A América cruel
Por Jonathan Schell*
Tem havido muitos sinais, recentemente, de que os EUA estão
mergulhando fundo num padrão de crueldade. É difícil dizer por que uma
coisa dessas está ocorrendo, mas parece que isso tem a ver com uma fé
crescente na força como a solução de quase todos os problemas, seja em
casa ou fora. O entusiasmo por matar é um sintoma inequívoco de
crueldade. Isso é especialmente perturbador quando não são apenas os
quadros do governo, mas pessoas comuns que se engajam nessas efusões.
Os debates da campanha presidencial são desenhados para dar aos
candidatos uma oportunidade deles se expressarem aos eleitores. Mas as
platéias, também, algumas vezes tornam seus pontos de vista
conhecidos. Isso aconteceu nos debates republicanos ocorridos entre 7
e 12 de setembro, em dois episódios que foram bastante noticiados. No
da NBC, do dia 7, Brian Williams perguntou ao governador do Texas,
Rick Perry, se em algum momento durante seu mandato, no qual foram
executadas 234 pessoas condenadas à pena de morte (que agora subiu
para 235) ele “lutou para conseguir dormir à noite, com a ideia de que
algum desses condenados pode ter sido inocente”.
Perry tem dormido bem. O Texas, ele disse, tem um sistema judicial
muito “bom”. Então, partiu para um certo tipo de desafio. Disse ele:
“se você vier ao nosso estado...e matar...um de seus cidadãos...você
será executado”. A plateia aplaudiu entusiasticamente.
Williams, claramente surpreso com a manifestação, seguiu em frente
perguntando a Perry o que ele tinha feito para que a sua resposta
tivesse levantado aplausos. O governador foi impassível e repetiu o
seu desafio: “Nossos cidadãos...tornaram claro o motivo, e eles não
querem cometer esses crimes contra os nossos cidadãos, e se você o
fizer, enfrentará a justiça final”.
Que esses não eram os únicos sentimentos possíveis em relação a
execuções penais tornou-se claro rapidamente depois disso. Um
movimento de massas, não apenas nos EUA mas nos países ao redor do
mundo, levantaram-se, sem sucesso, contra a execução no Estado da
Georgia, de Troy Davis, cuja condenação por assassinato há vinte anos
tinha sido posta em dúvida por nova evidência, inclusive a retratação
de sete de nove testemunhas. Uma petição assinada por mais de 600 mil
pessoas foi apresentada à comissão de execução penal, que deixou a
execução seguir adiante.
No debate republicano do dia 12, houve outra expressão pública de
entusiasmo pela perda da vida no Texas. Wolf Blitzer, da CNN perguntou
ao deputado do Texas, Ron Paul, que militou contra o projeto para a
saúde apresentado pelo Presidente Obama, qual seria a resposta médica
que ele daria se um jovem que tivesse decidido não contratar um plano
de saúde entrasse em coma.
Paul respondeu: “É a isso que a liberdade diz respeito: assumir seus
próprios riscos”. Ele parecia estar dizendo que se o jovem morresse
isso seria problema dele.
Houve palmas na plateia.
Blitzer pressionou: “Mas deputado, você está dizendo que a sociedade
deveria deixá-lo morrer?”. Grita alguém na plateia: “Sim!”. E a
multidão segue batendo palmas, em apoio.
Uma das características que esses eventos têm em comum é a crueldade.
A crueldade é a prima irmã da injustiça, ainda que seja diferente. A
injustiça e seu oposto, a justiça – talvez o padrão mais comumente
utilizado para julgar a saúde de um corpo político – são critérios por
excelência, e se aplicam acima de tudo a sistemas e suas instituições.
A crueldade e seus opostos, gentileza, compaixão e decência, são mais
pessoais. São qualidades pessoais que têm, no entanto, consequências
políticas. Um senso de decência de um país se situa acima de sua
política, fiscalizando e estabelecendo limites frente aos abusos. Uma
sociedade injusta deve reformar suas leis e instituições. Uma
sociedade cruel deve reformar a si mesma.
Tem havido muitos sinais, recentemente, de que os EUA têm mergulhado
fundo num padrão de crueldade. É difícil dizer por que uma coisa
dessas está ocorrendo, mas parece que isso tem a ver com uma fé
crescente na força como a solução de quase todos os problemas, seja em
casa ou fora. O entusiasmo por matar é um sintoma inequívoco de
crueldade. Ele também apareceu depois da morte de Osama Bin Laden, que
mobilizou uma estrondosa celebração ao redor do país. Uma coisa é
acreditar na necessidade infeliz de matar alguém; outra é revelar
isso. Isso é especialmente perturbador quando não são apenas os
quadros do governo, mas pessoas comuns que se engajam nessas efusões.
Em qualquer involução no sentido da barbárie pode-se estabelecer dois
estágios. Primeiro, os demônios são apresentados – testados, se
houver. Segundo, vem a reação – seja a indignação e a rejeição ou
outra aceitação [da indicação do demônio], até mesmo o prazer com a
coisa. A escolha pode indicar a diferença entre um país que está
restaurando a decência ou um outro, que está afundando num pesadelo.
Foi um dia escuro para os Estado Unidos aquele em que a administração
Bush ordenou secretamente a tortura de suspeitos de terrorismo. Nesse
dia, a civilização dos EUA caiu num buraco. Mas afundou ainda mais
baixo quando, tendo os fatos dos crimes se tornado conhecidos, o
ex-presidente Bush e o ex vice-presidente Cheney abraçaram
publicamente o mal feito, como o fizeram em sua recente tour de
divulgação de seus respectivos livros. À impunidade que já desfrutaram
eles acrescentaram a insolência, como se desafiando a sociedade a
responder ou a, de outra parte, entrar em cumplicidade tácita com seus
abusos.
