A utilidade do conhecimento
Carlos Vogt* 

  

Como transformar conhecimento em valor econômico e social, ou, num dos jargões comuns ao nosso tempo, como agregar valor ao conhecimento?

Gostaria de começar agradecendo a École Normale Supérieure Lettres et Sciences Humaines, seu Conseil d’administration e, em particular, o professor Sylvain Auroux, seu diretor, a honra que me foi conferida pela concessão do título de Docteur honoris causa.

Honra que se acresce pela companhia com a qual recebo tão fina distinção: o professor Tulio di Mauro, o teatrólogo Dario Fo e o cineasta Raoul Ruiz.

Conheci o professor Sylvain Auroux em dezembro de 1988, na cidade do Porto, durante o Encontro Internacional da Associação Portuguesa de Semiótica.

Faço referência a esse evento porque desconfio que nele se encontra a ponta do fio que hoje nos reúne, passados 17 anos, aqui em Lyon, para esta cerimônia acadêmica, nesta ilustre casa de ensino, pesquisa e produção do conhecimento.

Reencontrei-me com o professor Sylvain Auroux várias vezes, ao longo dos anos subseqüentes a esse primeiro encontro e pudemos, assim, ir tecendo a teia de uma cooperação intelectual e institucional fortalecida pelos laços de iniciativas importantes como aquela que já, há muitos anos, une a École Normale Supérieure Lettres et Sciences Humaines e a Universidade Estadual de Campinas, ? a Unicamp ? através dos projetos liderados pelo prof. Auroux, na França, e pelos professores Eni Orlandi e Eduardo Guimarães, no Brasil.

Os laços culturais, acadêmicos e intelectuais entre nossos países são muito fortes e tanto mais fortes quanto mais vivenciados na história individual e social daqueles que, como eu, tiveram a sorte de poder viver neste país, nele estudar e dele usufruir a beleza de suas tradições e a atualidade de suas memórias, vivas na confluência, sempre renovada, do passado e do presente.

Para a França vim, pela primeira vez, em 1970 para, já contratado pela Unicamp, fazer um mestrado em lingüística na Faculté des Lettres et Sciences Humaines de Besançon, onde ensinava o professor Yves Gentilhomme que trabalhava, então, com as relações entre a lingüística e a matemática.

Criava-se na Unicamp o Departamento de Lingüística que viria, depois, dar origem ao Instituto de Estudos da Linguagem.

Eu integrava, desse modo, com outros colegas, o núcleo fundador desse departamento, por indicação do professor Antonio Cândido, da teoria literária, do professor Albert Audubert, da cadeira de francês, ambos da USP, e do professor de filosofia, Fausto Castilho, fundador e primeiro diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, na Unicamp.

Obtive em, Besançon, antes do mestrado, minha Licence és Letteres com ênfase em lingüística geral e em lingüística francesa e, sob a orientação do professor Jean Peytard, a Maitrise de Lettres Modernes.

Por um acordo com o professor Peytard, pude, enquanto redigia minha dissertação de mestrado – Une Introduction au Problème de la Sémantique dans la Grammaire Générative ?, ir para Paris e lá freqüentar vários cursos e seminários em semântica e em semiologia, entre eles o do professor Oswald Ducrot, do professor Greimas e do professor Roland Barthes.

Fixei-me mais intensamente nos cursos de Oswald Ducrot e, sob sua orientação, defendi, em 1974, na Unicamp, minha tese de doutorado: O Intervalo Semântico – contribuição para uma teoria semântico-argumentativa.

Dediquei-me ao estudo da filosofia analítica, publiquei artigos, livros, poemas e, juntamente com o antropólogo Peter Fry, um longo estudo sobre uma comunidade negra do estado de São Paulo que manteve o uso ativo de um vocabulário de origem banto, além do português, no cotidiano de sua vida social: Cafundó – A África no Brasil. 

Dediquei-me e tenho me dedicado à vida institucional também como dirigente, tendo sido reitor da Unicamp e atualmente presidente da Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

Há cerca de 10 anos, pouco mais, comecei a interessar-me acadêmica e intelectualmente pelo tema da divulgação científica e hoje coordeno, na Unicamp, além de um programa de pós-graduação, uma série de publicações na área.

É essa atividade que tem me levado, entre outros temas correlatos a refletir de maneira sistemática sobre o papel e a utilidade do conhecimento no mundo contemporâneo.

Um pouco dessa reflexão eu gostaria de compartilhar com vocês nesse momento tão singular e importante de minha vida acadêmica e intelectual, em que recebo essa alta distinção do título de doutor honoris causa pela École Normale Supérieure de Lyon.

Um dos grandes desafios do mundo contemporâneo é, ao lado do chamado desenvolvimento sustentável, a transformação do conhecimento em riqueza.

Como estabelecer padrões de produção e de consumo que atendam às demandas das populações crescentes em todos os cantos da Terra, preservando a qualidade de vida e o equilíbrio do meio ambiente no planeta?

