Internacional
Terremoto Obama

 

Por que o jovem senador democrata personifica a esperança de mudanças pós-Bush

 

Scout Tufankjia/Polaris/Others Images
Obama: o senador de Illinois personifica os desejos de mudança dos americanos

 

Se computada apenas a quantidade de votos que cada candidato recebeu, a apuração das duas primeiras primárias das eleições presidenciais americanas resulta em empate técnico entre os principais pré-candidatos democratas. Barack Obama venceu em Iowa, com Hillary Clinton em terceiro lugar. Por sua vez, Hillary venceu em New Hampshire, com Obama na segunda posição. O que emerge dessa disputa de perspectivas ainda nebulosas, que ainda precisa ser repetida em 48 estados, é uma novidade como raras vezes se vê na política em qualquer país: a candidatura de Obama. O presidente George W. Bush jogou pimenta nos olhos do mundo com sua decisão unilateral de fazer a guerra no Oriente Médio. Agora o mundo está de olho nos Estados Unidos no momento em que o país escolhe o sucessor de Bush. Seja quem for, apenas por não ser Bush, o próximo presidente já será visto com mais simpatia. Se for o jovem senador Obama o escolhido, os Estados Unidos terão uma janela ainda mais ampla para arejar o ambiente intoxicado deixado por Bush e seus senhores da guerra. Mesmo que perca a nomeação do Partido Democrata para competir com o indicado do Partido Republicano, Barack terá reescrito os termos da campanha de 2008. Ele é um político raro, daqueles que o tempo só melhora, dando-lhe justamente o que agora lhe falta, experiência e gravidade. 

"Quando se examina seu conteúdo, a verdade é que as mensagens da esquerda e as da direita são as mesmas, apenas com o sinal trocado", escreveu Obama em seu livro A Audácia da Esperança (leia trechos). Nada mais 2008 do que esse discurso. Nada mais contrastante com o discurso 1968 de Hillary Clinton, ainda impregnado de incenso, feminismo, vitimização das minorias e fobia do mundo empresarial. Barack Obama superou as fronteiras raciais e as do confronto anos 70 homem-mulher. Ele é um negro que não concorre por ser negro. É um democrata que não teme ir à guerra, "que pode ao mesmo tempo ser justa e ser um inferno". Seu impacto pode ser medido nas urnas das duas primeiras disputas e pelo entusiasmo que faz crescer seu contingente de partidários muito além das hostes do Partido Democrata. Isso não quer dizer que ele vai inevitavelmente eleger-se presidente dos Estados Unidos. Outros candidatos inspiradores do Partido Democrata acabaram esmagados pela máquina partidária na reta final da campanha. O que seu sucesso parcial revela é a existência de uma nova realidade social separada por um abismo da política tradicional. Talvez o toque de Obama resida na compreensão de que as bases do eleitorado americano estão sendo sacudidas por um terremoto que os sismógrafos da política tradicional não registram. Os eleitores estão fartos da politicagem e do sectarismo de George W. Bush e Clinton (ambos, Hillary e seu marido, Bill). Não suportam mais que os Estados Unidos sejam odiados no exterior e estão convencidos de que, para onde se olhe, o país não está sendo conduzido no rumo correto.

Obama e o que ele significa exigem alguma metáfora para ser explicados. Não faltam comparações com John Kennedy, Martin Luther King e até Ronald Reagan. A primeira analogia é quase inevitável. A cada quatro anos, os democratas tentam transformar alguém em um novo Kennedy. Bill Clinton foi um deles. Talvez o fato mais notável nessas comparações esteja em outra dimensão, o tempo. Obama tinha 2 anos quando Kennedy foi assassinado, em 1963 (Hillary já estava no colegial). Isso faz dele o primeiro candidato presidencial cuja trajetória não foi diretamente ordenada pela morte do presidente. Talvez, melhor que buscar as semelhanças entre os dois, seja recordar as palavras do discurso em que Kennedy aceitou a nomeação como candidato do Partido Democrata à Presidência dos Estados Unidos, em 15 de julho de 1960. Nele, o candidato observava que a qualidade da alternância de poder não está em identificar apenas um presidente capaz de seguir os passos de seu antecessor. Muitas vezes a virtude está exatamente na abertura da possibilidade de vir alguém e fazer tudo diferente. Disse Kennedy: "Depois de oito anos de ininterrupta sonolência, a nação precisa de uma liderança democrata forte e criativa na Casa Branca". Depois de oito anos de Bush, de quem os Estados Unidos precisam?

