Traidores anônimos
Não tivemos qualquer catástrofe natural que nos forçasse ao retrocesso que tivemos. Ao contrário, Índia e China, com terremotos, inundações e vendavais, têm tragédias naturais maiores do que as secas brasileiras. Politicamente, ambos são países mais conturbados, divididos internamente, com pobreza ainda mais gritante. Alguém traiu o Brasil, ao tomar as decisões que nos fizeram estagnar em matéria de ciência e tecnologia. É difícil, e talvez inconveniente, apontar os nomes dos responsáveis entre os muitos dirigentes dos governos que tivemos. Mas é possível e conveniente apontar a traição decorrente de uma mentalidade e de um estilo de fazer política que caracterizam os eleitos e os eleitores. Fomos traídos por nossa preferência pelo consumo no presente, em vez da poupança e do investimento voltados para o futuro. Toda a economia brasileira é concentrada em resultados imediatos, sem estratégia para o longo prazo. Queremos consumir o máximo e o mais rapidamente possível, sem preocupação com os limites que esse consumo voraz impõe. Driblamos esses limites com dívidas externa e interna e com inflação. Não aceitamos crescer primeiro na infra-estrutura, antes de aumentar o consumo, nem crescermos sem endividamento ou emissão de moeda. Fomos traídos pelo nosso gosto pelos caminhos mais fáceis, que nos levam a adotar as técnicas estrangeiras de que precisamos, em vez de desenvolvê-las internamente. Enquanto outros países, como Coréia, China e Índia, inventaram seus próprios produtos, ainda que com base no conhecimento externo, nós preferimos pura e simplesmente comprar as técnicas, sem nem sequer aprender a copiá-las. Fomos traídos pela primazia do investimento universitário nas áreas das ciências sociais e humanas, no lugar das ciências exatas. Por décadas, enquanto os demais países enviavam estudantes em grandes quantidades ao exterior para aprenderem técnicas e ciências, nós enviamos poucos para estudar as áreas humanas, por vezes gastando milhões para o estudo da literatura brasileira em universidades estrangeiras, com orientadores que nem sequer liam Português. Fomos traídos pela adoção de um desenvolvimento industrial baseado no protecionismo, que evitou a concorrência que teria feito o Brasil desenvolver sua própria capacidade científica e tecnológica. O melhor exemplo de traição foi a criação de reserva de mercado para os produtores de máquinas, em lugar do investimento na formação dos criadores de sistemas. Protegemos a cópia dos hardwares, e não aprendemos a desenvolver os softwares. Mas, sobretudo, nossa maior traição foi não ter feito a mesma revolução educacional que fizeram países com menos condições do que nós — tais como Irlanda, Coréia, Índia, China, para não falar de Finlândia e outros — e que teria criado a base da qual sairiam nossos cientistas. Aqueles países investiram na criação de inteligência, e agora começam a colher os resultados. Nós nos endividamos para produzir bens materiais, na maior parte simples bens primários, as commodities. Houve traição por parte dos dirigentes da política, mas houve também conivência com a mentalidade que nos caracteriza. Agora, porém, não podemos perdoar os dirigentes que não entenderem a realidade. Não podemos permitir que, para salvar bancos, o governo destrua a escola, cortando recursos já previstos, já negociados. Se isso acontecer, perderemos a pequena chance que temos. O presidente Lula não deve ficar na História como salvador de bancos e destruidor de escolas. A única vantagem, neste caso, é que os traidores deixarão de ser anônimos.
* Cristovam Buarque é senador e ex-ministro da Educação.
Fonte: O Globo, 25/10/08.
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