Ideologia
Entre zero e traço

 

Na sua estréia, a TV Brasil teve uma audiência que variou do nada ao meio ponto no ibope.
Ainda bem

 

Ana Paula Oliveira Migliari
Os ministros Gilberto Gil e Franklin Martins debatem no ar: quem precisa de Dormonid?

 

Com o sinal restrito, por enquanto, a Rio de Janeiro, Distrito Federal, Maranhão e a um canal de UHF em São Paulo, estreou na semana passada a TV Brasil, emissora pública criada pelo governo federal e batizada de "TV do Lula" (não confundir com a TV de alta definição. Leia a reportagem na pág. 152). A nova emissora conseguiu a façanha de ter zero de ibope em uma das manhãs de sua primeira semana. No domingo, foi ao ar uma revista eletrônica que se arrastou por nove horas. Sim, você leu certo: nove horas. Mais ou menos o que leva um discurso-padrão dos camaradas Fidel Castro ou Hugo Chávez. O ponto alto foi um debate entre os ministros Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, e Gilberto Gil, da Cultura. O assunto? A importância da TV pública, ora. Os dois ou três espectadores da emissora agora aguardam ansiosamente pelos debates decisivos sobre os projetos do governo para a produção de etanol. Um dormonid teria menos efeito soporífero. 

A nova emissora já tem o seu telejornal – o Repórter Brasil, uma fusão do material produzido pela TVE, a emissora federal com sede no Rio, e pela Radiobrás, empresa estatal encarregada de programas como a Voz do Brasil e Café com o Presidente. Sua independência do poder? Nenhuma. Nele, o presidente Lula aparece até para dar palpites sobre o rebaixamento do Corinthians. O espectador gosta de documentário? Também tem: sobre as viagens pela América Latina do jovem Che Guevara em sua fase ternurinha, claro.

A pasmaceira no vídeo contrasta com a agitação nos bastidores. Como a natureza, as vagas no serviço público abominam o vácuo. Elas estão sendo ocupadas em ritmo frenético pelos petistas. Quem não faz parte da turma é escanteado para abrir espaço para os companheiros. Foi o caso da ex-diretora da TVE, canal a ser inteiramente absorvido pela nova emissora. Desde 2003, a jornalista Beth Carmona o comandava. Sua experiência foi desprezada pela direção da TV Brasil, que queria designá-la para cuidar apenas da programação infantil. Diante do rebaixamento iminente, ela pediu demissão, no que foi acompanhada por Rosa Crescente, que dirigia a programação da TVE. Outra defecção ocorreu em pleno vôo. O professor universitário Felipe Pena, integrante do grupo de debatedores do programa Espaço Público, da TVE, saiu do estúdio denunciando ter sido censurado pela apresentadora, Lúcia Leme. Ela pediu que

 

Alaor Filho/AE
Beth Carmona: a única saída foi o olho da rua.

Pena maneirasse nas críticas ao governo. Diz ele: "Não posso concordar com esse tipo de censura".
 

José Cruz/ABR
Tereza Cruvinel: nada além do controle remoto.

 

A TV pública parece ser apenas um prêmio de consolação para os aloprados que tentaram em vão censurar a imprensa com a criação de um soviet (conselho, em russo) Federal de Jornalismo no primeiro mandato de Lula. A presidente da TV Brasil é a jornalista Tereza Cruvinel. Sobre a improvisação e os resultados pífios da primeira semana, Tereza avisa: "Não foi uma estréia. Fizemos apenas a fusão da programação da TVE com a da Radiobrás. A estréia será em março do ano que vem". Ou seja, se tivesse funcionado era estréia. Como foi um fracasso não é estréia. Um primor de novilíngua.

Por enquanto a TV Brasil oferece um triste espetáculo imposto de cima para baixo por força de medida provisória. Tudo foi feito às pressas antes que se respondesse a duas simples questões. Primeira, "o Brasil precisa de uma TV pública?". Segunda, "mas o Brasil já não tem uma TV pública?". A resposta à primeira pergunta varia de

acordo com a visão de cada um. A resposta à segunda independe de opinião. É fato. O Brasil já tem TV pública – em excesso. São 177 canais, que consomem 800 milhões de reais por ano pagos por você, leitor. E para quê? Para compor aquela extensa zona morta no controle remoto. Por que razão então se correu para gastar mais outras centenas de milhões de reais por ano do suado dinheiro dos brasileiros que trabalham e estudam com uma TV pública que estréia sem estrear e cuja audiência varia entre o traço e o zero? Difícil saber.

As experiências de TVs públicas nas grandes democracias do Ocidente não são lá uma Brastemp. Na França e na Itália elas servem para empregar jornalistas cujo talento rarefeito e obsessão política os inabilitam a disputar uma vaga nas televisões comerciais. Nos Estados Unidos, onde não são apenas subsidiadas pelo governo mas mantidas pela sociedade, as emissoras de caráter público cumprem um papel que no Brasil já é fartamente atendido pelas TVs do Senado, da Câmara dos Deputados e do Poder Judiciário. A inglesa BBC sobressai da paisagem pela tradição adquirida nos duros tempos da II Guerra Mundial, em que funcionou como braço da contrapropaganda aliada na Europa ocupada pelo nazismo. Dominada hoje por uma burocracia mais acomodada, adotou uma linha de adesão automática ao politicamente correto e, nas questões de política externa, ao antiamericanismo. A BBC é paga com a contribuição compulsória de todos os cidadãos ingleses (veja o quadro). Por aqui se diz que a TV Pública do Brasil terá a BBC como modelo. Por sua história e natureza, a BBC é uma experiência inimitável. Mas, se fosse fácil assim imitar as instituições da Inglaterra, por que não começar pela Royal Navy?

 




 

Fonte: Rev. Veja, ed. 2038, 12/12/2007.

 


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