O sentido do mundo
Klaus Manhart* 

 

Culturas antigas usavam histórias fabulosas para explicar fenômenos naturais. Na modernidade, os mitos persistem pela necessidade cerebral de impor ordem à realidade.

Tomado de paixão pela encantadora princesa Europa assim que a viu colhendo flores na praia, o deus grego Zeus elaborou um astuto plano. Transformado em touro, Zeus se aproximou dela e deixou-se acariciar. O touro parecia tão amigável que Europa subiu em seu dorso. O animal então avançou para o mar, levando a moça. Após chegarem a uma praia longínqua, Zeus transformou-se novamente em um jovem e prometeu proteger Europa em sua nova terra, batizada com o seu nome. O ardil funcionou e o casal teve três filhos.

Parece que os gregos apreciavam intrigas e peripécias. O enevoado Monte Olimpo era uma espécie de mundo melodramático. Os deuses que aí habitavam armavam ciladas uns contra os outros e sempre demonstravam fraquezas, particularmente em relação à beleza do sexo oposto. Para alcançar seus interesses, formavam alianças, lutavam e até matavam.

Estavam longe de ser perfeitos. Suas características humanas ajudam a explicar por que os mitos da Grécia antiga ainda nos satisfazem: se os deuses apresentam falhas humanas, então os homens podem se persuadir de que são capazes de ser como os deuses.

Mas isso não basta. Por que é tão fácil aceitar essa mitologia? Em parte, porque certas funções de nosso cérebro insistem em impor ordem e propósito nas coisas que o cercam e que, de outra forma, seriam enigmáticas. Por mais racionais que tentemos ser, nossos cérebros não podem resistir ao ímpeto de adotar relatos metafísicos.

Explicando o inexplicável

Os mitos são muito mais do que melodramas. As culturas antigas usavam essas histórias fabulosas para explicar os misteriosos fenômenos naturais que determinavam sua existência. Os egípcios invocavam centenas de divindades que controlavam o destino do rio Nilo e de seus povos. As águas do rio e as cheias anuais presidiam suas idéias sobre a criação, a morte e o renascimento. Segundo as crenças da época, quando a vida surgiu o oceano primordial Nun ocupava todo o Universo. Assim como os deuses criaram a vida com as águas do Nun, as cheias do Nilo fertilizaram as terras habitadas por maravilhosos animais e plantas.

As formas iniciais de práticas religiosas e espirituais datam de pelo menos 40 mil anos atrás, período que muitos pesquisadores associam à emergência do comportamento humano moderno. Várias pinturas de cavernas e escavações do período sugerem que esses povos acreditavam em poderosas forças sobrenaturais passíveis de serem invocadas em seu favor. Baseados em descobertas feitas em sítios arqueológicos como o de Qafzeh, em Israel, pesquisadores apontam que os humanos anatomicamente modernos realizavam funerais e outros ritos em período ainda mais remoto, há mais de 90 mil anos. Outros pesquisadores sustentam que os neandertais também desenvolveram um sistema de mitos e crenças religiosas.

É claro que há enorme variação entre os sistemas míticos de diferentes culturas humanas, mas todos oferecem respostas às mesmas questões fundamentais. Foi essa a conclusão alcançada pelo mitólogo americano Joseph Campbell antes de morrer em 1987. Durante décadas, Campbell pesquisou os motivos comuns de inúmeras lendas e religiões de sociedades antigas e modernas, incluindo gregos, romanos, egípcios, asiáticos e nórdicos.

Campbell apontou a existência de três atributos. Em primeiro lugar, o mito envolve uma questão existencial sobre a morte e o nascimento ou criação do mundo. Em segundo lugar, o mito contém enigmas suscitados por contradições insuperáveis: criação e destruição, vida e morte, deuses e homens. Por fim, o mito tenta reconciliar esses pólos opostos e assim atenuar nossos temores.

Histórias necessárias

Com o tempo, os relatos míticos passaram a fazer parte das crenças e religiões, influenciando, ainda hoje, o modo como os povos vivem e compreendem o mundo. Esse saber tradicional é parte de nossa cultura, razão pela qual ele ainda persiste, mesmo em sociedades progressistas e tecnológicas.

Mas talvez isso não seja tudo. No final da década de 90, o radiologista e pesquisador da religião Andrew Newberg e o psiquiatra Eugene G. d'Aquili, ambos da Universidade da Pensilvânia, começaram a estudar as fontes cerebrais dos sentimentos religiosos. Em 2001, Newberg publicou inovadores resultados (D'Aquili falecera) baseados no monitoramento da atividade cerebral de monges em meditação e de freiras franciscanas em prece.

Quando as pessoas estudadas estavam em estado de profunda contemplação religiosa, os pesquisadores registraram atividade drasticamente reduzida numa parte específica do lobo parietal. Essa região é responsável pela orientação espacial e pelo senso do próprio corpo: é ela que nos torna consciente de onde nosso corpo termina e o resto do mundo começa, permitindo assim a clara distinção entre nós e todo o resto.

