinoamericano de
alguns países. Muito diferente, no meu entender, foi o governo Lula,
que foi um governo dentro da ordem, que foi considerado por muito
tempo um paladino no neoliberalismo, ainda que sob a forma do
social-liberalismo. O governo de [Michelle] Bachelet no Chile não
tocou em nenhum elemento da miséria chilena, o governo de Tabaré
Vázquez também não tocou na estrutura do Uruguai. Temos também
governos de extrema-direita, como no México, na Colômbia, em Honduras.
A América Latina hoje é um cenário que tem governos de direita
conservadora e contra-revolucionária; governos de centro e
centro-esquerda, mas que aderem ao essencial da política neoliberal,
como o governo Lula; e há governos no campo mais à esquerda, como na
Venezuela e Bolívia, que tentam avançar, com muitas tensões. E Cuba,
que fez mesmo uma revolução.
Como você avalia o cenário das lutas populares no continente?
As greves
latino-americanas são muito importantes. O Brasil tem hoje greves nos
Correios, nos bancos, de professores, do funcionalismo público, de
metalúrgicos. Então temos de um lado as clássicas formas de lutas dos
trabalhadores e trabalhadoras, que são as greves por melhores
condições de trabalho, por aumento salarial, por ampliação de
direitos. Mas temos também, desde 2001, por exemplo, na Argentina,
experiências muito importantes, como o movimento dos piqueteros, que
paralisava o sistema de transporte no país, com um claro sentido de
contestação do projeto de precarização. Tivemos também o movimento de
fábricas ocupadas, que eles chamam de fábricas recuperadas. Foram mais
de 200 experiências. Há movimentos muito importantes no Uruguai, no
Peru, na Colômbia contra a mercadorização da água, dos bens
energéticos, que são mercadorizados e tirados da população. Houve no
México, em 1994, a eclosão do movimento zapatista, na data de início
do Nafta. Em 2005, tivemos a comuna de Oaxaca. Temos rebeliões em
vários países latino-americanos. A nova morfologia do trabalho traz
uma nova morfologia das lutas sociais. E temos que entender essas
lutas sociais. A mesma coisa se passa na Ásia, hoje o país que tem
mais greve no mundo é a China. Até mesmo a Europa hoje é um continente
em ebulição. Os indignados na Espanha, a geração precarizada e sem
trabalho em Portugal, os imigrantes negros e desempregados na
Inglaterra, o levante na Grécia, que não aceita as imposições do Fundo
Monetário Internacional. A rebelião árabe - ainda que nós saibamos que
os Estados Unidos e países imperialistas jogam um peso muito forte lá,
pelo petróleo e pela defesa do Estado de Israel – é um sinal
importante. Essa é uma tese do livro: estamos presenciando o aumento
das lutas sociais da América Latina, estamos percebendo que os povos
andinos, a classe trabalhadora operária e industrial, têm se
movimentado. O continente latino-americano tem uma importância vital
na retomada do socialismo do século 21. Viajo muito para a Europa, e
os movimentos lá têm muita expectativa do que se passa na América
Latina, e temos que ter consciência disso.
É possível construir a unidade entre as duas formas de mobilização: as
formas clássicas, como as greves, e as novas formas de lutas sociais?
Claro, esse é o
desafio fundamental: resgatar o sentido de pertencimento dessa classe
trabalhadora ampliada. Temos o exemplo da luta pela redução da jornada
de trabalho, que é uma luta mundial: beneficia quem está empregado e
vai trabalhar menos e beneficia quem está desempregado e pode vir a
trabalhar, sem o exaurimento do trabalho. A mundialização dos capitais
mundializou as lutas sociais. Temos que avançar os laços de
organicidade. O papel do MST no Brasil, por exemplo, é muito
importante nisso. Mesmo com suas dificuldades, ele luta não só pela
terra, mas pelo direito ao trabalho, pelo fim dos transgênicos, é
contra a propriedade latifundiária da terra improdutiva, mas é contra
também a terra concentrada que é produtiva, mas destrutiva. Que
sentido tem produzir soja para exportação e não produzir alimentos
para a população do país? É preciso perceber quais são as questões
vitais que hoje aproximam, unem os polos diversificados da classe
trabalhadora: a questão do trabalho, a questão do tempo de trabalho, a
questão de produzir o quê e para quem, a questão da forma de
propriedade, a propriedade intelectual, a questão ambiental. O mundo
já está comprometido hoje, não é mais em um futuro próximo. Lutar hoje
contra as usinas nucleares é uma luta da classe trabalhadora, não
serão as classes dominantes que vão lutar por isso. A luta ambiental
tem que ser uma luta anticapitalista. Definir as questões vitais é o
desafio das esquerdas, dos movimentos sociais, dos sindicatos e
partidos que querem pensar na humanidade no século 21, o que repõe a
questão do socialismo. Temos que discutir o socialismo na
contextualidade, na concretude e na autenticidade do século 21. É um
desafio vital.
QUEM É
Ricardo Antunes é
professor de sociologia do trabalho na Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), autor de diversos livros, entre eles Adeus ao
trabalho?, Os sentidos do trabalho e O caracol e sua concha e
organizador de volumes sobre o tema pela Editora Expressão Popular e
pela Boitempo Editorial.
O continente do labor
Parte da coleção
“Mundo do trabalho”, da Boitempo Editorial, o livro é dividido em três
partes. A primeira apresenta um quadro do trabalho na América Latina,
com dados históricos e discussões sobre o capitalismo e dependência,
em um diálogo aberto com Florestan Fernandes, além de discussões sobre
as lutas recentes e o socialismo do século 21. A segunda parte é
dedicada ao Brasil, com elementos sobre sua história, o papel do
Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o sindicalismo; o impacto do ano
de 1968; dados sobre o desemprego no país; análises da reestruturação
produtiva e o mundo do trabalho, além de uma discussão sobre as lutas
e a esquerda no Brasil recente. A terceira parte, originalmente
escrita em forma de verbetes para enciclopédia Latinoamericana
(publicada pela Boitempo em 2006), conta com a colaboração dos membros
do Grupo de Pesquisa Estudos do Mundo do Trabalho e sua Metamorfoses
da Unicamp. É traçado um panorama do sindicalismo na América Latina,
com dados sobre as centrais sindicais da Argentina, Bolívia, Brasil,
Chile, Colômbia, Cuba, México, Peru, Uruguai e Venezuela.
Fonte: Brasil de
Fato, Joana Tavares, 28/10/11.