União Européia – 50 anos bem vividos
A Europa é uma península que se projeta da grande massa asiática, sem que exista acordo a respeito de onde começa. Escreveu um geógrafo alemão: "Chamar a isso continente é claramente um abuso de linguagem". Diante dessa dificuldade, outro alemão, o cardeal Joseph Ratzinger, hoje papa Bento XVI, propõe uma definição por parâmetros diferentes: "A Europa não é um continente nitidamente perceptível em termos geográficos. É, na verdade, um conceito cultural e histórico", escreveu em Europa, livro de 2004. Soa apropriado que o berço das idéias que moldaram o mundo moderno seja mais bem definido por um conceito fluido, o pensamento humano – e não por montanhas e oceanos, como a África. A Europa do império romano incluía as terras em torno do Mediterrâneo, que em virtude de suas ligações culturais, do comércio e do sistema político comum formavam um verdadeiro "continente", escreve Ratzinger. Foi o avanço do Islã nos séculos VII e VIII que traçou uma fronteira pelo Mediterrâneo, separando Ásia, África e Europa. Quando a Europa iniciou sua espetacular revolução criativa no século XVI, nota o historiador americano Jacques Barzun, também não se podia pensar nos limites atuais, pois os Bálcãs permaneciam sonolentamente sob o domínio dos turcos muçulmanos. A peculiar trajetória do conceito é aqui relembrada em razão dos cinqüenta anos da assinatura do Tratado de Roma, que deu origem ao que agora é a União Européia – e, mais uma vez, redefiniu o que é Europa. Graças a essa organização, o continente é sinônimo de "tolerante" e "civilizado" – e não apenas de eugenia, guerras étnicas, religiosas e ideológicas. Em 25 de março de 1957, numa cerimônia sem muitas fanfarras, seis nações aceitaram – com alguma pressão americana – fundir parte da soberania de cada uma delas numa instituição multinacional que representasse um profundo rompimento com o passado. Apenas uma década antes, esses mesmos países tinham estraçalhado uns aos outros na II Guerra Mundial. O tratado estabeleceu como objetivo prático quatro liberdades fundamentais: livre movimento de mercadorias, pessoas, serviços e capitais. A isso se daria o nome de Mercado Comum Europeu e, mais tarde, de União Européia. O rápido crescimento econômico decorrente da estabilidade criada pelo mercado comum foi uma das razões para que muitos países se entusiasmassem com a integração européia. O projeto complicou-se com a queda do Muro de Berlim, em 1989. A União Européia passou a incorporar países que pouco antes tinham escapado à Cortina de Ferro do comunismo, muitos deles com padrão de vida similar ao da Europa Ocidental nos anos 50. Hoje são 27 países, incluindo três antigas repúblicas soviéticas. Por outro lado, nessa fase, o panorama tornou-se sombrio. O crescimento econômico é lento, o desemprego, alto (veja abaixo). Muitos europeus "antigos" se opõem à expansão para o Leste, a maioria torce o nariz à candidatura da Turquia e praticamente ninguém está imune à inquietação causada pelo aumento da imigração muçulmana. Qualquer pessoa ao completar 50 anos naturalmente reserva alguns momentos para fazer um balanço da própria vida. A União Européia passa igualmente por uma crise da meia-idade. Ela é perceptível sobretudo num sentimento difuso de desconforto entre seu meio bilhão de habitantes. Mesmo os governantes estão confusos sobre o que querem fazer com a União Européia. Uma pesquisa feita pelo jornal inglês Financial Times na semana passada na Inglaterra, na Espanha, na França, na Alemanha e na Itália mostrou que 44% dos entrevistados acreditam que a vida em seus países piorou desde a formação do bloco. Ao ler esses resultados, o cineasta polonês Krzysztof Zanussi, citado pelo colunista inglês Timothy Garton Ash, interpretou o sentimento negativo dos europeus da seguinte forma: "Se a Europa fosse uma pessoa, precisaria ser encaminhada a um psiquiatra". Sim, para a terapia, pois a realidade européia é muito melhor que sua percepção popular. Abaixo estão alinhadas algumas facilidades que tornam mais agradável a vida dos cidadãos da União Européia e são invejadas em outros países:
