NEOCOLONIALISMO
Buenos Aires - Cerca de 10% do território argentino (aproximadamente 270 mil quilômetros quadrados) pertence hoje a estrangeiros, segundo levantamentos da Federação Agrária Argentina (FAA). Até setembro de 2006, 4,5 milhões de hectares correspondentes às melhores terras cultiváveis do país estavam à venda ou em processo de venda para investidores, entre pessoas físicas, empresas ou sociedades anônimas. Deste total, quase 24 milhões de hectares foram vendidos a grupos transnacionais. Esses dados são do livro “Tierras S.A – Crónicas de un país rematado”, dos jornalistas argentinos Andrés Klipphan e Daniel Enz (Aguilar, 2006), que denunciam o crescente processo de estrangeirização da propriedade da terra na Argentina. Após três anos de pesquisas, Klipphan e Enz chegaram à conclusão de que a concentração de terras e recursos naturais avança sem cessar no país. Segundo os autores, muitas destas transações são feitas com fundos de procedência duvidosa, às vezes em nome de sociedades anônimas de origem incerta. Uma das conseqüências mais evidentes desse processo, advertem, é a apropriação privada de espaços que eram de acesso público. Eles dão nome aos bois (ou melhor, aos novos donos dois bois). Milionários como Luciano Benetton, Douglas Tompkins e Ted Turner são alguns dos novos proprietários de terras e recursos argentinos. “Muitos dos hectares foram comprados a preços insignificantes e com a cumplicidade ou indiferença de políticos e funcionários do governo, correspondendo às melhores áreas cultiváveis ou encontrando-se em zonas estratégicas de fronteira”, escrevem. Trata-se da primeira obra a fazer esse levantamento e a apresentar as dramáticas conseqüências sociais deste processo de concentração de terras e recursos naturais. Benetton, o maior latifundiário do país O processo de estrangeirização das terras argentinas é mais forte nas regiões da Patagônia e do norte do país. Nestas áreas, verifica-se também a maior concentração de milionários estrangeiros, “beneficiados com atitudes flexíveis de distintos governos – tanto nacionais como provinciais – que permitiram a venda de milhões de hectares e recursos naturais não renováveis, sem restrições e a preços módicos”, denunciam Klipphan e Enz. Segundo eles, chegou-se ao cúmulo de investidores estrangeiros comprarem enormes extensões de terra ao preço de um hambúrguer do McDonald’s ou de um par de tênis Nike ou Adidas. Um dos resultados dessas transações é que, hoje, o maior latifundiário privado da Argentina é o grupo italiano Benetton, que possui cerca de 900 mil hectares no país (uma área equivalente a 4.500 vezes a superfície da cidade de Buenos Aires). Conforme um estudo da Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (Flacso), dos 80 mil proprietários de terras na região pampeana, na província de Buenos Aires (a zona mais fértil e cara do país), os primeiros 1250 possuem 35% das terras. Além disso, os 50 maiores proprietários detém 2,4 milhões de hectares, 15% mais do que final da década de 1980 (segundo dados do Censo Nacional Agropecuário, realizado em 2002). A concentração de terras pode ser ainda maior, advertem os jornalistas argentinos, uma vez que muitas vezes é praticamente impossível seguir o rastro dos verdadeiros donos das terras, porque as mesmas aparecem em nome de dezenas de sociedades anônimas, grande parte das quais, sediadas em paraísos fiscais como Bahamas, Uruguai e Ilhas Cayman. “O ano de ouro na Argentina” O interesse dos investidores internacionais está dirigido também para o que existe debaixo do solo na Argentina. Em San Juan, La Rioja, Jujuy e Catamarca estão instaladas as maiores empresas mineradoras do mundo, que exploram reservas de ouro e prata. Klipphan e Enz citam alguns números para caracterizar a dimensão deste mercado. A produção mineira argentina passou de 481 milhões de dólares, em 1994, para cerca de 900 milhões, em 2005. O número de empresas estrangeiras no setor saltou de quatro, em 1986, para 50. Os ex-presidentes Carlos Menem e Fernando de la Rúa incentivaram essa expansão de investimentos estrangeiros no setor minerador. De la Rúa chegou a dizer que 2000 seria “o ano de ouro na Argentina”. Como se sabe, não foi exatamente isso que ocorreu. O entusiasmo de De la Rúa com a mineração, assinalam os jornalistas, ocorreu depois de uma viagem aos Estados Unidos. Na bagagem de retorno, o ex-presidente argentino trouxe a promessa de investimentos de aproximadamente 1 bilhão de dólares por parte de empresários norte-americanos. No dia 17 de junho de 2000, a revista argentina “Notícias” denunciou que De la Rúa havia omitido um “pequeno detalhe” em torno deste grande negócio: um primo dele e um contador da família possuíam investimentos milionários no setor minerador. Zonas de fronteira à venda O livro investiga ainda um fenômeno que também está ocorrendo no Brasil: a compra de terras em áreas de fronteira por investidores estrangeiros (como ocorre no Rio Grande do Sul, por exemplo, envolvendo grandes empresas de celulose). Durante o governo de Carlos Menem, estrangeiros adquiriram 1.773.000 hectares de terras em zonas de fronteira. Nos primeiros quatro anos do governo Kirchner, esse número caiu para 160 mil hectares. Não há legislação proibindo essas compras na Argentina. Existem, atualmente, na Câmara de Deputados e Senadores e em oito assembléias provinciais, 38 projetos protocolados propondo a adoção de regras de controle e limitação para a compra de terras por parte de estrangeiros. Estão, ou parados, ou em fase de tramitação. Uma das conseqüências sociais mais danosas deste novo processo de colonização, denunciam os jornalistas em seu livro, é que cerca de 200 mil produtores agropecuários perderam suas terras nas últimas décadas do século XX, tendência que se manteve nos primeiros anos do século XXI. A jornalista Maria Seoane advertiu para os riscos desta situação: “o processo de estrangeirização da terra e dos recursos naturais e estratégicos, ocorrido nos últimos 15 anos, e com singular força nos anos 90, é tão acelerado e complexo que ainda é difícil de medir todas as suas conseqüências”. Um alto funcionário do Ministério do Interior revelou aos jornalistas que, entre 2002 e 2006, foram protocolados na Secretaria de Segurança do Interior, 2358 pedidos de investimentos em zonas estratégicas denominadas “zonas de segurança”. Essas áreas compreendem 150 quilômetros de fronteira, abrangendo a Cordilheira dos Andes e 50 quilômetros na faixa de litoral. E possuem uma das maiores concentrações de recursos naturais, água potável e terras cultiváveis do país. Do total destas áreas em mãos de estrangeiros, 90% do total estão sendo usadas para exploração mineradora.. Mas esses dados já envelheceram, destacam Klipphan e Enz. No final de agosto de 2006, Bill Gates anunciou que investiria cerca de 120 milhões de dólares na Argentina para extrair prata das minas de Santa Cruz. A água também é objeto de forte interesse dos investidores internacionais. Douglas Tompkins, maior proprietário privado de recursos naturais vinculados à água na Patagônia e ns Esteros do Iberá, é dono de cerca de 90 mil hectares de terras em zonas de fronteira. Além disso controla a nascente e a desembocadura do rio Santa Cruz, o mais caudaloso da Patagônia.
Fonte: Ag. Carta Maior, Marco Aurélio Weissheimer, 30/7/2007. |
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