Revolução na sala de aula
No projeto de se
transformar em superpotência, a China
copia tudo o que deu certo no Ocidente e investe na
formação de um exército de cientistas
Graciosos,
alegres e esforçados, os pequenos Wang Yu Jiao e Huang Kai Zhao,
mostrados na página anterior, são o retrato de uma China que passa por
uma revolução em sala de aula sem precedentes no mundo. Ela é única por
combinar velocidade e dimensão espantosas a um sistema de meritocracia
que alia os princípios da livre competição à mão bem visível do Estado –
um híbrido tipicamente chinês. Kai Zhao, o garotão boche-chudo, e Yu
Jiao, a menina de trancinhas, ambos de 9 anos, tornaram-se celebridades
do mundo escolar ao conquistar, respectiva-mente, o primeiro e o segundo
lugares no campeonato nacional de caligrafia chinesa. |
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TREINADOS PARA COMPETIR
Aos 9 anos, Huang Kai Zhao (à esq.) e Wang Yu
Jiao são campeões no prestigiado concurso nacional de caligrafia: sob
pressão, as crianças varam madrugadas para manter a liderança no ranking
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O concurso
mobiliza cerca de 3 milhões de crianças e jovens que varam madrugadas e
ficam com calos nas mãos para traçar no papel um ideograma perfeito,
prática que exige, além de habilidade natural, muito treinamento e
disciplina. Eles são pressionados pelas escolas para conseguir uma boa
colocação no ranking nacional. Os vencedores ganham aulas extras e são
aplaudidos em cerimônias que reúnem estudantes do país inteiro. "É ótimo
ser o número 1 na China", orgulha-se Kai Zhao, o campeão. O estímulo à
competição e ao aprimoramento dos talentos individuais ajuda a entender
a revolução na educação chinesa, totalmente dirigida para transformar o
país numa fábrica de gente qualificada e competitiva para atuar na
economia global. O cientista Guo Huadong, secretário-geral da Academia
Chinesa de Ciências, explica o esforço de forma concisa: "A China
depende disso para ser a maior economia do mundo".
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CÉREBROS EM EVIDÊNCIA
O professor universitário Zhong Fun Liu compõe a elite de cientistas que
dispõem de mais verbas do governo para fazer pesquisas em áreas de alta
tecnologia: ao receber uma proposta financeira irrecusável e a garantia
de ter sob seu comando um laboratório de primeira linha, ele decidiu
retornar à China depois de uma temporada de dez anos no Japão
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A velocidade da
revolução educacional acompanha o ritmo do espantoso crescimento
econômico. Em 1976, a China emergia do período de trevas da Revolução
Cultural (que, como se sabe, era inteiramente anticultural), durante o
qual a atividade intelectual do país ficou paralisada, professores
universitários foram forçados a criar gado e as escolas se tornaram
centros de adoração ao líder Mao Tsé-tung (veja relato). Nessa época, os
índices de analfabetismo beiravam a casa de 60% – um desastre para um
país com aspirações a potência mundial. Em apenas três décadas, a China
conseguiu erguer um sistema de ensino eficiente o bastante para emplacar
duas de suas universidades entre as melhores do mundo
(segundo |
rankings mundiais que medem
a produção acadêmica), formar nada menos que 1,2 milhão de pesquisadores
com doutorado e reduzir o analfabetismo a 4%. Isso num universo de
dimensões chinesas. As salas de aula do país absorvem 240 milhões de
estudantes de todos os níveis – uma vez e meia a população inteira do
Brasil. É a maior concentração de alunos do mundo. Conclusão: mesmo
partindo de uma situação de atraso catastrófico, há três décadas, e
lidando com as complicações de uma engrenagem de proporções gigantescas,
a China conseguiu alcançar uma produção acadêmica expressiva em todos os
níveis de ensino. Está na frente do Brasil. |
Um dos pontos que mais
chamam atenção na fórmula chinesa é a concentração de esforços na formação
de gente capacitada a produzir alta tecnologia. O planejamento é de longo
prazo. Nos próximos quinze anos, por exemplo, o país terá dobrado a fatia do
PIB que destina à área de pesquisa e desenvolvimento, chegando a 2,5%. O
investimento é dirigido para as áreas da ciência teoricamente mais capazes
de resultar em inovações tecnológicas de aplicação comercial. São onze as
áreas escolhidas, entre elas a nanotecnologia e a tecnologia da informação.
