''Estão se
lambuzando''
Leôncio Martins Rodrigues*
Cientista político diz que o PT ficou encantado com
a ascensão social
e abandonou a velha idéia de fazer a revolução
O
cientista político Leôncio Martins Rodrigues começou a estudar o movimento
sindical e os partidos políticos há mais de 40 anos. Acompanhou de perto as
greves dos metalúrgicos do ABC paulista na virada da década de 70 para a de
80. Foi nesse ambiente que viu o surgimento do hoje presidente Luiz Inácio
Lula da Silva como o maior líder sindical do país e acompanhou a fundação do
Partido dos Trabalhadores (PT), um misto de diferentes correntes de
esquerda, Igreja e trabalhadores. No Brasil, pouca gente entende do assunto
tanto quanto ele. Leôncio conhece a lógica dos sindicalistas e como seu
pensamento foi transferido para o governo. Nesta entrevista, Leôncio ajuda a
entender o que está acontecendo com o PT, com os partidos políticos, como
pensa o governo e por que faz certas coisas.
ÉPOCA
- O presidente Lula prepara uma reforma ministerial para abrigar até o
PP, um partido de direita. Na semana passada, foi vaiado por militantes de
esquerda que antes o apoiavam. O que está acontecendo com o PT e com Lula?
Leôncio Martins Rodrigues -
Um partido de esquerda no poder, como o PT, tem de se afastar um pouco das
antigas reivindicações. Um partido é uma organização que quanto mais cresce
mais complexa fica. Ele se institucionaliza, começa a colocar seus
interesses acima dos interesses de seus eleitores, se burocratiza, ocorre a
especialização das funções e multiplicação dos postos. Isso acaba pesando.
Quando surgem as vantagens que o poder dá - mordomias, as delícias de
mandar, de bens materiais que passam a ser usufruídos -, vêm as perguntas:
por que fazer a revolução?, por que mudar?, por que arriscar isso? Um
partido como o PT, que surgiu de baixo, não tinha dinheiro, coisas materiais
para distribuir aos militantes, apenas ideologia, agora tem cargos a
distribuir para os membros do partido.
ÉPOCA
- O senhor diz que todos os partidos tendem a caminhar para o centro do
espectro político. Por quê?
Leôncio -
Até a Segunda Guerra Mundial, a política era muito ideologizada: o operário
inglês votava no Partido Trabalhista, que representava sua classe. Após o
conflito, houve uma redução do peso da ideologia na política e um avanço do
pragmatismo para atender às demandas de uma sociedade de consumo. Como não
há mais a possibilidade de tomar o poder de assalto, os partidos políticos
têm de jogar o jogo eleitoral, que é caro e no qual ninguém entra para
perder. Por isso os partidos tiveram de começar a oferecer propostas que
atraíssem pessoas de outras classes sociais. Tiveram de concorrer para
conquistar todo tipo de eleitor, por isso o apelo ideológico se enfraqueceu
muito.
ÉPOCA
- Isso explica por que o candidato se apresenta como produto de consumo.
Leôncio - O
marketing nas eleições passou a ser uma coisa bastante importante. Os
partidos diminuíram suas diferenças ideológicas: eles não estão mais
interessados em convencer ideologicamente, mas em ganhar eleitores. Isso
acontece em todo o mundo ocidental, não só no Brasil. Com algum atraso, nós
começamos a viver esse processo de transformação, que leva os partidos a
procurar mais o centro, onde está a maioria dos eleitores, porque não querem
ser partidos de minorias.
ÉPOCA
- É por
isso que o PT se afasta da esquerda?
Leôncio - Se o PT insistisse em ser um partido dos trabalhadores,
entendendo trabalhador como operário fabril, ele perderia muitos votos
porque a classe operária empobreceu e se reduziu. O PT pegou a pérola da
coroa, que é a Presidência da República, em uma circunstância específica, em
uma aliança com a direita e sem maioria no parlamento. O trato com os grupos
de esquerda mudou porque o PT precisa governar e agora pode dividir as
vantagens do poder, que são muitas. Você vê aí as nomeações de sindicalistas
para cargos com salários altíssimos. O PT pode distribuir cargos e
vantagens. Em vários escalões de poder há uma distribuição de benefícios,
que é comum a todos os partidos que chegam ao poder. A diferença grande em
relação aos outros partidos é que o pessoal do PT é muito ideologizado,
prometia muito e veio mais de baixo. Então os petistas são mais vorazes.
