Universidade para poucos
Hélio Schwartsman*



OK. Eu admito que o artigo tinha um caráter meio contumelioso. Ele, aliás, começava justamente afirmando tratar-se de uma provocação. Ainda assim, acho que dá para defender de verdade a tese de que diplomas universitários devem ser vendidos a algo como R$ 10 em papelarias e casas lotéricas. Foi o que fiz em texto publicado no último sábado na versão impressa da Folha de S.Paulo.

Basicamente, eu sustentava que essa medida tenderia a acabar com as chamadas arapucas de terceiro grau, em que péssimas escolas vendem a preços extorsivos um pedaço de papel reconhecido pelo MEC, sem, contudo, acrescentar algo relevante à formação do aluno. Quanto ao risco de que charlatães saiam por aí desempenhando papéis para os quais não estão qualificados, ele é relativo. Se o "jurista" que comprou seu diploma na papelaria conseguir passar num concurso público para juiz ou ser contratado para trabalhar num escritório privado, é forçoso reconhecer que ele não está tão despreparado assim.

A seguir, eu criticava a posição do governo federal de estender incentivos fiscais a instituições com fins lucrativos no âmbito do ProUni (Programa Universidade para Todos). Considerava um despropósito colocar dinheiro público novo em escolas particulares quando as universidades federais enfrentam seriíssimas dificuldades financeiras. Concluía afirmando que o principal demérito dos diplomas de papelaria, ao possibilitar que cada brasileiro conseguisse mesmo um "canudo", seria revelar quão populista é a proposta do governo por trás do lema "Universidade para todos".

Algumas pessoas escreveram para contestar não a oferta de diplomas em papelarias e casas lotéricas, mas outra afirmação, a de que "na média, instituições superiores públicas apresentam um desempenho qualitativo incomensuravelmente melhor que o das particulares", juízo objetivamente mensurável que eu não julgava capaz de encerrar grandes polêmicas.

O argumento levantado pela professora Eva Stal, da Uninove, cuja carta saiu no Painel do Leitor da segunda-feira, e por Fernando Terra é absolutamente respeitável. Os dois sustentam não sem razão que comparar instituições públicas com privadas acaba gerando uma é injustiça com as particulares. Os melhores alunos, basicamente aqueles que cursaram o ensino fundamental e médio em escolas privadas, vão para a universidade pública, deixando à rede superior privada estudantes com pior formação. E, como se sabe, é difícil fazer vinho sem uvas.

Com efeito, se a questão é mostrar-se justo, o mais adequado seria aferir quanto a escola agregou de valor à formação do aluno que nela ingressou. Se a instituição apanha um completo imbecil e o torna um semi-analfabeto, ela pode ter feito mais pelo estudante do que a universidade pública que recebe os melhores jovens e os transforma às vezes em não mais do que profissionais competentes.

O problema, contudo, vai muito além da justiça. Em meu texto, eu jamais afirmei que não há lugar para universidades privadas nem para o lucro. Apenas me queixei da proposta de o Estado destinar verbas públicas educacionais para o setor privado quando existem literalmente prédios ruindo em alguns dos campi federais. Não sou eu mas a Constituição Federal quem afirma que o poder público deve investir prioritariamente em sua própria rede (art. 213).

Agradeço aos dois missivistas a oportunidade de esclarecer meus pontos de vista. No mundo como o conhecemos (sistema capitalista, livre iniciativa etc.), existe um lugar para faculdades particulares e para o lucro, o motor do empreendedorismo. Vou mais longe e afirmo que é perfeitamente possível conciliar ensino de boa qualidade com a remuneração do capital investido em instituições privadas. Não podemos, porém, confundir escolas de nível superior, com a missão de transmitir conhecimento, com universidades no sentido pleno, que façam pesquisa e estejam encarregadas não apenas da transmissão do saber, mas também de sua produção. Aqui, é preciso grande investimento público. Acrescentaria ainda que o Brasil tem o dever moral de tentar democratizar a universidade, abrindo-a quanto seja possível a grupos menos favorecidos.

Feitas as observações democráticas de praxe, passo agora à defesa do óbvio mesmo correndo o risco de ser tachado de elitista, racista, inimigo do povo etc: a universidade não é nem pode ser para todos. Não existem sociedades compostas unicamente por médicos, advogados, engenheiros, historiadores etc.

Nem todo mundo está preparado para a vida acadêmica nem o país necessita só de gente com formação superior. Ainda que pudéssemos oferecer cursos de engenharia a todos aqueles que revelem certo pendor por maquinismos, os academicamente menos dotados se tornariam, para efeitos práticos, mecânicos, consertadores, faz-tudo e não engenheiros em sentido estrito.

Parece portanto contraproducente, tanto em termos econômicos como no que diz respeito à qualidade de vida, submeter o candidato a "engenheiro" que não aprecia estudar a uma faculdade de pelo menos cinco anos de duração na qual ele teria de aprender cálculos avançados que jamais utilizará. O mais lógico seria fazer um curso profissionalizante de mecânica, no qual, ao longo de dois ou três anos --e sem sofrimento desnecessário--, ele seria devidamente capacitado para exercer sua profissão.

A democratização do ensino passa também por uma mudança da mentalidade que valoriza apenas o ensino universitário. Sem prejuízo de ampliar o número de pessoas com formação acadêmica, que ainda é relativamente baixo no Brasil, é preciso fomentar o ensino profissionalizante de qualidade e fazer as pessoas entenderem que o "doutor" não é necessariamente mais digno do que o técnico que, por sua vez, não é necessariamente melhor do que o artesão. É evidente que o advogado tende a ganhar mais do que quem venda bijouterias na praça da República em São Paulo, mas é perfeitamente possível que este, ao contrário do "doutor", esteja fazendo o que gosta e se torne mais feliz.

A verdade, que parecemos ter vergonha de admitir, é que a universidade é necessariamente elitista. Um país precisa formar grupos que constituirão sua vanguarda em todas as áreas, da administração pública à pesquisa tecnológica. E é do interesse do país que esse escol seja o melhor possível --não o mais "justo" nem o mais "socialmente representativo". Assim, uma universidade que não se funde na meritocracia está fadada ao fracasso e não contribuirá como poderia para o desenvolvimento científico, tecnológico e econômico do país.

Bandeiras como o ProUni podem ser boas para conseguir votos, mas costumam ser péssimas para fazer ciência e produzir saber.
 

* Hélio Schwartsman é editorialista da Folha. Escreve para a Folha Online às quintas.
 

Fonte: Folha Online, Pensata, 13/1/2005.


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