E ainda assim houve pouca reação. Numa outra afundada no buraco, o
Presidente Obama, mesmo tendo ordenado o fim da tortura, decidiu na
direção contrária, ao impedir qualquer responsabilização pelas
patifarias, e de fato afastou qualquer punição em geral. Ele sequer
buscou, digamos, algo equivalente a uma Comissão da Verdade como
ocorreu na África do Sul, após o fim do apartheid.
Há muitos outros sinais de que o caminho ladeira abaixo está bem
estabelecido. Nossa justiça criminal busca a injustiça. A pena de
morte desafia padrões de decência aceitos em qualquer país civilizado.
O encarceramento de mais de dois milhões de americanos – a maior
proporção per capita no mundo – é um reflexo assustador de um país que
parece saber que não há outro remédio para as doenças sociais que não
a punição. As condições das prisões são temerosas. Atul Gawande, da
The New Yorker, apresentou um quadro vasto e terrível do sistema
prisional, com técnicas de isolamento que, muitos acreditam, equivalem
à tortura. Os prisioneiros podem ser mantidos em solitárias por anos,
em pequenas celas, sem janelas, nas quais permanecem por 23 horas por
dia.
Muitos prisioneiros – assim como o senador John McCain, que foi
mantido prisioneiro durante a Guerra no Vietnã do Norte – reportaram
que tamanho isolamento é mais angustiante e destrutivo do que a
tortura física. “Isso quebra o nosso espírito e enfraquece a nossa
resistência mais efetivamente do que qualquer outra forma de mau
trato”, disse McCain. Em muitos casos, o confinamento solitário leva à
desintegração mental. Um artigo no Jornal da Academia Americana de
Psiquiatria e Direito diz que “o confinamento da solitária ...pode ser
tão estressante clinicamente como a tortura física”. A diferença entre
uma jaula e uma solitária pode ser maior do que a diferença entre a
liberdade e a jaula, mesmo que essa punição possa ser imposta apenas
administrativamente, por diretores de presídios.
Em 2010 mais de 25 mil detentos foram mantidos nessas condições.
Um deles – confinado não no sistema de prisão regular, mas em
instalações militares – é Bradley Manning, o recruta de 23 anos,
suspeito de vazar documentos para o WikiLeaks. Embora prisioneiro
modelo, ele foi mantido por anos numa prisão de segurança máxima,
enquanto era sujeito ao confinamento de 23 horas, impedido de se
exercitar, sob vigilância permanente e, por um tempo, mantido nu. Na
época, ele não tinha sido acusado de crime algum.
Gawande estabelece uma conexão entre o abuso dos estadunidenses em
casa e a tortura de suspeitos estrangeiros na “guerra contra o
terror”. “Com pouca preocupação ou resistência”, escreve, “temos
despachado milhares de nossos próprios cidadãos para condições que
horrorizariam nossa Suprema Corte há um século. Nossa vontade de nos
desfazer desses padrões para os prisioneiros americanos tornou fácil o
descarte das Convenções de Genebra proibindo tratamento similar de
prisioneiros de guerra estrangeiros”.
Também se pode estabelecer uma conexão entre esses abusos e as atuais
diretrizes das decisões orçamentárias, nas quais, como na prontidão
para denegar assistência em saúde aos moribundos, uma impiedosa
vontade de se desfazer das pessoas em sofrimento de qualquer ajuda que
possam receber é evidente. A lista de cortes, alcançados ou propostos
na agenda da direita é longa demais para enumerar, mas exemplos
recentes, incluindo a assombrosa obstrução de assistência às vítimas
do recente furacão Irene e da tempestade Lee, além de outros
programas, foram cortados; a oposição a que se amplie o seguro
desemprego, a derrota do Dream Act, o qual poderia dar às crianças dos
imigrantes um caminho para a cidadania, a oposição ao gasto do estado
com o programa de assistência em saúde para as crianças (S-CHIP, na
sigla em inglês), assim como do Head Start, e por aí vai. Parece que
ninguém é infeliz o suficiente para ser isento ou isenta do corte
orçamentário, ao passo que, ao mesmo tempo, ninguém é feliz o
suficiente para ser inelegível para ter corte nos impostos. Decisões
orçamentárias não envolvem pena de morte, embora para muitos elas
sejam questão de vida ou de morte.
A crueldade de uma sociedade não pode ser quantificada mais do que o
pode a sua reserva de decência. Nem tampouco pode ser legislada,
embora ambas possam estar manifestas na legislação. Por tudo isso, não
pode haver dúvidas de que decisões básicas, que antecedem qualquer lei
e são provavelmente mais importantes, são silenciosamente tomadas nos
corações e mentes de milhões. Se elas seguem um caminho, um movimento
de milhões, de repente, aparentemente do nada, aparece para protestar
fortemente contra uma execução injusta. Quando vão pelo outro caminho,
você acorda um dia para ouvir, com um frio na espinha, uma sala cheia
de gente comemorando o assassinato de centenas de seus concidadãos.
* Jonathan Schell é correspondente do The Nation, membro Doris
Shaffer no The Nation Institute e dá um curso sobre o dilema nuclear
na Universidade Yale. É autor de The Unconquerable World: Power,
Nonviolence and the Will of the People, [O Mundo Inconquistável:
Poder, Não-Violência e a Vontade do Povo] - uma análise do poder
popular – e de The Seventh Decade: The New Shape of Nuclear Danger [A
Década de Setenta: A Nova Forma do Perigo Nuclear].
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte:
The Nation.