ÉPOCA
- Por que o senhor diz isso?
Leôncio -
Os petistas são mais vorazes porque vieram mais de baixo. Nos outros
partidos, cujos quadros vieram mais de classes alta e média, a
voracidade, a pressão por esses cargos de terceiro, quarto escalões, não
é tão forte, pois os salários não são altos. Esses cargos também não
representam para eles ascensão social. Mas, para o pessoal do PT, sim.
Eu não estou entrando aqui na questão da apropriação indébita. Estou
dizendo o seguinte: para uma série de pequenos cargos e outros
benefícios da distribuição de vantagens, a maioria dos militantes do PT
veio mais de baixo, por isso é mais voraz e está se lambuzando mais com
o poder.
ÉPOCA - As nomeações políticas, em vez de técnicas, para as agências
reguladoras são exemplos disso?
Leôncio - A distribuição de cargos no aparelho estatal é habitual.
Mas, no Brasil, por um lado, a distribuição de cargos públicos parece
exagerada e, por outro lado, o pessoal petista, comparativamente de classe
mais baixa, parece mais voraz. Vejo dois motivos principais. O primeiro é
que o viés socialista de controle da economia requer partidários na direção
do Estado. O outro é recompensar os amigos e aliados.
ÉPOCA - Por que o PT dá tanto tiro no pé, como no caso da eleição do
presidente da Câmara?
Leôncio - Se as disputas existem e extravasam para os meios de
comunicação, é porque o presidente, por alguma razão, é tolerante com as
fricções e disputas palacianas. Pode ser porque não consiga controlá-las,
pode ser que as rivalidades internas cumpram alguma função para a manutenção
da autoridade presidencial. No caso da Câmara, acrescente-se a ambição
pessoal pela posse de um posto que traz muitos benefícios políticos e
vantagens materiais. Esses fatores existem sempre nas disputas por cargos
importantes. O grave, no caso, é o fato de o presidente não conseguir
controlar as pretensões da bancada do próprio partido. De todo jeito, pela
resistência da bancada petista ao deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP),
a escolha do partido parece não ter sido feliz.
ÉPOCA - Desde que assumiu, o governo já criou dezenas de comissões e
grupos de trabalho. Esse sistema de administração é eficiente?
Leôncio - É o pior sistema possível. Comissões e grupos de trabalho
são coisas paralisadoras, nas quais ninguém é responsável por nada. Todo
mundo sabe que comissões e grupos de trabalho em excesso aumentam a já
tradicional lentidão da burocracia governamental brasileira. Os ministros e
os que têm de tomar decisões políticas importantes perdem seu tempo nessas
comissões. As reuniões são difíceis de agendar porque os ministros viajam e
mandam outros substituí-los. Mas esses não têm autoridade para decidir. O
resultado é maior paralisia da administração. Mas o PT adora comissões. Elas
dão a impressão de muito trabalho. Mas são como um automóvel com o motor
ultra-acelerado, mas com o câmbio em ponto morto.
ÉPOCA - A portaria que obriga o IBGE a apresentar suas pesquisas antes
ao governo é um sinal disso?
Leôncio - Sim. O governo e a direção do IBGE negam a censura. Mas,
conhecendo o passado socialista recente do PT, a dificuldade da esquerda em
conviver com o pluralismo político e o pronunciamento do presidente sobre ä
os resultados de outra pesquisa do próprio IBGE sobre o excesso de peso dos
brasileiro, é óbvio que se olhe com muita desconfiança essa nova portaria do
governo federal. Se não há intenção de censura, qual a razão da medida? As
explicações do governo não são convincentes. Além dos projetos da Ancinav e
do Conselho Federal de Jornalismo, vale lembrar o caso da expulsão do
jornalista do New York Times. O próprio projeto sobre o ensino superior
desperta desconfiança quando prevê formas de intervenção ''popular'' e
''democrática'' sobre as universidades. Aliás, essas duas palavras usadas
como adjetivo para definir regimes e instituições servem para esconder as
piores ditaduras. Quem não se lembra das repúblicas populares e democráticas
dos países do socialismo real?
ÉPOCA - Há uma
tendência de fazer política com menos ideologia. Isso explica o fato de que
políticos como o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, invistam na
imagem do bom administrador?