Os cinqüenta anos antes do Tratado de Roma incluem duas guerras mundiais e uma depressão brutal. Os cinqüenta seguintes trouxeram paz e prosperidade numa escala inimaginável na história européia. É possível que a presença da Otan tenha ajudado, mas a Europa atravessou tantos horrores no século XX que os líderes do pós-guerra precisaram de pouco incentivo para entender o valor da cooperação. Nesse cenário, mais uma vez é preciso separar a Europa em partes. Não houve paz do outro lado da cortina de ferro. Tanques soviéticos abriram fogo na Alemanha em 1953, na Hungria em 1956, na Checoslováquia em 1968, e o estado de guerra foi declarado na Polônia em 1981. Nos anos 90, os americanos foram chamados duas vezes para colocar ordem nos Bálcãs. Os europeus gostariam que a Europa voltasse a ser um centro de poder mundial. A moeda única deu a impressão de que surgia uma superpotência. Aí começaram as matanças decorrentes da dissolução da Iugoslávia, e o eleitorado europeu demonstrou não ter estômago para os deveres bélicos de uma superpotência. Em 2005, incertos em relação ao futuro, os eleitores franceses e holandeses rejeitaram o projeto de uma Constituição européia. Sem a união política, o sonho de superpotência foi arquivado. O cenário descrito acima não é, necessariamente, o de um fracasso. "Talvez as velhas medidas de poder e influência não sejam mais adequadas ao nosso tempo", escreveu a revista Time. "Os horrores do Iraque são testemunha dos limites da força bruta." A Europa é única por sua criatividade. Durante meio milênio, a partir do século XVI, aquela ponta da Ásia que avança para oeste serviu de berço para um surto revolucionário nas artes, nas ciências, na teologia, na filosofia, no pensamento social e na tecnologia. Os europeus, relativamente pequenos em número, saíram com seus navios e conquistaram o restante do mundo. Esse movimento de alcance universal forneceu a raiz e o molde sobre os quais se construiu o mundo moderno. Por que todo esse esplendor criativo ocorreu na Europa é uma pergunta para a qual os historiadores encontram respostas surpreendentes. O historiador David Landes, da Universidade Harvard e autor de A Riqueza e a Pobreza das Nações, acredita que a Europa foi favorecida pela fragmentação de seu território em numerosos estados rivais. Nessa disputa, inovações e talentos eram recursos valiosos. O conhecimento tornou-se uma fonte de prestígio e riqueza. Mal recebido ou perseguido em um reino, um inventor, um cientista, um pintor, um teólogo podia simplesmente mudar-se para um estado onde seu talento fosse mais apreciado. Na época das navegações, os chineses tinham navios muito melhores que os europeus, mas eram arrogantes demais para contornar a África, pois nada havia a aprender com os bárbaros ocidentais. Os muçulmanos chegaram a rejeitar o uso das técnicas de impressão por temer erros tipográficos que pudessem alterar o Corão. Não é exagero supor que a falta de impressoras é uma das causas da fossilização islâmica. No Ocidente, a Reforma protestante – que marca o início da era moderna – foi possível porque as idéias de Lutero eram impressas e circulavam rapidamente. Ela incentivou o uso das línguas vernaculares e o senso de nacionalismo, o que acabaria levando ao estado-nação (outra invenção européia). Também mudou a atitude em relação ao trabalho e aos sentimentos humanos. Por fim, ao longo do tempo, obrigou a Igreja Católica a também se modernizar e se adaptar. De várias maneiras se vivem tempos igualmente revolucionários e criativos. Durante aquele meio milênio de maravilhas, a Europa criou o coração, a alma e a mente modernos. Será fantasia imaginar que o modelo da União Européia poderia ser a nova contribuição da Europa para um mundo melhor?
Fonte: Rev. Veja, Jaime Klintowitz, ed. n.
2001, 21/3/2007.
