Entrevista Demétrio
Magnoli
Uma vitória da razão
Para
o sociólogo, as últimas eleições mostraram que os brasileiros não se deixam
mais levar pela conversa de que toda esquerda é boa e toda direita é má
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"O PT no poder revelou a esquerda que faz o mensalão, persegue o caseiro
e confunde estado com governo e partido"
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O
paulistano Demétrio Magnoli, de 49 anos, faz parte de uma categoria de
intelectuais – rara no Brasil – que se notabiliza tanto pelo conhecimento
acadêmico, como pela habilidade para escrever sobre temas complexos de
maneira clara e objetiva. Sociólogo e doutor em geografia humana, Magnoli
integra o Grupo de Análises da Conjuntura Internacional, da Universidade de
São Paulo, e é autor de mais de uma dezena de livros didáticos. Em sua
coluna nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo, ele expõe análises
aprofundadas de política mundial e críticas incisivas às manifestações de
pensamento único na sociedade e no governo brasileiros. Magnoli concedeu,
descalço, a seguinte entrevista a VEJA, em seu apartamento, em São
Paulo.
Os
conceitos de esquerda e direita estão ultrapassados?
Não, desde que sejam compreendidos no marco da democracia. No sistema
democrático, há uma tensão permanente entre liberdade e igualdade. A
primeira está associada à direita democrática, para a qual existe um
conjunto indissociável de liberdades: a de expressão e organização, a
econômica e a de pluralidade de opiniões. Já o conceito de igualdade está
associado à esquerda democrática, que defende a necessidade de restringir um
pouco a liberdade econômica para que as desigualdades não cresçam muito. As
democracias maduras oscilam entre a direita e a esquerda, em busca ora de
mais liberdade, ora de mais igualdade. Essa é a história das eleições na
Europa e nos Estados Unidos no último meio século. Acredito que a história
do Brasil também será essa. Trata-se de algo muito diferente dos conceitos
de esquerda e direita não-democráticas, estes, sim, ultrapassados.
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"O filósofo francês Raymond Aron disse que o marxismo é o ópio dos
intelectuais. Isso porque lhes oferece a ilusão de que são donos de um
saber maior: o do fim da história. É natural que uma ideologia que
afirme isso os seduza" |
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Em certos círculos, dizer que algo é "de direita" serve para
desqualificar desde filmes até valores morais. Qual é a explicação para esse
uso do termo "direita"?
A palavra "direita" esteve associada no século XX ao fascismo e ao
nazismo. Tais regimes foram condenados de maneira absoluta pela população
mundial. Em países da América Latina, em particular, a direita foi ligada a
regimes militares. Por isso, no Brasil, a expressão "direita" ainda é usada,
embora cada vez com menor freqüência, como sinônimo de tudo o que deve ser
rejeitado. Já o termo "esquerda" costuma ser relacionado a uma idéia de
transformação humanista do mundo, imaginada a partir da Revolução Francesa e
das lutas sociais do século XIX. Muita gente esquece que elas, em sua
origem, deceparam milhares de cabeças por meio da guilhotina. Assim como
esquece a brutalidade do stalinismo e do maoísmo, no século XX.
O
senhor acredita que o preconceito contra a direita tende a diminuir?
Sim, e isso acontece quando um país experimenta a esquerda no poder, como é
o caso do Brasil, hoje. Nos países de democracia madura, o argumento "isso é
de direita" não serve para encerrar uma discussão. Não gosto do governo
Lula, mas ele está sendo bom para o nosso amadurecimento político. O PT no
poder revelou a esquerda que faz o mensalão, persegue o caseiro, tenta
controlar os meios estatais para os seus próprios fins e confunde estado com
governo e partido. Com o tempo, os brasileiros vão se convencer de que os
partidos de direita e de esquerda devem existir dentro de um mesmo espectro
político, desde que aceitem a democracia. Essa mudança de percepção pode ser
verificada nas últimas eleições municipais. A classe média de São Paulo, que
no passado votou em massa em candidatos do PT, agora elegeu Gilberto Kassab
e não o vê como um candidato da velha direita – apesar de pertencer ao DEM,
o antigo PFL. Os eleitores não compraram a idéia de que as eleições eram a
luta do bem contra o mal, como a campanha do PT tentou vender. O PT
imbuiu-se, nessas eleições, da missão de eliminar o DEM. A idéia de eliminar
um partido, de centro-direita ou não, é antidemocrática. O que o discurso do
PT revela é o desejo de ser partido único. Resultado: a classe média que
acreditou no PT agora desconfia de sua natureza democrática.