Newberg e D'Aquili postularam que os sentimentos religiosos têm base neurológica, pois a ausência de bombardeamento neuronal na região parietal parecia associada à sensação de êxtase espiritual. Eles concluíram que o impulso religioso - o anseio de experiência metafísica - estava inscrito no cérebro.

Alguns pesquisadores apontam que os mitos podem ter outro fundamento biológico. Humanos, ao contrário dos animais, têm capacidade de abstração, o que permite antecipar ameaças. As respostas fisiológicas do medo podem ser desencadeadas simplesmente mediante a representação de um perigo, que prepara o corpo para "lutar ou fugir". Essa capacidade também permite a atribuição de sentido ao sofrimento e à morte. Por exemplo, podemos raciocinar que vale a pena suportar a dor causada por uma vacina, já que os benefícios de jamais contrair a doença compensam.

Reunindo essas observações, D'Aquili cunhou o termo "imperativo cognitivo" para descrever essa função do cérebro de dar significado às coisas. Temos um desejo de ordem e sentido que é biologicamente condicionado. Diante de qualquer situação ou processo, não podemos deixar de atribuir-lhes algum propósito. Os fisiologistas Michael E. McCullough, da Universidade de Miami, e David B. Larson (recentemente falecido), então no Instituto Nacional para Pesquisa em Saúde, estenderam esse conceito ao que chamaram de anseio ontológico: a necessidade de compreender a natureza fundamental do mundo em vez de simplesmente aceitá-la como é. Segundo essa hipótese, o imperativo cognitivo força nosso cérebro a pensar incessantemente, de tal forma que não podemos deixar de elaborar relatos e mitos que expliquem os mistérios que nos rodeiam.

Causa e efeito cósmicos

A capacidade de construir explicações para os fenômenos é chamada por Newberg de "operador causal". Trata-se de uma das oito funções analíticas gerais do cérebro, que Newberg e d'Aquili denominaram "operadores cognitivos". Quando um operador está ativo, várias regiões do cérebro são envolvidas. Juntos, os oito operadores regulam o funcionamento da mente humana. Embora ainda controverso, esse esquema ganha aceitação cada vez maior.

O operador causal interpreta a realidade como uma cadeia de causas e efeitos. Se a campainha está tocando, provavelmente alguém está na porta. Se chover, a rua ficará molhada. Estimula a curiosidade, nos motivando a decifrar os mistérios e permitindo que elaboremos explicações empíricas para os processos naturais. Mas o operador também tenta criar relações de causa e efeito para enigmas metafísicos como a morte e a criação do Universo. As pessoas que sofrem de certos tipos de lesão no cérebro não conseguem vincular nem mesmo os eventos mais simples às suas causas.

Os outros sete operadores cognitivos proporcionam contexto para o operador causal. O operador holístico permite que percebamos o mundo como um todo. Graças a ele, compreendemos imediatamente e sem esforço que uma configuração de folhas, troncos e galhos constitui uma árvore. A atividade no lobo parietal direito é a base desse operador. O operador reducionista funciona de modo inverso, permitindo a decomposição do todo em suas partes componentes. Sua base é o hemisfério esquerdo, mais analítico. O operador de abstração deriva conceitos gerais de fatos individuais, possibilitando, por exemplo, que classifiquemos bassês, pastores e cockers em uma única categoria: cães. Estudos recentes de imageamento indicam que essa função está baseada no lobo parietal esquerdo.

O operador existencial nos dá a sensação de que os dados provenientes dos sentidos e processados pelo cérebro têm base na realidade. Essa função está, provavelmente, baseada no sistema límbico. O operador emocional também fica nessa parte: vincula as percepções aos sentimentos e constitui a base de nossa capacidade de pensar e julgar racionalmente.

O operador quantitativo avalia tamanho, quantidade, tempo, distância e calcula matematicamente. O operador binário nos ajuda a impor ordem aos mais variados fenômenos do meio circundante, medindo o espaço e o tempo por meio de noções opostas: em cima e embaixo, direita e esquerda, dentro e fora, antes e depois. Esse operador está localizado no lobo parietal inferior; pacientes com lesões nessa área não podem identificar os opostos de palavras ou objetos.

Para Newberg e D'Aquili, o operador binário desempenha papel crucial na formação e persistência dos mitos. Além de nos ajudar a reduzir a complexidade das situações, fornece uma heurística simples e rápida para nossa orientação ao elaborar os elementos centrais do mito: bem e mal, nascimento e morte, céu e terra, isolamento e integração.

Expandindo a conexão entre operadores cognitivos e sistemas de crença, Newberg e outros pesquisadores sustentam que certas áreas do cérebro cumprem papel fundamental na experiência religiosa. Embora essa perspectiva ainda seja controversa, parece claro que a capacidade de pensar por meio das noções de causa e efeito seria impossível sem uma determinada estruturação funcional do lobo parietal. Provavelmente, os seres humanos procuram explicações para os mistérios do mundo simplesmente porque o cérebro tem essa capacidade.
 

* Klaus Manhart é sociólogo, filósofo da ciência e escritor free-lance em Munique.
 

Fonte: Rev. Viver Mente&Cérebro, Tradução de Alexandre Massella, Ed. n. 158, março de 2006.


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