A saia justa do governador Serra
Um kit eleitoral básico, com direito a lote de camisetas e santinhos, para o político que se dispuser a estar na pele do governador José Serra (PSDB) nos próximos dias. Embora o constrangimento ande um artigo de luxo na política brasileira, não deve ser confortável para um ex-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) dos idos tempos em que o movimento estudantil tinha importância política no cenário nacional ser empurrado para a situação em que está. A Universidade de São Paulo (USP) está em greve parcial. Os funcionários aderiram. Os professores tomaram ontem o mesmo caminho. E estudantes ocupam, há 20 dias, o prédio da reitoria. A Polícia Militar de São Paulo tem em mãos uma ordem da Justiça de reintegração de posse e tenta negociar. Os alunos se recusam. Rejeitaram propostas do governo e da reitora Suely Vilela. Mantendo-se o quadro, em algum momento dos próximos dias será sob o governo Serra que a PM invadirá o prédio para colocar os meninos para fora. Sabe-se lá com que intensidade de resistência ou violência. Essa é a preocupação que está no ar. Circula um manifesto de professores da USP, já com 300 assinaturas, em que eles rejeitam "qualquer ação violenta de desocupação do prédio, tendo em vista a justeza de sua causa política em defesa da universidade pública". Os signatários são pesos pesados da intelectualidade brasileira, assim como o foi o próprio Serra antes de trilhar o caminho da política: Antonio Cândido, Alfredo Bosi, Marilena Chauí, Leda Paulani, Maria Victoria Benevides etc. Existem, no entanto, mais coisas a tornar essa reintegração uma missão de alto desgaste político. O movimento dos alunos é pacífico e organizado. Eles cuidam do patrimônio público e são muito mais "caretas" do que os do tempo de Serra líder estudantil. Vale a pena ler matéria de Laura Capriglione publicada na edição de ontem da "Folha de S. Paulo", intitulada "25 anos depois, estudante leva a mãe para a invasão" (os 25 anos a que ela se refere não é dos tempos de Serra, mas da revitalização do movimento estudantil, no final do período militar, que se iniciou justamente na USP). É um padrão de ocupação muito mais organizado, semelhante aos do Movimento Sem Terra (MST) e do Movimento dos Sem-Teto: não há depredação; existe uma divisão do trabalho que mantém a ocupação como uma decisão coletiva, com responsabilidades repartidas para a alimentação dos estudantes e também para a manutenção do prédio ocupado. O computador tirado do lugar reapareceu, assim como um documento secreto, que foi o estopim do pedido de reintegração.
Quem quer entender a
recente politização dos jovens universitários deve prestar bastante atenção
nesse movimento. Laura Capriglione descreve uma situação onde ninguém manda
mas todos se entendem. É de se perceber que o PCdoB, que manteve hegemonia
sobre o movimento estudantil durante muito tempo, não apareceu nesse
episódio, como também não se identificam grupos ligados a outros partidos.
Pelo padrão de ocupação, a referência deles parece ser a do MST, que para
essa geração constitui a única organização com militância política e social
efetiva e talvez a única que tenha uma perspectiva de mudança
revolucionária.
Decretos não foram
digeridos pela comunidade A hegemonia da Ação Popular sobre o movimento estudantil no período pré-ditadura e a do PCdoB no período pós-ditadura, aliás, foram obtidas pelo fato de que eles se constituíram, para a maioria dos estudantes, como uma perspectiva de mudança. O idealismo é parte da juventude politizada. A AP, da qual Serra fazia parte quando se candidatou a presidente da UNE, foi um "racha" da Juventude Universidade Católica (JUC), um movimento pastoral da Igreja que, embora com alguma representação nas universidades, não tinha um componente revolucionário que atraísse a juventude. Uma das expoentes da AP, Madre Cristina (citada há algumas semanas nesta coluna), disse, em entrevista no "Teoria & Debate" do 1º trimestre de 1990: "A JUC, no início, era um movimento que rezava muito, fazia muito retiro e muita contemplação. Ponto final. Eu achava que a JUC tinha que participar do movimento político, porque sempre acreditei que a gente devia lutar pelo socialismo e esse socialismo tinha que ser democrático e cristão". Isso foi em 1958. O racha da JUC, mais tarde, fez o "Grupão", que reunia os grupos de São Paulo, Belo Horizonte . Essa foi a origem da AP. Mas, antes de se tornar AP, o "Grupão" conseguiu a hegemonia do movimento estudantil. Em 1961, quando o presidente João Goulart assumiu, a facção fez presidente da UNE Aldo Arantes. Elegeu Vinícius Caldeira Brandt em 1962 e estava sem nome para a gestão de 1963. José Serra não era da turma. "Mas nós descobrimos que ele era inteligente e que, se déssemos uma engomada nele, ele toparia", contou Madre Cristina. Foi assim que Serra tornou-se um dos fundadores da Ação Popular. E presidente da UNE. E foi nessa condição que assistiu ao golpe militar de março de 1964. A UNE foi colocada na ilegalidade e sua sede, na praia do Flamengo, no Rio, incendiada. Perseguido, Serra exilou-se na França, e depois no Chile. É essa a biografia do governador que tem diante de si um problema dessa ordem e várias questões que remetem ao conceito pleno de autonomia universitária. A reitora, como administradora de uma instituição pública, tinha que pedir a reintegração, sob pena de ser punida por omissão. Mas a PM no campus fere a autonomia? Em 1968, por exemplo, quando o regime ditatorial endureceu ainda mais, a invasão da Universidade de Brasília por tropas militares foi o sinal definitivo dado pelo governo de que a autonomia acabara. Hoje, como seria interpretada uma invasão do prédio da reitoria pela polícia? Afinal, existem fatos cuja representação política fala mais do que a intenção efetiva de seus atores.
O ex-presidente da UNE
está numa enrascada. E embora desfile argumentos técnicos para todas as
medidas que tomou em relação às universidades estaduais desde que assumiu o
governo, o fato é que seus decretos foram muito mal digeridos pela
comunidade acadêmica. Não existe solução para a crise que não passe por um
debate democrático com toda ela, não apenas com os meninos que dormem na
reitoria. Fonte: Valor Econômico, Maria Inês Nassif, 24/5/2007.
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