Pode-se dizer que a ideologia serviu de pretexto para a corrupção do PT?
A corrupção é um fenômeno muito antigo na história do Brasil e completamente
suprapartidário. O que espantou muita gente foi o estilo PT de corromper – e
que, claro, tem a ver com a sua visão de mundo. O partido apresentou um modo
centralizado de praticar a corrupção. Ao contrário da prática tradicional,
feita em nome de interesses localizados, o PT deliberou e organizou a
corrupção a partir da sua cúpula. Isso provocou uma ruptura muito grande
entre o partido e boa parte do seu eleitorado tradicional, principalmente
nas grandes cidades.
A
vontade de ser partido único não é um anacronismo?
A verdade é que a queda do Muro de Berlim fez muito mal ao PT. O fracasso da
União Soviética e de seus satélites no Leste Europeu tirou de cena o foco da
crítica petista, que em sua origem repudiava o chamado socialismo real. A
partir daí, o partido tomou um rumo regressivo e foi dominado por três
grupos. O primeiro é a corrente de origem castrista, representada, entre
outros, por José Dirceu. O segundo é o dos sindicalistas, notadamente os que
controlam a CUT. O terceiro é formado pelas correntes católicas ligadas à
Teologia da Libertação, cujo principal representante é Frei Betto, que foi
um alto assessor de Lula. Com isso, o PT adotou uma ideologia retrógrada do
estado como salvador da sociedade. Deixou de fazer qualquer crítica ao
socialismo real – a não ser em dias de festa, em documentos para inglês ver
– e passou a falar como um velho partido comunista de outros tempos. O PT se
tornou uma agremiação de esquerda estatizante, para a qual a história é uma
ferrovia cujo destino final é a redenção da humanidade – e que vê a si
própria como a locomotiva do comboio. Esse é o conceito de história que
deveria ter desaparecido depois de 1989, com a queda do Muro de Berlim. Ao
encampá-lo, o PT se tornou uma espécie de relíquia.
Por que a
universidade brasileira ainda é um centro irradiador do marxismo?
Isso é verdade apenas em parte. Há bastante crítica à esquerda tradicional e
stalinista nas universidades. Mas, sem dúvida, é fato que existe um apoio
grande a essa ideologia no meio acadêmico. O filósofo francês Raymond Aron
(1905-1983) disse que o marxismo é o ópio dos intelectuais. Isso porque o
marxismo lhes oferece a ilusão de que são donos de um saber maior: o do fim
da história. Como conseqüência, os intelectuais teriam a função de dirigir a
sociedade. É natural que uma ideologia assim os seduza. Afinal de contas, dá
a eles uma perspectiva de poder, influência e prestígio que o simples
compromisso com a democracia não permite.
O
que explica a ascensão dessa esquerda obsoleta em países da América Latina?
A falta do espelho do socialismo real na União Soviética e no Leste Europeu
faz com que a esquerda latino-americana se entusiasme com governantes como
Hugo Chávez. A esquerda latino-americana ainda imagina que deve construir o
mundo de novo. Chávez, da Venezuela, Evo Morales, da Bolívia, Rafael Correa,
do Equador, e Lula são muito diferentes entre si. Mas o que há em comum
entre os partidos e os movimentos que apóiam esses governantes é a noção do
estado como instrumento de salvação. Essa é uma idéia fundamentalmente
antidemocrática. Não há nada parecido com isso fora da América Latina.
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"A hostilidade à liberdade de imprensa é tão ampla no PT que apareceu
em uma resolução oficial da direção nacional do partido, durante o
escândalo do mensalão. O documento acusava os veículos de comunicação
de golpismo" |
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Quem são os principais entusiastas de Chávez no Brasil?