 

Reuters
Hillary festeja a vitória nas primárias de New Hampshire: uma política tradicional.

Barack Obama rejeita comparações com o presidente dos anos 60. Seu argumento é que é hora de ambos os partidos esquecerem os anos 60 e reconhecerem que um novo século exige um tipo diferente de debate. A nova realidade a que se refere vem sendo construída nos últimos trinta anos por uma geração que não conviveu com a segregação racial, vê a Guerra Fria como história antiga, dispõe de informações on-line e está à vontade para conhecer mais sobre os candidatos por meio do YouTube. Quase 20% dos eleitores registrados têm entre 18 e 29 anos. Entre os eleitores democratas com menos de 24 anos, Obama tem 60% dos votos. "Com a notória exceção da eleição de Bush, em 2004, os americanos historicamente rejeitam os extremos ideológicos, o que é bom para Obama e seu discurso conciliador", disse a VEJA John Zogby, diretor da empresa de pesquisas de opinião Zogby International, em Utica, no estado de Nova York.

É natural que Obama encarne a figura transformadora que os novos tempos exigem. Não apenas por suas idéias, mas também pela biografia. Senador em primeiro mandato, ele é um recém-chegado a Washington. Seus detratores dizem que isso significa inexperiência. Seus partidários dizem que é bom, pois não teve tempo de incorporar os piores vícios da política. Um simples olhar é suficiente para identificar duas características relevantes. Primeira, aos 46 anos, ele transmite a imagem de juventude e dinamismo. Sua principal oponente está com 60 anos. Segunda, ele é negro. Num país obcecado por raça, isso não significa de forma alguma uma desvantagem. O fato de ter se saído muito bem nas primárias de Iowa e New Hampshire, estados com apenas 2% de eleitores negros, mostra que, também nesse aspecto, os Estados Unidos são um país que John Kennedy não reconheceria.

O candidato nega-se a usar a cor da pele como ímã para atrair eleitores. Quando fala em desigualdade, enfatiza a necessidade de reconciliação racial e não deixa de incluir referências aos direitos das mulheres e dos

 

Mike Segar/Reuters
John McCain, em New Hampshire: republicanos sofrem com o legado de Bush.

trabalhadores. Ele recusa o papel de candidato dos negros e aquilo que chama de "vitimização" racial. Em artigo na revista Time a respeito da questão racial nestas eleições, o cientista político Shelby Steele, do Hoover Institution, que como Obama é filho de um casal misto, divide os ativistas negros em dois grupos principais. No primeiro estão aqueles que chama de "barganhadores". Estes fizeram uma espécie de pacto com os brancos americanos: comprometem-se a não esfregar na cara deles a história de racismo do passado se os brancos não usarem a cor contra eles. É um arranjo excelente na era do politicamente correto e permite que a vida siga em frente em termos mais amenos. Ele cita a apresentadora Oprah Winfrey, partidária fervorosa de Obama, como representante dessa tendência. O outro grupo, mais tradicional, é o dos "desafiadores". Não dão aos brancos o benefício da dúvida. Todos são racistas até prova em contrário. Essa prova precisa ser fornecida em forma de favorecimento aos negros em todo tipo de instituição. Um notório representante é o pastor Jesse Jackson. Obama, diz Steele, está definitivamente entre os "barganhadores". Hillary, por sua vez, é uma política branca que se identifica inteiramente com os "desafiadores".

