A VERDADEIRA HERANÇA MALDITA
César Benjamin


       
César Benjamin, em palestra proferida no dia 4 de dezembro de 2003, durante o seminário "Um ano de Governo Lula: balanço e perspectivas".


      Boa noite a todos e a todas. Meus colegas e amigos do projeto de nálise de conjuntura sabem que eu não gostaria de estar falando aqui. Pedi para não ocupar essa posição por motivos pessoais. Ando muito deprimido, e isto está me criando uma certa angústia. Há mais ou menos vinte dias fui falar na UFRJ e acabei chorando no meio. Foi um mico horroroso. Espero conseguir chegar ao fim desta minha fala, e por isso vou fazê-la de maneira rápida.

      Vou fugir da economia, por três motivos. O primeiro é que tenho feito uma análise mensal de economia e política econômica na nossa página, de tal maneira que o que eu venho pensando sobre o tema vocês podem ler ali. Segundo, as duas intervenções que me recederam já trabalharam o tema; acho que seria chover no molhado. Terceiro, porque estou convencido de que economia não é o mais importante. O xis do problema está na política, mais precisamente nas decisões políticas de fundo que estão sendo tomadas.

      O governo Lula, ao se constituir e nos meses subseqüentes à sua posse, trabalhou simultaneamente com três discursos diferentes para a sociedade brasileira. O primeiro - que foi muito enfatizado, por exemplo, pela área econômica - afirmava a existência de uma "continuidade virtuosa" em relação à política anterior. Todos se lembram dos enormes elogios que foram feitos à gestão de Pedro Malan e Armínio Fraga, causando na época muita surpresa, na medida que se tratava de um novo governo, eleito pela oposição.

      Em paralelo, uma segunda linha de discurso acentuava a existência de uma "herança maldita". Ficava difícil entender como que uma política econômica tão virtuosa, que merecia tantos elogios e tantas garantias de continuidade, poderia estar nos legando uma herança maldita. Mas isso não inibiu o novo governo, que adotou esses dois discursos, dirigidos a públicos diferentes: um feito pelas novas autoridades econômicas para os chamados mercados, o outro feito pela área política para a militância do próprio PT e a esquerda em geral, de modo a justificar a política econômica conservadora. Para conciliar esses dois discursos contraditórios, o próprio presidente Lula enfatizava um terceiro, que pode ser assim resumido: "Não vamos olhar para o passado; vamos falar do futuro."

      Assim, nós assistimos à implantação de um governo que desde o início foi fortemente marcado pela ambigüidade e que, a meu ver, vem cultivando esta ambigüidade até o limite. Pois cultivar a ambigüidade é parte essencial de sua estratégia política. Quando você é muito ambíguo, cada um se vê um pouco em você. Este é um governo que se esforça por manter-se enigmático, pelo menos do ponto de vista do discurso, fazendo com que cada segmento social e cada grupo se reconheça um pouco nele - seja realmente, seja no plano do imaginário -, de maneira a produzir uma fuga para frente em seu projeto.

      Pessoalmente, não compartilho da idéia de que havia uma herança maldita em macroeconomia. Havia um conjunto de dificuldades e inconsistências que nós vínhamos denunciando e debatendo há muitos anos. Havia um péssimo modelo econômico, que gerava um conjunto de dificuldades. Mas não havia uma crise especialmente aguda. Ao contrário. Alguns indicadores importantes - como o saldo comercial - estavam numa fase excepcionalmente boa.

     Apesar disso, eu concordo com a afirmação que esses dez anos de hegemonia neoliberal nos deixaram de fato uma herança maldita. Mas em outro nível. No nível do nosso imaginário. No nível da nossa capacidade de sonhar. No nível do nosso reconhecimento sobre nós mesmos.
 
      Nós herdamos desse período três grandes características, que não são econômicas, e que talvez sejam mais importantes para a perpetuação da nossa crise do que as questões econômicas stricto sensu.

      Uma primeira herança maldita é uma enorme perda na nossa autoconfiança. Isso significa uma alteração profunda no imaginário brasileiro. O Brasil, ao longo do século XX, pensou em si mesmo, cada vez mais, como um grande país, um país cheio de potencialidades. O Brasil da geração dos meus pais era o país do futuro, que recebia populações do mundo inteiro, atraídas pelas oportunidades daqui. Em nome desse imaginário, o Brasil fez no século XX algumas coisas impressionantes, pois foi capaz de ousar.