Esta é, em resumo, a pergunta que nos põe o assim chamado desafio ecológico. Como transformar conhecimento em valor econômico e social, ou, num dos jargões comuns ao nosso tempo, como agregar valor ao conhecimento?

Responder a essa pergunta é aceitar o segundo desafio acima mencionado e que poderíamos chamar de desafio tecnológico.

Para enfrentar essa tarefa, própria do que também se convencionou chamar economia ou sociedade do conhecimento, deveríamos estar preparados, entre outras coisas, para cumprir todo um ciclo de evoluções e de transformações do conhecimento.

Ele vai da pesquisa básica, produzida nas universidades e nas instituições afins, passa pela pesquisa aplicada e resulta em inovação tecnológica capaz de agregar valor comercial, isto é, resulta em produto de mercado.

Os atores principais desse momento do processo do conhecimento já não são mais as universidades, mas as empresas.

Entretanto, para que a atuação das empresas seja eficaz, é necessário que tenham no seu interior, como parte de sua política de desenvolvimento, centros de pesquisa próprios ou consorciados com outras empresas e com laboratórios de universidades.

O importante é que a política de pesquisa e desenvolvimento seja da empresa e vise às finalidades comercialmente competitivas da empresa. Sem isso, não há o desafio do mercado, não há avanço tecnológico e não há, por fim, inovação no produto.

Um dos pressupostos essenciais da chamada sociedade ou economia do conhecimento é, pois, para muito além da capacidade de produção e de reprodução industriais, a capacidade de gerar conhecimento tecnológico e, por meio dele, inovar constantemente para um mercado ávido de novidades e nervoso nas exigências de consumo.

Na economia tipicamente industrial, a lógica de produção era multiplicar o mesmo produto, massificando-o para um número cada vez maior de consumidores.

Costuma-se dizer que na sociedade do conhecimento essa lógica de produção tem o sinal invertido: multiplicar cada vez mais o produto, num processo de constante diferenciação, para o mesmo segmento e o mesmo número de consumidores.

Daí, entre outras coisas, a importância para esse mercado, da pesquisa e da inovação tecnológicas.

A ser verdade essa troca de sinais, a lógica de produção do mundo contemporâneo seria não só inversa, mas também perversa, já que resultaria num processo sistemático de exclusão social, tanto pelo lado da participação na riqueza produzida, dada a sua concentração – inevitável para uns e insuportável para muitos –, quanto pelo lado do acesso aos bens, serviços e facilidades por ela gerados, isto é, o acesso ao consumo dos produtos do conhecimento tecnológico e inovador.

Desse modo, aos desafios enunciados logo no início, é preciso acrescentar um outro, tão urgente de necessidade quanto os outros dois: o de que, no afã do utilitarismo prático de tudo converter em valor econômico, tal qual um Rei Midas que na lenda tudo transformava em ouro pelo simples toque, não percamos de vista os fundamentos éticos, estéticos e sociais sobre os quais se assenta a própria possibilidade do conhecimento e de seus avanços.

Verdade, beleza e bondade, no mínimo, dão ao homem, como já se escreveu, a ilusão de que, por elas, ele escapa da própria escravidão humana.

Dividir a riqueza, fruto do conhecimento, e socializar o acesso aos seus benefícios, fruto da tecnologia e da inovação é, pois, o terceiro grande desafio que devemos enfrentar e a sua formulação poderia se dar dentro de uma perspectiva cuja tônica fosse a de um pragmatismo ético e social.

Quem sabe, possa ele constituir a utopia indispensável ao tecido do sonho de solidariedade das sociedades contemporâneas.

Todo conhecimento é útil. Como o fundamento da moral é a utilidade, é possível afirmar que a utilidade do conhecimento é o que o torna ético, por definição. Nesse sentido, não há conhecimento inútil, já que a ação de conhecer está voltada para proporcionar felicidade, prazer e satisfação à sociedade.

O conhecimento é útil porque, como outras ações éticas do ser humano, corresponde à necessidade de uma prática desejável, aquela que nos leva a buscar a felicidade de nossos semelhantes e nela sentir o prazer de sua realização no outro.

Uma das características fundamentais do conhecimento contemporâneo é o seu utilitarismo.

Em que sentido o conhecimento utilitário das economias globalizadas na sociedade do conhecimento difere da utilidade ética constitutiva de todo conhecimento?

Procurar responder a essa questão é também procurar entender, na lógica de funcionamento das tecnociências, como as grandes transformações tecnológicas influenciam a ciência e como a ciência, ela própria, propicia novas tecnologias e inovações que dinamizam os mercados e ativam o consumo das novidades dos produtos delas decorrentes.

Desse ponto de vista, o conhecimento é utilitário não porque tenha finalidade prática, mas por agregar valor aos produtos dele derivados e por ter objetivos fortemente comerciais.

A comercialização do produto do conhecimento visa também à felicidade do outro, pela satisfação e pelo prazer, agora, do consumidor a que ficou reduzido o seu papel social.