A União Européia celebra os cinqüenta anos de sua criação, mas a festa
não causa
O espírito empreendedor nato do europeu está asfixiado por um formidável arsenal normativo. Os 20.000 euroburocratas pretendem regulamentar detalhes como a curvatura dos pepinos e o diâmetro dos preservativos. Os governantes de países fundadores da União Européia – Alemanha, França, Bélgica e Itália – hesitam estabelecer a justa medida entre o estado de bem-estar social e o crescimento econômico vigoroso e com mais empregos. A Europa, berço da civilização ocidental, sempre empunhou a espada, a pena e a cruz com a força de sua economia. Durante décadas, a maioria dos países da União Européia sustentou um modelo socioeconômico generoso, menos competitivo se comparado ao dinamismo dos Estados Unidos. A fadiga tornou-se notável. Pelo sétimo ano consecutivo, os americanos, trabalhando mais, geraram riqueza superior e criaram o dobro de empregos. A fortaleza comercial européia balança a cada desembarque de um contêiner com produtos bons e baratos, feitos na China, para onde migra parte de suas indústrias. Berlim, cidade-símbolo da vitória da paz, união e prosperidade contra a violência, divisão e ódio do nazismo e do comunismo, foi escolhida como palco para comemorar o cinqüentenário. Sobram razões para celebrar. No entanto, a paz é considerada aquisição perene. Não há euforia nas ruas. Líderes dos 27 países, reunidos na capital alemã unificada, querem revigorar, proclamando mais uma esmerada declaração, o ânimo europeu, abalado desde o solavanco de 2005. Nas palavras de Jacques Delors, ex-presidente da Comissão Européia: "Em estado de coma leve". Embora dezoito países tenham ratificado a Constituição Européia e quatro outros estivessem prontos a fazê-lo, a França e a Holanda vetaram-na por meio de referendos populares, engavetando o calhamaço de 300 páginas. As instituições européias, criadas para funcionar com seis países, nunca foram regidas por Constituição. Elas continuaram funcionando sem nenhuma. Os europeus não estão interessados em questões institucionais, mas em qualidade de vida. Mesmo votando contra, 71% dos franceses consideram-se europeus. Ninguém duvida. A questão é outra. A cada chegada de um novo membro à União Européia, a influência nacional diminui e o processo decisório fica mais complexo. A razão do "não" foi o medo de competição, mais conhecido como a "síndrome do encanador polonês". A livre circulação de serviços beneficia os trabalhadores da Europa Central, cuja mão-de-obra é mais barata. Ela permite morar e até se aposentar em qualquer lugar da União Européia. Os eleitores viram o texto constitucional como uma cilada contra as leis nacionais protetoras. Há quem faça a seguinte aposta: se o desemprego não fosse tão alto nos países do veto, o "sim" teria ganho. Efetivamente, a adesão de uma dezena de países do ex-bloco soviético, agora com economias de mercado flexíveis, aumentou a competição européia e contribuiu para a retomada do crescimento. Nada comparado aos tempos do Tratado de Roma. Naquela época, a Alemanha Ocidental estava em pleno Wirtschaftswunder – o milagre econômico do crescimento rápido, baixo desemprego e aumento do poder aquisitivo. O entusiasmo popular era contagiante. O primeiro-ministro de Luxemburgo, Jean-Claude Juncker, resumiu o impasse europeu atual: "Nós todos sabemos o que se deve fazer, só não sabemos como nos reeleger depois de feito". Há um caloroso debate sobre se a Turquia, muçulmana, deve ser aceita no clube europeu. Bento XVI considera a Europa o espaço da cristandade. Ela não deixou de ser quando a harmonia entre católicos, judeus e muçulmanos fez o esplendor do que se chama hoje Espanha. A Inquisição, além de queimar pessoas e mergulhar no obscurantismo, drenou recursos. A Turquia não preenche, completamente, os critérios de democracia, economia de mercado e respeito aos direitos humanos exigidos pela União Européia. Até pouco tempo atrás, Portugal, Espanha e Grécia eram ditaduras. A adesão à União Européia ajuda a colocar as instituições dos países em compasso com a modernidade. A Turquia é européia para pertencer à Otan, a aliança militar do Ocidente. A essência da questão é o PIB per capita turco, de 2 800 euros, enquanto o da Romênia, o país mais pobre da UE, já está em 3 600 euros. Os pilares da União Européia são a força e o equilíbrio econômico dos países. A Itália corre o risco de deixar a zona do euro se não controlar o déficit público colossal. As fronteiras da União Européia poderão ir do Saara à Sibéria. A economia decidirá.
Fonte: Rev. Veja, Antonio Ribeiro (de Paris), ed. n. 2001, 21/3/2007.
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