      Pois bem. Uma primeira herança maldita que nós recebemos dessa década de 1990 foi a destruição desse imaginário. Passamos a nos pensar como um país pequeno, problemático, frágil, sempre doente, pedinte, necessitado de auxílio. Um país que, por exemplo, no terreno da economia, depende crucialmente de atrair capital estrangeiro para que possa se desenvolver. Nos convencemos - ou fomos convencidos - da nossa própria incapacidade, o que aliás contrasta de forma chocante com as condições estruturais desse enorme país que herdamos e temos o dever de conduzir.

      O primeiro elemento da crise brasileira é a perda de confiança em nós mesmos, é a idéia de que não valemos nada: nossa língua não vale nada, precisamos falar inglês; nossos produtos não valem nada, os produtos bons são importados. Nosso povo não vale nada. Alteramos o imaginário brasileiro em um sentido muito perverso.

      Uma segunda herança maldita que nós recebemos desse período - daqui a pouco eu choro... (risos da platéia) - é uma terrível incapacidade de construir a nossa própria agenda. Quais são os nossos problemas? Qual é a nossa pauta de ação? Reparem qual é a agenda brasileira há muitos anos: o chamado "risco Brasil", a cotação do dólar e a oscilação da bolsa de valores. O que isso tem a ver com o nosso povo? O que isso tem a ver com o nosso país? Ninguém aqui tem ações em bolsa. Ninguém aqui especula com dólar. As nossas questões fundamentais de habitação, saneamento, educação, alimentação e saúde dependem de mobilizarmos capacidade produtiva e técnica que estão aqui dentro e não passam por nenhum desses indicadores.

      Outro dia minha filha chegou em casa assustada. Trabalhava no Ibase, no centro da cidade, e foi assaltada em um ônibus, à mão armada, às duas horas da tarde. No dia seguinte, a faxineira disse que seu marido havia perdido o emprego. Então abri o jornal e li: o "risco Brasil" caiu... (risos da platéia) Do que esses caras estão falando?! Não sei que risco Brasil é esse que caiu. Na minha família não caiu risco nenhum. Pelo contrário, aumentou.

      O mais importante é que isso nos subtrai a capacidade de olharmos para nós mesmos. Vou dar só um exemplo para vocês, mas poderia dar vários. Estive no ano passado na beira do São Francisco, no sertão da Bahia. Conversando com o pessoal das igrejas e de outras instituições que atuam lá, pude ver, debater e ter acesso a estudos que mostram o processo de morte do rio, aliás bem visível. Hoje, em grandes extensões, você atravessa o São Francisco com água pelos joelhos, e vários estudos mostram que ele pode se tornar um rio intermitente em 10 ou 12 anos.

      Alguém aqui se dá conta da tragédia que poderá ser a morte do São Francisco? Primeiro: é uma tragédia social imediata. São centenas de milhares de famílias que moram na bacia do rio e de alguma maneira têm nele a sua fonte, direta ou indireta, de sustento. Mas há mais, há a tragédia simbólica. Esse é o chamado "rio da integração nacional". Parte significativa da História do Brasil se fez em torno dele, que nasce no coração de Minas Gerais e vai até o Nordeste. Ele foi o elo fundamental de ligação de uma parte muito importante do território brasileiro. Se nós deixarmos o São Francisco morrer, estamos dizendo para nós mesmos que somos uns fracassados.

      Mas esse problema não freqüenta a agenda de debates brasileira, nem a agenda de decisões do nosso governo. Por quê? Porque isso não interessa em nada aos investidores internacionais, não afeta o "risco Brasil", não influencia a cotação do dólar, não faz as bolsas oscilarem. Estou apontando um problema que considero importante: nós não temos mais discernimento sobre os nossos próprios problemas, não sabemos mais escolher o que devemos tratar. Não sabemos mais olhar para nós mesmos, para o nosso povo e o nosso território, e identificar os nossos problemas e as nossas potencialidades. Gravitamos em torno de temas artificiais e importados.

      Agora, por exemplo, estamos todos debatendo a Alca. Será que a Alca foi uma proposta que surgiu da sociedade brasileira, dos seus movimentos, das suas necessidades, da sua vontade? Não! É mais uma proposta de fora para dentro! As propostas de fora para dentro são as únicas que impulsionam o nosso debate e mobilizam o nosso governo. As únicas.

