O sistema em xeque
Nunca dá para ser
otimista, mas que há uma boa oportunidade
O caso relatado pelo repórter Policarpo Junior no último número desta revista não ameaça apenas o PTB, o deputado Roberto Jefferson, os Correios ou as demais estatais citadas – é o próprio sistema político que está em jogo. Ótimo. O melhor que poderia acontecer é ele explodir de vez. Por "sistema político" entenda-se o ritual, em vigor pelo menos desde a retomada dos governos civis, em 1985, de retalhar a administração em pedaços que são oferecidos aos agrupamentos mais suspeitos, em troca de apoio no Congresso. Do governo do PSDB, partido de ilustrados acadêmicos, surgido do inconformismo em conviver com a corrupção, esperava-se que representasse uma ruptura com tal estado de coisas. Em vez disso, aprofundou-o. Do governo do PT, partido que firmou reputação de campeão da ética, esperava-se mais ainda. Em vez disso, levou-o ao paroxismo. De concessão em concessão aos patronos da ladroeira e aos paladinos do atraso, despencamos num buraco em que temos, na presente quadra do governo Lula, por um lado um arremedo de coligação de governo e por outro um arremedo de relações independentes e harmônicas entre os poderes Executivo e Legislativo. No último programa Roda Vida, a jornalista Thaís Oyama, de VEJA, fez ao chefe da Casa Civil, José Dirceu, a pergunta do momento: por que os políticos tanto querem cargos na administração? A resposta foi algo como: "Para ajudar a governar". Ajudar a governar? Um ministro, vá lá, ainda ajuda a governar. Mas um diretor de administração dos Correios? O diretor de operações e logística da BR Distribuidora? A diretoria financeira da Transpetro? A resposta do chefe da Casa Civil quer fazer crer que temos um governo de coligação. O partido hegemônico, no caso o PT, partilha o poder com agremiações que, além do apoio no Congresso, lhe aportam a contribuição de suas idéias e de seus quadros. Seria perfeito se tivessem idéias ou quadros. Como não dispõem de tais artigos, trazem o apetite eleitoreiro, no melhor dos casos, e a vocação para delinqüir, no pior. "Presidencialismo de coalizão" é como primeiro Sérgio Abranches, e depois toda uma corrente da ciência social brasileira, chama o sistema em vigor no país, em que nunca um partido tem maioria sozinho no Congresso e precisa de aliados. "Presidencialismo de safadeza" seria um bom apelido para sua versão degenerada, aquela que se vê na prática. Em nome da famosa governabilidade, abrem-se brechas para os safados. "Governabilidade" virou eufemismo para tolerância com a corrupção. A relação com o Congresso baixou aos níveis da do chantagista com o chantageador. Quando se diz que, com a eleição de Severino Cavalcanti, a Câmara proclamou sua independência, o que se quer dizer é que aumentou o poder de chantagem. Sucedem-se no Planalto presidentes que rapidamente dissipam seu capital eleitoral. Aconteceu com Fernando Henrique Cardoso, acontece agora com Lula. Quando a Presidência dá seu primeiro sinal de fraqueza e faz a primeira concessão, desencadeia uma seqüência que não tem fim. Precisa conceder mais e mais. O chantagista nunca está satisfeito. É famoso, na história do Brasil, o "sorites de Nabuco" – silogismo com o qual o primeiro Nabuco, José Thomás, descreveu o sistema político do Segundo Reinado: "O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí está o sistema representativo do nosso país". O sorites de hoje seria: "O presidente chama parceiros porque não consegue presidir sozinho; estes parceiros abrem espaço para a malversação e as falcatruas; a malversação e as falcatruas levam o governo a perder o rumo e a afundar num mar de escândalos". O presente escândalo oferece uma oportunidade de romper com essa lógica. As vísceras do sistema foram expostas de maneira didática pelo pobre funcionário dos Correios que protagoniza a reportagem de VEJA. Eis a oportunidade de o governo impor-se sobre "aliados" cujo objetivo é emboscar agentes de seus próprios e escusos interesses nas franjas da administração. Melhor ainda seria o governo aproveitar para jogar sua força em medidas que atacassem o problema pela raiz – por exemplo, reformas que diminuíssem o número de cargos de livre provimento, de modo a protegê-los dos apetites espúrios, ou que determinassem a fidelidade partidária, de modo a impedir a engorda de agremiações cuja especialidade são as artes da chantagem e o assalto ao Erário. Não dá para ser otimista. A primeira reação do governo, de nítido sabor masoquista, foi de submissão aos "aliados". O presidente Lula solidarizou-se com o deputado Jefferson, o que trai um estado de espírito antes conformado com o jugo que o oprime do que disposto a livrar-se dele. Nunca dá para ser otimista, na política nacional. A experiência indica que o atraso tem sete fôlegos e que o vício sempre vence. Mas que há uma oportunidade, e se o governo fosse sábio a aproveitaria no seu próprio interesse, lá isso há.
Fonte: Rev. Veja, Roberto Pompeu de Toledo, edição nº 1906, 25/05/2005. |