Por outro lado, a dinâmica do conhecimento pressupõe a liberdade de conhecer. Os limites dessa liberdade são dados pelo alcance de nossa capacidade de conhecimento, isto é, nos termos dos ensaios de Montaigne e da filosofia de Pascal, pela portée, pelo raio de ação, do alcance da vida, da vida dentro do alcance de nossa ação no mundo.

Em outras palavras e em termos baconianos, a liberdade do conhecimento tem os limites do conhecimento puro em oposição ao conhecimento orgulhoso, oposição que, de certa forma, sob diferentes expressões, caracteriza todo o iluminismo e a grande e a longa herança racionalista que nos legou e que viva permanece em nossas atitudes teóricas e metodológicas diante do mundo, de seu conhecimento e dentro do conhecimento do conhecimento do mundo, para introduzir aí uma pitada de idealismo kantiano.

A alegoria mais conhecida do elogio da humildade do conhecimento contra o orgulho e a arrogância da pretensão metafísica das perguntas essenciais e das respostas definitivas está contida no jardim que Cândido, na obra homônima de Voltaire, descobre e decide cultivar em oposição às inquietações sem limite, isto é, sem alcance, sem portée, sem raio de ação, de Pangloss.

Da mesma forma, Swift, no livro famoso das Viagens de Gulliver, descreve os laputanos plenos de predicados que os tornam ilimitados e inúteis de conhecimento.

São dotados para conhecer, sendo matemáticos exímios, mas são ambiciosos, vivendo nas nuvens, daí terem “um dos olhos voltado para dentro e o outro apontando diretamente para o zênite”.

Quer dizer, são orgulhosos por que querem a verdade definitiva e por serem dotados dessa ambição de conhecimento vivem tropeçando em si mesmos sem se dar conta do jardim que está ao alcance da vida de cada um para se cultivar.

Para que se tenha medida da permanência desse tema, e num outro campo de produção intelectual, vale lembrar o episódio da resenha publicada em 1915 no The Times Literary Supplement sobre o livro A servidão humana, de Somerset Maugham, lançado no mesmo ano, e na qual se afirmava que o herói do romance, Philip Carey, do princípio ao fim da narrativa, “estava tão ocupado com seus anseios pela lua que jamais conseguia ver os seis vinténs a seus pés”.

Quatro anos depois da publicação da saga de formação e de aprendizagem do torturado Philip Carey, Somerset Maugham publica um romance inspirado na história de vida do pintor Paul Gauguin, cria um personagem ? Charles Strickland ? que, de operador da bolsa de Londres, abandona tudo ? vinténs e família ? e se entrega, de corpo e alma, no Tahiti, à obsessão única e exclusiva de sua exuberante produção artística em pintura.

O livro, de 1919, teve seu título ? The moon and six pence (Um gosto e seis vinténs, no Brasil) ? tirado da resenha do The Times Literary Supplement, aceita quase como uma provocação a que responde o narrador autobiográfico do romance com uma forte simpatia pela saga do herói que despreza os apelos materiais e as obrigações sociais de seus compromissos e vai em busca da lua e da realização de seus sonhos.

Solução em tudo contrária à do desfecho de romântico prosaísmo que caracteriza a paz e a tranqüilidade do jardim de amor?afeição (loving-kindness) que o casamento de Philip Carey e Sally Altheny constitui ao final da saga de formação e de amadurecimento do protagonista.

Esses dois romances de Somerset Maugham poderiam ser tomados como que representando as duas pontas da tensão por que se estende nossa existência no mundo e o conhecimento do mundo de nossa existência.

É como se fossem tótens epistemológicos entre os quais ressoa a pergunta que o homem não deixará de fazer enquanto durar sua humanidade: “Qual o sentido da vida, se é que a vida tem algum sentido?”

Penso que o sentido da vida é o conhecimento que, desse modo, é ilimitado pela amplitude da pergunta, e é, ao mesmo tempo, limitado e útil pelo alcance de nossa capacidade de resposta.

Algo parecido pode ser encontrado, ou perdido, na metáfora fantástica e imortal do universo como a biblioteca de Babel, que nos apresenta Jorge Luis Borges em seu conto famoso.

Depois de perambular pelos paradoxos do conhecimento contidos em sua labiríntica arquitetura, o autor/narrador anota, sob a forma de falsa conclusão, que a biblioteca é ilimitada e periódica.

E termina: «Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao cabo dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que repetida, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão se alegra com essa elegante esperança.

Alegro-me também por estar com vocês nesta homenagem e não estar sozinho neste elogio do conhecimento, ilimitado e periódico como o universo de Borges na sua biblioteca de Babel.”
 

* Carlos Vogt é presidente da Fapesp, ex-reitor da Unicamp, editor da revista Ciência e Cultura, lingüista e poeta. Texto proferido por ocasião da outorga do título de Doutor Honoris Causa pela École Normale Supérieure de Lyon, em 18 de novembro.
 

Fonte: JC e-mail, n. 2906, 1/12/2005.


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