Outro método comum é distribuir dinheiro farto aos cientistas cujos
laboratórios apresentam produção acadêmica de alto nível, segundo medidores
objetivos. Isso desperta uma competição acirrada. O professor Zhong Fun Liu,
44 anos, chefe em um laboratório na Universidade de Pequim, é um dos 164
cientistas tidos como "de elite" na China – o que o faz receber mais verbas.
Sua rotina para manter a dianteira ilustra o que se passa no cotidiano do
mundo acadêmico chinês. Zhong chega à universidade às 7h30 e só deixa o
laboratório perto da meia-noite, inclusive aos sábados. "Quem não trabalha
duro na China fica para trás – e sem dinheiro para a pesquisa", resume.
Outra estratégia
que impulsiona o progresso do ensino é atrair de volta pessoas que
deixaram o país, sobretudo nas décadas de 70 e 80, para estudar e
trabalhar no exterior. Elas saíram de uma China na qual o brilhantismo
era malvisto (e mesmo punido, durante os anos da Revolução Cultural) e
onde um cientista no topo ganhava no máximo o equivalente a 100 dólares
por mês. Estão desembarcando num país inteiramente mudado. Na novíssima
China, os bons cientistas ostentam status de celebridade. Recebem
convites para participar de programas de televisão de grande audiência e
chegam a ser parados na rua para distribuir autógrafos. O salário médio
de um pesquisador chinês é hoje de 2 000 dólares. |
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MÁQUINA UNIVERSITÁRIA
A cena mostrada na foto acima, em que aparece uma turma de alunos
recém-formados na Universidade de Anhui, prolifera por toda a China: nos
últimos cinco anos, o número de jovens na faculdade quadruplicou. Essa
expansão só foi possível porque o governo começou a cobrar mensalidades.
O desafio agora é promover um salto de qualidade no nível de ensino |
Além do salário, pesam as boas condições de trabalho e o
prestígio, como ocorreu com Fei Luo, 40 anos, doutor em fisiologia. "Nos
Estados Unidos, eu era apenas mais um cientista. Na China, estou entre
os primeiros", diz Luo. A academia não é o único destino para os que
retornam. Eles também recebem incentivos para abrir a própria empresa,
como acontece em Suzhou, fervilhante pólo industrial a 70 quilômetros de
Xangai. Ali residem 1 000 chineses que têm no currículo uma passagem
pelo exterior. Em comum, eles voltaram à China motivados por subsídios
para a compra da casa própria e generoso alívio nos impostos para montar
empresas. Todas voltadas para o mercado high-tech. |
A China reúne tantas
especificidades que uma comparação com o Brasil, ou qualquer outro país,
pode parecer forçada. Visitar um grande centro de ensino permite vislumbrar
um dos muitos paradoxos chineses: os professores são bons, os equipamentos,
modernos, e os alunos, comparáveis, em padrões de comportamento, aos de
países desenvolvidos. Mas existe, sim, o controle da livre expressão típico
dos regimes autoritários, a internet é censurada e não se fala em assuntos
tabus, como a explosão estudantil que redundou no massacre da Praça da Paz
Celestial, há dezessete anos. O próprio ensino ainda padece de excesso de
disciplina e verticalismo, que limitam o risco e a inventividade, fatores
que contam no sucesso das grandes universidades ocidentais. Ainda assim,
sobressaem os méritos que merecem ser ressaltados. Criar mecanismos para
esculpir talentos individuais e recompensá-los é um deles. Outro é
estabelecer um laço estreito entre a produção acadêmica e a realidade da
economia – no caso da China, com maciço investimento em cérebros voltados
para a área tecnológica. A terceira lição chinesa é a importação, sem
restrições ideológicas, de tudo o que deu certo nos países que têm mais
sucesso na formação de capital humano. É por essa razão que o governo
continua a enviar cientistas para estudar nos Estados Unidos e na Europa.
Por isso, a China também decidiu enxugar em 40% o número de universidades
públicas do país e cobrar mensalidades dos estudantes nas faculdades
públicas. "Aprendemos com os melhores do mundo: não dá para ter um ensino
superior gigante e arcar com os custos de tantos alunos", diz Guo Xiangyuan,
do Ministério da Educação chinês.