Leôncio - Com o enfraquecimento da capacidade de mobilização das
mensagens puramente ideológicas, os candidatos têm de enfatizar a
eficiência, a honestidade, capacidade de trabalho, experiência
administrativa etc. O governador paulista procura se adequar às tendências
da época. Não ter uma marca ideológica forte pode ser uma vantagem. Alckmin
tem uma imagem de bom administrador, de uma pessoa de quem o eleitor
compraria, sem receio, um carro usado. A estratégia pode ser muito adequada
a sua figura de político. Se, como parece, as eleições de 2006 forem bem
pouco ideológicas, quem for capaz de convencer a maioria do eleitorado de
que é mais competente, sério e honesto terá mais chance de vencer.
ÉPOCA - O senhor diz que os partidos tendem a caminhar para o centro. Os
de esquerda já fazem isso. Os de direita farão o mesmo?
Leôncio - Claro que sim. Eles terão de mudar para não parecer
conservadores, antipopulares ou reacionários. Mas isso não significa que vão
abraçar todas as teses da esquerda. Como a opção socialista desapareceu do
horizonte, a diferença entre o que chamamos de direita e esquerda está no
espaço e na importância que dão a certos temas e no modo como são tratados.
ÉPOCA - Como é possível misturar duas coisas tão diferentes, como PP,
PTB e PT num mesmo governo?
Leôncio - Há diferenças sociais entre eles: PFL e PP recrutam mais
entre a classe empresarial, e o PT entre trabalhadores. Mas essa gente que
vira político profissional é diferente. Um empresário ou sindicalista que
virou político profissional mudam do mesmo jeito. O metalúrgico que é
deputado pela quarta legislatura não é mais metalúrgico, ele é político. A
profissionalização do político homogeneíza: todos passam a viver da
política, o que impõe certas regras de conduta, de comportamento e a mesma
fonte de renda.
ÉPOCA - As elites aceitam Lula ou ainda existe preconceito contra o
presidente?
Leôncio - Quando o PT surgiu, Lula não só era tolerado por uma enorme
parte da classe empresarial como, em alguns momentos, até incentivado por
ela. Recentemente notei mesmo certo deslumbramento de alguns integrantes da
grande burguesia com o ex-metalúrgico que ascendeu e entrou para a elite.
Pode ser apenas o encanto que emana dos poderosos. Minha impressão, contudo,
é de que o preconceito não é tanto com relação às origens familiares do
presidente, mas quanto às condutas populistas.
ÉPOCA - Alguns
políticos defendem o fim da reeleição e estabelecimento de um mandato de
seis anos para o presidente. O que o senhor acha?
Leôncio - Mudanças freqüentes das regras do jogo democrático não
contribuem para a estabilidade política e para o desenvolvimento econômico.
Minha opinião é de que mudanças devem ser feitas com moderação. As grandes
democracias do mundo, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, fizeram poucas
alterações em seus sistemas eleitorais, apesar dos problemas que ambos os
sistemas carregam. Mas as mudanças políticas decorrem de interesses dos
setores majoritários dos políticos.
ÉPOCA - Quando voltar à oposição, o PT será tão radical quanto antes?
Leôncio - Parece-me difícil. O PT está degustando o sabor do poder. É
difícil o retorno para o radicalismo da juventude. O PT cresceu, tornou-se
uma organização complexa, burocratizou-se e seus dirigentes envelheceram. A
idade é uma variável que deve ser levada em conta: não há revolucionário
idoso. Outro fator vem do fato de os principais dirigentes do PT terem
ascendido social e economicamente. Já fazem parte da elite política e da
classe alta. Como eles dizem, o ''partido amadureceu''.
ÉPOCA - O
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tem criticado o governo Lula. É
normal que um ex-presidente faça isso?
Leôncio - Fernando Henrique não encerrou sua carreira política e tem
toda legitimidade e autoridade para se pronunciar. Mas suas críticas acabam
soando normais quando o partido que conquista o poder passa a atribuir ao
anterior todas as dificuldades e todos os problemas que não consegue
resolver. Lembra o regime soviético, que procurava vender a idéia de que
todas os aspectos negativos existentes no socialismo eram devidos ao passado
capitalista e czarista.
*
Leôncio Martins Rodrigues, 71, Cientista político, foi professor titular da
USP e da Unicamp. É autor de 13 livros sobre sindicalismo e partidos
políticos.
Fonte: Revista Época, Leandro Loyola,
6/2/2005 |