Universidades
e ensino superior no Brasil: rumos e rumores
Não é raro escutar de alguns historiadores que todo virar de século, ou de milênio, se deixa marcar por profundas crises, manifestadas nas múltiplas dimensões da vida humana, na política, na econômica, na cultural, na ética e, em particular, no âmbito do conhecimento, no plano das artes, das ciências e da filosofia. Curiosamente, é possível afirmar que é na e pela crise que o novo emerge, que o inesperado desponta, que o não prognosticado se revela. Por isto mesmo é que existe a crise: ela não somente denota a existência do novo, mas também se estabelece como virtude relativa à força do próprio desabrochar desse novo. Tomada em sua positividade, crise pode significar risco, e no risco reside não apenas o devir de algo relativamente revolucionário ou inédito, mas também a existência do derradeiro, do desperdício da oportunidade, ou seja, a perda de uma determinada possibilidade. As universidades brasileiras, sobretudo as públicas, estariam também vivenciando o rastro destas crises? Lamentavelmente sim. Para ilustrar ou tentar provar de modo mais rigoroso esta assertiva, consumiríamos aqui muitas e muitas páginas. Vamos nos deter, portanto, em apenas um de seus aspectos, em especial levando em conta recentes rumores advindos de diversas associações de classe e de meios de comunicação em torno dos rumos das universidades brasileiras: o novo governo eleito – cujos ideais mais amplos também compartilho – estaria por realizar encaminhamentos em torno do deslocamento destas instituições do âmbito do Ministério da Educação (MEC) para o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Grosso modo, isto equivaleria afirmar que as universidades públicas passariam a ser política e financeiramente gestadas e reguladas não mais por lógicas e vertentes necessariamente educacionais, voltadas à integração entre as atividades de ensino, pesquisa e extensão, mas agora articuladas a princípios promotores do desenvolvimento científico, tecnológico e, quem sabe, aderidas ao discurso da inovação e da competitividade. De antemão, é importante ressaltar que a pesquisa levada a efeito nas universidades brasileiras, predominantemente nos programas de pós-graduação, se justifica não de modo isolado, a partir de uma possível e necessária eficácia em face do desenvolvimento da ciência e da tecnologia da Nação, mas como manifestação da dialógica que determina o próprio sentido de existência das universidades em nossa sociedade: a integração entre ensino, pesquisa e extensão. Sob outras palavras, há uma forte interdependência entre estes três pilares da universidade, a tal ponto que sua dissociação implicaria perda de identidade social e mesmo legal destas instituições de ensino superior. O ensino universitário, portanto, é qualificável não apenas a partir do cotidiano circunscrito à sala de aula, mas também por aquele em que se desenvolve o espírito investigativo – através do qual se pesquisa -, e, ainda, na própria objetivação destes saberes quando no estreitar dos vínculos entre a instituição universitária e a sociedade como um todo, ou seja, pela via das atividades de extensão. Conjugados, ensino, pesquisa e extensão constituem espaços, a um só tempo, de elevado potencial pedagógico, rico em possibilidades de desenvolvimento humano e social, mesmo que, em alguns momentos, se verifiquem entraves que dificultam a integração desejada ou a efetividade de uma ou de outra daquelas esferas. Neste cenário, a universidade pública vem cumprindo papel de elevada importância social e histórica, mesmo sob o impacto de políticas que, em vez de se pautarem em sua consolidação e expansão, acabam por torná-la frágil e inerte ao minguarem suas verbas e, concomitantemente, flexibilizarem as oportunidades de atuação do setor privado, também, em nível do ensino superior. Há cerca de 20 anos, o ensino dito de terceiro grau público respondia por aproximadamente 60% das matrículas, enquanto que o setor privado a não mais do que 40%, quadro contrastante ao atual, no qual este último chega a atender cerca de 70%, enquanto que as instituições públicas federais e estaduais, em meio aos impactos de uma política governamental a elas desfavorável, respondem pelos 30% das matrículas restantes. Assim, a propalada expansão do ensino superior brasileiro (veja-se que entre 1994 e 1999 se constata um aumento de 42% das matrículas em cursos de graduação) ocorre, de um lado, pela debilitação das instituições públicas, pela erosão de seus recursos e prestígio social e, de outro, pela oxigenação das instâncias privadas que, salvo algumas exceções – em especial as confessionais –, pouco contribuem para o desenvolvimento científico do país, a não ser "coisificando" a educação, uma vez que a tratam como mercadoria a ser concebida, gerida e comercializada de acordo com as leis do mercado. Finalizando, registra-se aqui a nossa perplexidade sobre aqueles rumores que afetam os rumos das nossas universidades: por que fazê-la migrar de um ministério a outro, colocando em risco sua identidade e funções sociais, e por que não fortalecê-la enquanto instância educacional, necessariamente de caráter público? Por que divorciá-la de uma esfera formuladora e executora de políticas educacionais, para ser assistida por outra dimensão que hoje, em decorrência das privatizações das empresas estatais, ocorridas ao longo dos anos 90, não mais dispõe, se quer, de centros de pesquisas orientados segundo interesses públicos? ... Que então, em meio à crise, e neste sentido em face da crise da própria universidade pública brasileira, o novo governo busque superar o derradeiro, não desperdiçando possibilidades, não perdendo, por assim dizer, a oportunidade de tratar o Ensino Superior público com a mesma importância e seriedade que, de certo, dispensará à Educação Básica. Há de se esperar, portanto, não o distanciar entre a universidade e os demais níveis e modalidades de ensino, mas o estreitar crescente e permanente de tais vínculos.
Fonte: Folha Dirigida, 17/12/2002 - Rio de Janeiro, RJ. |