"LUCRO, LUCRO!"
A executiva Cascade Huan é diretora numa das escolas de negócios mais
procuradas do país, a Cheung Kong Graduate School of Business: com
currículo semelhante ao das americanas, tem como alunos diretores de
grandes empresas e quadros do alto escalão do Partido Comunista. Ninguém
quer ouvir falar de Marx. "O objetivo dos chineses é aprender a ganhar
dinheiro" |
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Dentro da tradição
oriental de investir tudo na educação da prole, diz-se que o chinês de
classe média tem três sonhos: casa própria, carro e ensino no exterior
para o filho. Quando não é possível mandar o filho estudar fora, traz-se
o ensino de fora para o filho. Um exemplo é o sucesso da rede de escolas
de modelo canadense aberta pelo empresário Francis Pang, que tem a
cidadania dos dois países. Em uma visita a um desses colégios, em
Pequim, tem-se a sensação de estar em uma típica escola do Canadá. A
literatura de sala de aula é canadense, só se ouve o inglês nos
corredores e os estudantes usam camisetas com dizeres como "I love
Niagara Falls". |
Pang, que
acrescentou um original toque decorativo ao ambiente espalhando réplicas
gigantes de clássicos da literatura mundial, diz: "Importei o método do
Canadá. A procura é gigantesca". |
Outro sinal de
popularidade do modelo estrangeiro na China é a proliferação dos cursos de
negócios para executivos – os MBAs. Eles foram autorizados pelo governo
apenas em 1991. São hoje uma febre nacional. De acordo com um estudo da
consultoria McKinsey, até 2010 a economia chinesa demandará pelo menos 75
000 executivos de padrão internacional. Hoje o país tem apenas 5 000
profissionais assim para ocupar cargos de comando. Para tentar suprir a
demanda, os chineses fizeram parceria com as melhores escolas de negócios do
mundo, entre elas a da Universidade Harvard, a do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (MIT) e a Wharton – esta última patrocinada pelo bilionário Li
Ka Shing, de Hong Kong, que ocupa a décima colocação no ranking dos homens
mais ricos do mundo, feito pela revista Forbes. A escola do bilionário – a
Cheung Kong Graduate School of Business – está instalada em um moderno
edifício no qual ele, coerentemente, também mandou construir um shopping
center, com lojas de grifes como Ermenegildo Zegna e Louis Vuitton. É nesse
ambiente que os alunos assimilam o jargão corporativo da espécie e focam nos
resultados. "O objetivo dos chineses é aprender a ganhar mais dinheiro",
resume a diretora Cascade Huan. Numa das aulas, um professor pergunta: "O
que vocês mais querem?". Os alunos respondem num coro entusiasmado: "Lucro!
Lucro! Lucro!".
É estranho como um
país tão voltado para o "lucro, lucro, lucro" ainda tenha resquícios do
velho comunismo em algumas de suas práticas. No ambiente universitário,
por exemplo, as escolas de marxismo ainda são responsáveis por cinco
disciplinas "públicas" obrigatórias para todas as carreiras. Nelas, os
estudantes recebem informações sobre as últimas diretrizes do Partido
Comunista e lêem O Capital, de Karl Marx. Outro sinal da velha China
está presente em relatos de professores que se sentem vigiados e com
medo de perder o emprego caso falem além da conta. "Sei que posso
receber uma advertência se disser algo que contrarie os interesses do
partido", diz um professor da Universidade de Pequim. Ele lembra
que |
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EDUCAÇÃO S/A
O empresário Francis Pang, que tem negócios nas áreas têxtil e de
eletrônicos, farejou uma oportunidade de diversificar investimentos
construindo uma rede de escolas inspirada no modelo canadense: ele, que
viveu na China nos tempos da Revolução Cultural, diz ainda ficar
surpreso com o fascínio chinês pela cultura ocidental. "A China perdeu o
preconceito" |
um colega seu foi demitido por
ter dado um tom "crítico demais" à análise sobre Mao Tsé-tung. O medo
empobrece a produção acadêmica chinesa, sobretudo na área das ciências
humanas. Os números mostram que a China ainda precisa avançar muito
nesse setor para obter o destaque desejado no cenário internacional. |
O fervor patriótico
também é cultivado sistematicamente. Na escola Shijia, uma das melhores no
bom sistema público da China, crianças de 10 anos assistem a um filme sobre
a importância das fontes de energia para o projeto nacional de tornar-se a
maior potência do planeta. Outra classe aprende que os chineses criaram as
tecnologias que resultaram no relógio mecânico movido a água e na pólvora. A
exaltação dos feitos chineses, o culto à competição, o incentivo à
meritocracia e a valorização do estudo são traços profundamente arraigados.
