Senado para quê?
Eis
uma boa hora para repensar uma casa que, além de inútil, pode ser malsã
Muitos
países vivem sem Senado e não são menos felizes, ou mais infelizes, por
causa disso. Israel é um bom exemplo. Portugal é outro. São países que
adotam o chamado sistema "unicameral", o do Poder Legislativo sediado em uma
única casa, a Câmara (ou Assembléia) dos Deputados. Há, na teoria,
argumentos pró e contra o unicameralismo ou o bicameralismo. No Brasil, a
velhos argumentos contra a existência do Senado, somou-se, na semana
passada, um novo. Os velhos argumentos são:
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O Senado torna o
Poder Legislativo repetitivo e lento. O processo de uma lei passar pela
Câmara, depois ir para o Senado, depois voltar para a Câmara se houver
modificação no Senado, e depois até talvez voltar para o Senado se houver
modificação na Câmara, produz cansaço e exasperação. No meio do caminho,
perde-se o interesse e arrisca-se comprometer a oportunidade da lei.
Quando se tem em conta que, em cada casa, o projeto passa por diferentes
comissões especializadas, o cansaço e a exasperação crescem. As comissões
existem para peneirar as propostas, examinando-as sob diversos pontos de
vista. Com isso, instala-se um processo de revisão que torna redundante o
"poder revisor" que se atribui ao Senado.
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A existência de duas
casas legislativas resulta em concorrência de uma contra a outra. Muitos
são os exemplos de rivalidade nociva entre Câmara e Senado. Fiquemos em
um, recente: a instalação das chamadas CPIs "do apagão aéreo". Como não
houve acordo para criar uma comissão mista (as vaidades são muitas, e a
tela da televisão é pequena), criaram-se duas, uma no Senado e outra na
Câmara. Resultado: duplicação de depoimentos, conclusões discordantes,
desperdício de energia e perda de credibilidade.
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A especificidade do
Senado dilui-se no sistema brasileiro. A especificidade do Senado é
representar os estados, enquanto a Câmara representa o povo. No Senado, os
estados são representados por igual, à razão de três senadores cada um. Na
Câmara, um estado será tão mais representado quanto maior for sua
população. Isso na teoria. Ocorre que, pela legislação brasileira, há um
número mínimo (oito) e um máximo (setenta) de deputados por estado. Isso
faz com que a população de estados pequenos seja super-representada e a
dos grandes sub-representada. Roraima, com 400.000 habitantes e oito
deputados, tem um deputado para cada 50.000 habitantes, enquanto São
Paulo, com 40 milhões de habitantes e setenta deputados, tem um para cada
570.000. A população de São Paulo vale, na Câmara dos Deputados, onze
vezes menos do que a de Roraima. Tal sistema existe, segundo seus
formuladores, para proteger os estados menores e tornar mais equitativa,
na Câmara, a presença das diversas unidades federativas. Ora, não é o
Senado a casa da representação equitativa dos estados? Se a Câmara usurpou
esse papel, para que o Senado?
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O Senado é em larga
parte biônico. "Biônico" era o apelido, na ditadura, do senador nomeado,
invenção do regime para não perder o controle da casa. Eram senadores sem
voto. Pois mais de vinte anos depois da redemocratização continuam a
existir os senadores biônicos, agora na pessoa do "suplente", aquele de
quem ninguém ouve falar na campanha eleitoral e, quando menos se espera,
lá está, ocupando uma cadeira para a qual se votou em outro. Um caso
recente é o do senador Euclydes Mello, do PTB de Alagoas. O eleito
Fernando Collor saiu para dar uma volta e assumiu o primo suplente. Outro
caso recente é o de Gim Argello (PTB-DF), que despontou para a vaga de
Joaquim Roriz com um rico elenco de suspeitas sobre sua cabeça, mas que
teve a posse assegurada pelo voto amigo do presidente Renan Calheiros. A
presença dos biônicos deslegitimiza a casa.
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O Senado não cumpre
deveres que lhe são específicos. Cabe-lhe com exclusividade aprovar as
indicações de ministros do Supremo Tribunal, embaixadores e membros das
agências reguladoras. É uma tarefa nobre e útil, que mais nobre e útil
seria se fosse exercida com cuidado e competência. Não é o caso. Na
aprovação da notória diretoria da Agência Nacional de Aviação Civil
(Anac), o Senado comportou-se com a habitual leviandade, antes como
carimbador das propostas do Executivo do que como poder verificador e
equilibrador das decisões do outro.
A esses argumentos
acrescentou-se, na semana passada, evidenciado em toda sua extensão, o mal
do "clubismo". Por ser uma casa pequena, onde todos se conhecem bem, o
Senado é ambiente propício às cumplicidades, à troca de favores e à venda de
lealdades. Não foi outra a causa da absolvição de Renan Calheiros. O clube
se fechou em torno dele (ou, pelo menos, a maioria do clube), num processo
de escora mútua: eu protejo você hoje e você me protege amanhã, eu finjo que
não vejo o que você fez e você finge que não vê o que eu faço, e vamos todos
juntos, que o barco soçobra e se um cair ao mar corremos todos o risco de
lhe fazer companhia. O clube é uma instituição malsã porque, em vez de ao
estado e à nação, tende a servir a si mesmo, a suas trapaças e a suas
malfeitorias.
Fonte: Rev. Veja, Roberto Pompeu de Toledo,
ed. 2026, 19/9/2007.
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