      Um terceiro elemento daquela herança maldita é nossa perda do sentimento de que a Nação existe em uma temporalidade estendida. O capital financeiro, que nos domina, é móvel, fluido, esperto, melífluo, rápido. O tempo do capital financeiro é o curto prazo. Quando ligamos o Jornal Nacional da Rede Globo - um jornal dirigido à massa da população brasileira -, vemos todos os dias o índice de oscilação infinitesimal da bolsa de valores não só do Brasil, mas também de Nova York. Além do índice geral, Dow Jones, a Globo dá o índice Nasdaq, do setor de alta tecnologia da bolsa de Nova York. Às vezes a oscilação ocorre na segunda casa decimal. Mesmo assim, é notícia no principal jornal do Brasil. Há um componente ideológico extremamente perverso nisso, pois redefine uma dimensão essencial da nossa existência, que é o tempo.

      O capital financeiro é móvel, rápido, fluido. Mas a Nação não é. A Nação tem território, tem História, tem memória, tem cultura. Principalmente, a Nação tem gente. Nós não somos móveis, fluidos, melífluos. Por isso, o processo de construção de uma Nação se dá em outro tempo, que não é o tempo rápido do capital financeiro. Nós fomos expropriados dessa dimensão. Nossos ministros se reúnem para debater a cotação do dólar na semana que vem, mas não se reúnem para discutir as grandes questões que vão definir o que o Brasil será no século XXI.

      Posso dar mais um exemplo, poderia dar 30. No início dos anos 50, nós vivíamos o auge do ciclo do petróleo. O país tinha uma economia muito frágil - isso foi antes do Plano de Metas. Nossa pauta de exportações em 1950 era composta de café, cacau e madeira. O país não tinha técnica desenvolvida, não tinha capital. Chamamos, à época, uma missão norte-americana para fazer a prospecção de petróleo aqui, e a conclusão dessa missão foi de que não havia petróleo no Brasil.

      O que o Brasil fez? Fundou a Petrobrás! Vocês se dão conta da ousadia e da grandeza desse gesto? Nós somos pobres, não temos técnica, não temos experiência e os melhores geólogos do mundo dizem que nós não temos petróleo. Ah é? Então nós vamos fundar a Petrobrás e vamos procurar, nós mesmos, o petróleo. Em que essa decisão estava ancorada? Não em um relatório técnico, por certo. Estava ancorada naquele imaginário a que me referi. O imaginário da viabilidade do Brasil, da generosidade do nosso território, da possibilidade de fazer e construir.
 
      Pois bem, estamos entrando no século XXI. Ao longo das próximas décadas a importância do petróleo tende a diminuir, e nós vamos entrar de vez no ciclo das biotecnologias. Somos detentores do maior estoque de riqueza genética do mundo. Por que este país, em vez de discutir a merda da bolsa Nasdaq, não discute a constituição de uma empresa brasileira de desenvolvimento de biotecnologia que, associada ao conhecimento que as populações amazônicas já têm, nos coloque na frente daqui a 20 anos? Nós hoje somos muito mais fortes do que éramos em 1950! Temos muito mais capacidade técnica! Não precisamos procurar a biodiversidade sob o chão - ela está aí, na floresta exuberante!

      Todas as instituições e empresas que existem foram criadas um dia: a UERJ, a UFRJ, a Embrapa, a Vale do Rio Doce, o Museu Goeldi, o Impa, o Inpe, o Instituto de Manguinhos, a Embraer, a Coppe...  Percebam, por favor, que nós não criamos nada há muitos anos. É só cortar, cortar, cortar. Vender, desnacionalizar, fatiar, desmontar, desfazer. Tudo o que existe tem que ser destruído. Vocês se dão conta disso? Tudo o que existe e começa a dar certo é colocado sob suspeita. Pois, no fundo da nossa alma, nós fomos convencidos de que o Brasil não pode dar certo, não vai dar certo, não deve dar certo, a não ser que o sétimo regimento de cavalaria - ou seja, o capital americano - venha aqui nos ensinar tudo o que a gente tem que fazer. É uma lástima. Eles vêm para cá quando querem, saem quando querem, e vêm com a agenda deles, com os problemas deles, com as necessidades deles, com as técnicas deles, com as bugingangas deles, que freqüentemente não correspondem ao que precisamos. Para uma empresa ou banco multinacional, não é problema se o São Francisco vai morrer ou se nossas periferias estão cheia de gente sem lugar e sem perspectivas. Esses são problemas nossos.  

