Amazônia: qual o código da nossa esquerda?
Por Gilson Caroni Filho*
Equilíbrio ambiental e desenvolvimento sustentável são elementos
indispensáveis para o futuro do país. Exigem do movimento ecológico
uma reformulação radical que o torne matriz de uma nova esquerda. A
Amazônia é um exemplo. Seu desmatamento é obra conjunta de
latifundiários, grandes empresários e empresas mineradoras.
São os inimigos a serem confrontados prontamente. Será o Código
Florestal a prova dos nove para o habitual transformismo que, vez por
outra, visita forças do campo progressista? Ou talvez a inflexão de
fundo seja de maior envergadura. É hora de a própria esquerda se
livrar do imaginário herdado do padrão fordista e incorporar a luta
pela preservação natural ao seu horizonte político. Fora disso, a
palavra progressista torna-se um vocábulo vazio. Um atributo
discutível para quem luta no campo democrático-popular. O ciclo da
destruição das nossas florestas é sobejamente conhecido.
Desde a década de 1960, a grilagem vem sendo ampliada por intervenções
como o estímulo à mineração e à expansão da pecuária e da lavoura
monoculturista, a abertura ou o asfaltamento de estradas e outros
projetos ditos de “povoamento” e, como agora, no caso de projetos de
hidrelétricas do Rio Madeira, “desenvolvimento”. E isso desde o
simples anúncio, quando tais iniciativas ainda estão no papel.
Todos nós já vimos tramas semelhantes em filmes de faroeste, em que os
robber barons tratam de se apossar, por quaisquer meios, das terras
por onde vai passar a ferrovia ou ser feita a represa.
Uma vez estabelecida a ocupação, tem início a retirada da madeira de
maior valor comercial, destinada às carvoarias e às indústrias
moveleira e de construção civil, etapa que pode levar várias estações
de corte. Exauridos tais recursos, segue-se a “limpeza” da área, por
meio de corte raso e queimada, e o preparo da terra para pastagem.
Quando a extração de madeira se esgota, entra o gado, tipicamente de
corte. Em algum momento, a posse é esquentada por títulos falsificados
de propriedade que, exatamente por serem falsos e porque os registros
e fiscalização são precários, geralmente não aparecem nas estatísticas
oficiais, em que as áreas griladas continuam figurando como terras da
União.
Ironicamente, essas “propriedades” serão usadas como garantia para a
obtenção de empréstimos e financiamentos junto a bancos, tanto
privados como oficiais, e a agências de fomento.
A substituição do gado pela soja ou por outras lavouras extensivas é
determinada, mais que por qualquer outro fator, pela demanda por essas
commodities e por seus preços relativos nos mercados internacionais,
sobre os quais o Brasil não tem qualquer controle: são buyer markets,
mercados de compradores. No caso da soja, vale lembrar que há sinergia
com a pecuária, já que parte significativa da colheita vai para a
produção de farelo empregado em rações animais.
Além disso, o ciclo se expande continuamente. Pois, enquanto a lavoura
está entrando numa área, os grileiros e as motosserras estão abrindo
novas “frentes de ocupação” em outra, para a qual o gado por sua vez
se expandirá ou mesmo deslocará, pois é muito mais fácil deslocar
reses do que vegetais.
Se deixada ao sabor do mercado, a floresta de ontem se converte no
polo madeireiro de hoje, no pasto de amanhã, na lavoura extensiva de
depois de amanhã e, em última instância, em deserto.
O solo característico da Floresta Amazônica, embora rico em elementos
não orgânicos como ferro e alumínio, é extremamente pobre em
nutrientes, e por si só jamais seria capaz de sustentar florestas. E,
no entanto, a floresta está lá. Como? O que sustenta a floresta em pé
é a própria floresta.
A decomposição dos detritos vegetais e animais depositados pela
própria floresta sobre seu solo forma a “terra preta de índio”, um
fino tapete rico em húmus, e são os microorganismos aí presentes que
produzem os nutrientes de que as árvores se alimentam.
Quando a cobertura florestal é removida, o ciclo se rompe. Pois a
camada de “terra preta” é superficial e, sem a floresta para de um
lado renovar os componentes orgânicos e de outro segurá-los, é
rapidamente degradada. Até mesmo pela chuva, que nessas condições, sem
a floresta para proteger o solo do impacto direto, carrega a terra
para as barrancas dos rios acelerando a erosão.
Uma vez derrubada, portanto, a floresta não se recompõe. Disso sabe,
ou deveria saber, o deputado Aldo Rebelo. O campo progressista não
comporta alianças com forças antagônicas à sua história de
combatividade, coerência e superação. Estamos vivendo um debate
decisivo para a agenda que a esquerda pretende propor. O fio da
navalha onde tudo perde a cor, e dificilmente se refaz, reaparece no
cenário político. Como nas florestas degradadas.
* Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades
Integradas Hélio Alonso (FACHA/RJ) e
colunista de Carta Maior. (publicado em 15/5/2011, no site do Correio
do Brasil)