Não é verdade que o PT como um todo siga Chávez, mas existem no seu
interior correntes que o fazem. O chavismo exerce forte sedução sobre a sua
Secretaria de Relações Internacionais. Acho triste que a direção nacional do
partido tenha chegado ao ponto de soltar uma nota oficial em apoio ao
fechamento, por motivos políticos, do canal venezuelano RCTV. Essa nota não
foi contestada pelos parlamentares do PT de quem se esperaria uma palavra em
defesa da democracia, como Eduardo Suplicy e José Eduardo Cardozo.
Como
o senhor avalia a política externa brasileira?
A política externa brasileira tem duas cabeças. A oficial, que segue a linha
histórica do Itamaraty, e a extra-oficial, que é a política externa do PT,
representada por Marco Aurélio Garcia, assessor de Lula, que boicota a
diplomacia tradicional. Garcia acha que a integração latino-americana deve
ser feita em bases nacionalistas e antiamericanas, quase chavistas. Ele
recusa que a América do Sul deva participar da globalização – o que
significa recusar a realidade. Por isso, o Brasil deixou de falar duro com
Evo Morales diante do aparatoso cerco militar às instalações da Petrobras,
das intimidações contra agricultores brasileiros na Bolívia e da ruptura
unilateral de contratos que estabeleciam o valor das refinarias. Logo, logo
vamos ter uma crise no Paraguai. Temo que o governo Lula faça pouco para
defender os agricultores brasileiros naquele país.
O
ministro da Justiça, Tarso Genro, o processou em 2006 e depois retirou a
acusação. O que ocorreu?
Ele abriu um processo em razão de um artigo que escrevi, intitulado
"Ministério da classificação racial". No ano anterior, Tarso Genro, o
ministro itinerante do governo Lula, ocupava a Pasta da Educação e
determinou que as escolas brasileiras passassem a incluir o item "raça/cor"
nas fichas de matrícula dos alunos. Tarso Genro abriu um processo penal
contra mim – e por meio da Advocacia-Geral da União – porque critiquei essa
medida. Quando foi indicado para o Ministério da Justiça, ele retirou o
processo. Imagino que considerou constrangedora a possibilidade de um
ministro da Justiça perder um processo. Sabe-se que Tarso Genro, no Rio
Grande do Sul, abria processos em grande quantidade contra jornalistas, para
intimidá-los.
Essa
estratégia de intimidação, aliás, passou a ser muito usada por setores do
governo.
Existem divergências dentro do governo sobre liberdade de imprensa. Alguns
membros do governo e do PT acham que se trata de um valor fundamental.
Outros, e são muitos, acreditam que o país ideal é Cuba, onde há um partido
único e um jornal único. A hostilidade à liberdade de imprensa é tão ampla
no PT que apareceu em uma resolução oficial da direção nacional do partido,
durante o escândalo do mensalão. O documento acusava os veículos de
comunicação de golpismo.
No
início da década de 90, os pais dos alunos de um colégio tentaram impedir
que um professor adotasse um livro seu, sob o argumento de que o senhor era
comunista. Sua visão de mundo mudou ou os pais estavam errados?
Minha visão de mundo não é a mesma de vinte anos atrás nem, menos ainda, a
de trinta anos atrás. Na faculdade, nos tempos da ditadura militar, eu
participei de uma organização trotskista, a Liberdade e Luta (Libelu), cujo
verdadeiro nome era Organização Socialista Internacionalista. Quando escrevi
meus primeiros livros, no entanto, já havia rompido com a organização e não
me via mais como alguém de esquerda ou comunista. Meu primeiro livro
didático, de 1989, era detestado pela esquerda. Talvez os pais desse colégio
estivessem um pouco assustados com fantasmas do passado.
Como
é a relação com os seus amigos que ainda nutrem admiração por figuras como
Che Guevara e Hugo Chávez?
Eu não tenho amigos que gostam de Hugo Chávez, Che Guevara ou Fidel Castro.
Simplesmente porque nunca tive amigos stalinistas. Eu tenho amigos que os
trotskistas consideram pertencentes à direita feroz. Quando convido todos
para uma mesma festa, começa um debate que, obviamente, nunca vai terminar.
O debate político não deve impedir as pessoas de se tratar decentemente, mas
a atividade intelectual pressupõe o exercício da crítica. Intelectuais que
elogiam governos têm algum problema. Provavelmente querem um emprego.
Fonte: Rev. Veja, Diogo Schelp, ed. 2085,
5/11/2008.
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