Há outro modo, bem distante da cor, de qualificar a identidade de Obama. Ele é um cidadão globalizado: filho de um africano, neto de muçulmanos, passou parte da infância na Indonésia, foi criado pela família de sua mãe, brancos do Meio-Oeste (isso significa, no folclore local, ser um americano da gema). Tem uma irmã meio indonésia, parentes com ascendência chinesa e, por parte do pai, uma enorme parentela vivendo na África. Só se pode imaginar o impacto positivo que um presidente com tal currículo teria sobre a imagem internacional dos Estados Unidos. Barack Hussein Obama nasceu em 1961 no Havaí, onde seu pai, um estudante queniano, conheceu sua mãe. Ele abandonou a família quando o filho tinha 2 anos. Dos 6 aos 10 anos, o pequeno Obama viveu com a mãe na Indonésia, onde ela se casou com um muçulmano. De volta aos Estados Unidos, ele se formou em Harvard e trabalhou na assistência a grupos comunitários de Chicago. Em seguida, tornou-se professor de direito constitucional. Obama estreou na política como senador estadual em Illinois, há onze anos. Fez duas viagens ao Quênia, em 1987 e 1992, para conhecer os parentes. Sua avó Sarah Obama, de 83 anos, ainda vive na mesma fazendola onde seu pai nasceu, cresceu e está enterrado. 

Os dotes de orador com voz de barítono, o jeito calmo e a habilidade de explicar temas enfadonhos com simplicidade são a mais poderosa ferramenta de Obama para angariar votos. Nos discursos sempre empolgantes, promete mudança e conciliação. A candidatura de Hillary está longe de ter sido esmagada pelo brilho de seu adversário. Ela tem a campanha mais rica e usufrui o voto das mulheres – sobretudo depois de derramar publicamente uma solitária lágrima depois da derrota em Iowa. Com a altivez de quem está há sete anos no Senado e passou oito como primeira-dama na Casa Branca, ela não perde uma oportunidade de lembrar a falta de experiência política do adversário. De fato, de acordo com uma pesquisa, um em cada cinco americanos não tem idéia de quem seja Obama. Isso não é ruim para ele. "O principal trunfo de Obama é que não há muitos registros da sua vida pública, o que dá aos seus adversários poucos argumentos para críticas", disse a VEJA o cientista político americano Brian Darling, da Heritage Foundation, em Washington. Já Hillary carrega um currículo pesado, que inclui a humilhação de ser traída pelo marido na Casa Branca. "Ela gostaria de ser associada, hoje, apenas às qualidades boas de seu marido como presidente, mas está irremediavelmente ligada aos escândalos do passado", diz Zogby, do instituto de pesquisa Utica. 

Entre os republicanos, a disputa pela candidatura a presidente foi pulverizada em quatro pré-candidatos fortes, todos fazendo malabarismos para se distanciar dos fracassos de seu colega de partido, o presidente George W. Bush. Quem mais consegue se destacar desse legado é John McCain, o vitorioso nas primárias de New Hampshire. Seus adversários com maiores chances para a indicação do partido são Mike Huckabee, um pastor evangélico que venceu os cáucus de Iowa, e o mórmon Mitt Romney, que ficou em segundo lugar nas últimas duas disputas. O que, no fim, vai decidir a eleição ainda é mistério. A guerra no Iraque? De modo geral, os democratas querem retirar as tropas do Oriente Médio. Os republicanos, ao contrário, preferem aumentar os efetivos e vencer no campo de batalha. Apesar de Obama ter se oposto à invasão desde o primeiro momento e alimentar a impressão de que é um candidato pacifista, a realidade está longe disso. Mesmo numa eventual retirada, ele manteria no Iraque uma força militar poderosa o suficiente para enfrentar o terrorismo no país. Sua posição em relação ao Paquistão também não é das mais passivas. "Se tivermos dados de inteligência confiáveis sobre alvos terroristas valiosos e o presidente Musharraf não quiser agir, nós o faremos", disse Obama. No momento, os americanos estão preocupados com a perspectiva de o país entrar em uma recessão. O preço do barril do petróleo em torno dos 100 dólares ameaça desestabilizar a economia. Um relatório do banco de investimentos Goldman Sachs, publicado na semana passada, prevê uma retração no crescimento econômico entre abril e setembro. O desemprego subiu de 4,4%, em março, para 5% atualmente. A classe média vê sua renda diminuir e teme pelo futuro dos filhos. O tema começa a dominar o discurso dos candidatos. Talvez a eleição acabe sendo decidida pelo único assunto que, como dizia o candidato Bill Clinton nos anos 90, realmente interessa: "a economia, idiota".
 