      A verdadeira herança maldita que nós recebemos da década neoliberal é esta combinação conservadora, reacionária, medíocre e indecente, que nos diz o tempo todo que nós não podemos nada; que nos impede de construir a nossa própria agenda; e que nos expropria as dimensões do espaço, do tempo e das pessoas, que são os elementos mais importantes para a construção da Nação.

      É aí, ao meu ver, que o governo Lula mostra o seu caráter verdadeiramente reacionário. Podemos discutir macroeconomia com o ministro Palocci, mas isso, de certo ponto de vista, é secundário. Mesmo que tivéssemos de manter elementos do modelo anterior - o que não é minha opinião - quanta coisa nós já deveríamos estar fazendo! Não me venham falar de falta de recursos. Eles estão sobrando. Contingenciados.

      Nossa crise é só secundariamente uma crise econômica. É, antes de tudo, falta de projeto. Pior: há falta de vontade de ter projeto. Por isso, o dilema central do governo Lula é político. Ao longo do seu primeiro ano, Lula atuou metodicamente para demolir a capacidade de organização e mobilização das forças sociais que podem ajudar a mudar o Brasil, que são as forças que o conduziram à Presidência. O desemprego em alta inibe a organização e a ação dos trabalhadores. O aumento da miséria aumenta a clientela das ações caridosas dos políticos. Continua-se a demonizar o funcionalismo público, sem o qual não há políticas públicas nem políticas de Estado. Movimentos e organizações da sociedade civil são ignorados. Temos um governo inimigo do debate e da participação, que pede paciência infinita aos que estão com fome, enquanto atende antecipadamente os gulosos.

      Recentemente, saiu um documento do ministério da Fazenda que diz que as universidades públicas são de elite. Eles consideram elite todo mundo que tem renda mensal acima de R$ 850... (risos) É a mesmice de sempre: tudo que constituiu algum nível  de organização e de cidadania, tudo o que pode vir a ser um ponto de Arquimedes para a Nação colocar a sua alavanca - para alavancar a si própria e puxar os mais pobres - tem que ser destruído. Reforça-se assim uma clara linha de continuidade ideológica do governo anterior.

      Os discursos do presidente Lula são pérolas de conservadorismo. Tudo o que ele diz é o seguinte: "esperem para me julgar ao fim de quatro anos", quando ele tinha que dizer: "mobilizem-se para mudar o Brasil". Ele tinha que ser um instrumento da mudança junto com o povo, mas é um instrumento da passividade. Está a serviço da idéia da nossa fraqueza, da idéia de que não podemos nada. E de que, portanto, só podemos mudar sem criar nenhuma turbulência. Como é que se muda sem nenhuma turbulência? Quem tem medo de tirar o pé do chão não caminha. Só caminha quem aceita algum desequilíbrio.

      Há um enlace direto entre a política econômica conservadora e um governo ideologicamente conservador. Pois, se a política econômica é essa, a prioridade é acalmar os mercados financeiros. Mas, se houver participação popular, mobilização, organização, ares de mudança, os mercados financeiros não se acalmarão. Ficarão nervosos. Logo, a mediocridade de sempre inunda economia e política.

      Nós poderemos assistir a curto prazo, no Brasil, aior derrota da esquerda mundial. Somos um país muito desigual e com muita pobreza. Fazer aqui esta política, exercer aqui este tipo de governo, é muito mais grave do que fazer algo mais ou menos semelhante na Europa. A Europa é um continente com ampla maioria de cidadãos e alguns focos de pobreza. Nós somos um país-continente com ampla maioria de pobres e alguns focos de cidadania. Aqui, a reprodução dessa política é muito mais dramática e muito mais vergonhosa. Daí a minha angústia.

      Repito, para finalizar: a questão central do governo Lula não é a macroeconomia. O juro está alto hoje, pode estar baixo amanhã. Mas o mal que está sendo feito neste país, no sentido de perpetuar a verdadeira herança maldita, é que inviabiliza a esperança e coloca o governo Lula, definitivamente, como um fracasso de grandes dimensões.


      Muito obrigado.

 


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