Salada de idéias mágicas
O
Segredo recicla achados de outros livros de auto-ajuda e dilui conceitos da
psicanálise,
Os grandes capitalistas em geral professam uma filosofia de autoconfiança e otimismo, às vezes traduzida em livros autobiográficos com um pé na auto-ajuda – caso, por exemplo, de Jack Definitivo, best-seller de Jack Welch, executivo da General Electric, e, bem antes, de Autobiografia, de Andrew Carnegie, magnata da siderurgia do século XIX. "Um estado de espírito luminoso vale mais do que a boa sorte. Os jovens devem aprender que a mente, como o corpo, pode se mover da sombra para o sol", dizia Carnegie. Há exceções, claro: ninguém diria que o magnata Howard Hughes, retratado no filme O Aviador, era uma personalidade "ensolarada" – mas sua hipocondria e suas debilitantes fobias sociais não o impediram de ser bilionário. No plano da psicologia, a auto-ajuda pretende ensinar seus leitores a superar traumas, entraves e inibições que os impeçam de chegar à felicidade. Pode ser encarada, nesse sentido, como uma versão barata da psicanálise. "A convocação a tomar uma parte mais ativa na vida, através do conhecimento daquilo que nos determina, é uma aspiração socrática que a psicanálise herdou, e que a auto-ajuda dilui", diz o psicanalista Renato Mezan, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Outra concepção fundamental da auto-ajuda é que as pessoas carregam, dentro de si mesmas, forças que atuam em sentido contrário aos seus desejos – mais uma vez, diz Mezan, uma diluição de um conceito fundamental da psicanálise: os mecanismos de defesa. Talvez seja o próprio fundador da psicanálise quem forneça os melhores instrumentos críticos para entender do que trata O Segredo. No clássico Totem e Tabu, Sigmund Freud examina com rigor os mecanismos do pensamento mágico que seria peculiar aos povos primitivos e às crianças. O princípio fundamental da magia, segundo Freud, é a "onipotência do pensamento" – a idéia de que se pode conseguir qualquer coisa apenas pela força do desejo. Essa concepção corre ao lado do animismo, a doutrina segundo a qual todas as coisas, sejam elas animais, vegetais ou minerais, carregam uma alma. Essas são crenças ancestrais que, sempre de acordo com Freud, persistem na vida moderna "sob a forma degradada da superstição". O Segredo cabe perfeitamente no figurino do pensamento mágico. O livro não fala mais em "alma", preferindo termos laicos roubados da física, como "energia" ou "magnetismo" – mas, sob o novo vocabulário, subsiste a idéia de que a realidade física que cerca o homem é dotada de consciência. O livro é insistente nesse ponto: o universo está sempre ouvindo o que as pessoas pensam. E esses pensamentos podem mudar qualquer coisa. São, nos termos de Freud, onipotentes. "Todas as grandes tradições religiosas acabam se distanciando do pensamento mágico. No judaísmo, isso ocorre, grosso modo, com os profetas hebraicos, que criticavam os sacrifícios como modo de barganha com Deus", diz o teólogo Luiz Felipe Pondé, da PUC de São Paulo. No judaísmo e depois no cristianismo, a relação com Deus passou a ser regida pela ética, não pelo toma-lá-dá-cá (ainda que algumas vertentes pentecostais retornem ao pensamento mágico na sua "religião de resultados"). O Segredo, embora ensine a barganhar com o universo, busca amparo na sabedoria religiosa menos imediatista. Um aforismo de Buda ("Tudo o que somos é resultado do que pensamos") é citado no livro, embora o desapego às coisas terrestres próprio do budismo seja esquecido. E o "método criativo" da obra é baseado em uma frase de Jesus que aparece, com pequenas variações, nos evangelhos de Mateus e Marcos: "Tudo quanto pedirdes em oração, crendo, recebereis". É uma miscelânea que não faz sentido aos olhos dos estudiosos da religião. "Essa tentativa de transformar Jesus e Buda em gurus do pensamento positivo é risível", diz Pondé. O recurso à tradição cristã não é inédito na auto-ajuda. Um dos "clássicos" do gênero, O Poder do Pensamento Positivo, de 1952, foi escrito por um pastor metodista, Norman Vincent Peale. Expressão da ética protestante de que fala o sociólogo alemão Max Weber, Peale fazia uma relação direta entre fé e prosperidade, com recurso a outras tantas máximas da Bíblia (por exemplo, "se Deus está por nós, quem pode estar contra nós?", da epístola de São Paulo aos Romanos). O Segredo é mais parcimonioso na citação das escrituras e busca dar um verniz "científico" a suas proposições. Seu apelo constante à positividade, contudo, só encontrará eco nos leitores dispostos a dar o salto cego da fé, abraçando a idéia mágica de que os pensamentos transformam o mundo. E transformam mesmo – mas só os muito originais e desde que convertidos em ação.
O fato cabal é que essa lei não existe. "O pensamento por si só não altera o mundo físico, mas as pessoas têm maior probabilidade de obter sucesso se mantiverem uma atitude positiva. Esse é um fato psicológico bastante simples", diz Gustav Jahoda, da Universidade de Strathclyde, na Escócia, autor de A Psicologia da Superstição. Há ainda um último ponto em que a analogia entre Geller e O Segredo se revela pertinente: assim como os truques do israelense pertencem ao repertório comum de qualquer mágico, O Segredo também não traz nada de propriamente original. Ele apenas recicla, de forma muito eficiente, é verdade, obras anteriores de auto-ajuda – que, por sua vez, já requentavam idéias bem mais complexas do universo da economia, da psicologia, da psicanálise e da religião.
Fonte: Rev. Veja, Jerônimo Teixeira, ed. 2002, 4/4/2007.
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