Fonte: Rev. Veja, Duda Teixeira, ed. 2043, 16/1/2008. Com reportagem de Thomaz Favaro.

 

"Eu me esforço em ouvir"
 

O senador Barack Obama – notou um resenhista americano – é um raro político que realmente escreve os próprios livros. Publicado dois anos atrás, A Audácia da Esperança – Reflexões sobre a Reconquista do Sonho Americano é uma espécie de documento político, no qual Obama fala de sua trajetória pessoal e resume sua maneira de pensar. A seguir, trechos da obra

 

Fotos Polaris
Obama aos 2 anos com a mãe (à esq.). No centro, o pai, e Obama com a avó, no Quênia, na adolescência: em busca das raízes.

 


Auto-avaliação 

• "Diante de duas ou de cinqüenta pessoas, seja a atitude delas comigo amável, indiferente ou hostil, sempre me esforço o máximo para manter a boca fechada e ouvir o que elas têm a dizer." 

• "Eu rejeito a política baseada apenas na identidade racial, na identidade homem-mulher ou na orientação sexual. Eu rejeito a política baseada na vitimização." 

Futuro dos Estados Unidos 

• "Religioso ou leigo, negro, branco ou marrom, todos temos em comum a sensação de que os mais importantes desafios dos Estados Unidos estão sendo negligenciados. Se não mudarmos de rumo rapidamente, poderemos nos tornar a primeira geração de americanos a legar aos filhos uma nação mais fraca e mais alquebrada do que a que recebeu dos pais." 

• "Eu sonho com uma América com mais engenheiros e menos advogados." 

• "Quando meus colegas democratas me abordam para reclamar que vivemos em um dos piores períodos políticos de nossa história, que as mãos do fascismo estão se fechando sobre nossa garganta, eu peço-lhes calma. Lembro que já vivemos situações piores no passado. Colocamos inimigos em massa em campos de concentração nos tempos de Franklin Delano Roosevelt (presidente entre 1933 e 1945). O governo de John Adams (1797-1801) tinha leis de exceção e dezenas de administrações simplesmente ignoraram os constantes linchamentos de negros." 

Valores e ideais 

• "Nossos valores e nossa vida espiritual importam pelo menos tanto quanto o PIB." 

• "Quando se examina seu conteúdo, a verdade é que as mensagens da esquerda e da direita são as mesmas, apenas com o sinal trocado." 

• "Ronald Reagan (presidente dos Estados Unidos entre 1981 e 1989) pode ter exagerado em suas críticas ao sistema de assistência social universal (welfare state), mas (...) uniu o país dando-lhe um senso de ideal comum que os liberais já não podiam dar." 

• "As verdadeiras grandes questões não são abstratas, mas nem por isso deixam de ser complexas. A guerra pode ser um inferno e, ao mesmo tempo, a coisa certa a ser feita." 

• "Os conservadores (são contraditórios)... eles se arrepiam quando o governo interfere nos mercados ou no direito de eles possuírem armas, mas não se importam quando o mesmo governo grampeia telefones ou tenta controlar as práticas sexuais das pessoas." 

Economia e protecionismo 

• "Os Estados Unidos não podem competir globalmente erguendo barreiras comerciais e aumentando o valor do salário mínimo dos americanos – a menos que consigamos confiscar todos os computadores do mundo." 

• "Nosso zelo em proteger as patentes de remédios feitos por companhias americanas foi tanto que acabamos por tentar impedir que países como o Brasil desenvolvessem e produzissem os próprios remédios genéricos contra a aids." 

• "A se espalhar pelo mundo o conceito de livre mercado, aumenta cada vez mais a pizza da prosperidade, mas não existe nenhuma lei determinando que o trabalhador americano vai pegar um pedaço cada vez maior."


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