Foram os chineses, afinal, que inventaram o concurso público – o conceito de
que o acesso à burocracia deveria ser conseguido por capacidades
intelectuais testadas em provas. Como tantos outros feitos, isso é creditado
ao primeiro imperador, Qin Shi Huangdi, nascido em 259 a.C. Por volta do
século VII, já estava consolidado o sistema de exames para o serviço público
imperial, o Keju, cuja concorrência nunca foi igualada por nenhuma outra
prova no mundo: no século XIX, chegou a ser de uma vaga para 1 milhão de
candidatos. O desempenho nesses testes era a principal via de acesso a
cargos públicos, bons salários, prestígio e poder numa sociedade altamente
hierarquizada. Os vencedores tornavam-se mandarins, palavra que ganhou
universalidade, como sinônimo de casta influente (também é assim que se
define, nos idiomas ocidentais, a "língua comum" dos chineses). Hoje, a
China moderna sonha reaver seu lugar na história colocando em prática um
velho ditado confucionista que exalta a importância do estudo: "Se quiser
ter prosperidade por um ano, cultive grãos. Por dez, cultive árvores. Mas,
para ter sucesso por 100 anos, cultive gente".
O Brasil
está atrás
A
China vai melhor que o Brasil nos principais indicadores que
medem o nível de educação e a produção científica*
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China |
Brasil |
Taxa de analfabetismo |
4% |
10% |
Taxa de jovens na
universidade |
21% |
19% |
Graduados em carreiras
tecnológicas (por ano) |
1 milhão |
94 000
|
Artigos publicados em
periódicos científicos internacionais (em relação à
produção mundial) |
5,9% |
1,8% |
Ph.D. (por 100 000
habitantes) |
88 |
63 |
|
* Últimos
números disponíveis, relativos aos anos de 2004 e 2005
Fontes: Ministério de Educação da China, MEC, ISI
e Unesco |
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"PERDI DEZ ANOS DA MINHA VIDA"
Em
1966, o professor Wang Sen Yui tinha 11 anos e conta que sua
vida virou "uma história de horror". Era o início da Revolução
Cultural na China. Wang foi separado dos pais e sua escola
trocou as aulas por rituais de adoração a Mao Tsé-tung. A
história do professor é semelhante à de milhões de chineses de
sua geração. São raros, no entanto, os que falam tão abertamente
sobre o assunto, como ele fez em seu relato a VEJA.
"Tinha uma
infância feliz até a China embarcar na Revolução Cultural. O
sítio onde meus pais plantavam milho foi confiscado pelos
soldados comunistas, e eles receberam o rótulo de burgueses por
terem sido proprietários de terra. Foram mandados a uma aldeia
para trabalhar com os camponeses locais. Meus pais eram
submetidos a torturas constantes e forçados a desfilar na praça
da cidade com uma placa pendurada no pescoço: 'Sou burguês'. Eu
fui morar com um tio em Pequim, onde continuei a freqüentar a
escola. Ela tornou-se um braço da revolução. Quem dava aula eram
os próprios alunos ou os camponeses mobilizados por Mao
Tsé-tung. Trancávamos os professores dias a fio numa sala
minúscula. Dávamos a eles um pedaço de pão por dia. Eram
retirados da clausura apenas para passar por um ritual de
humilhação. Nós os obrigávamos a usar chapéus de burro e
imobilizávamos seus braços, para espancá-los. Jamais tive uma
aula de física ou de química. A biblioteca foi queimada. Minha
rotina escolar consistia em sair à rua rasgando cartazes
coloridos, resquícios do regime burguês, e decorar o livro
vermelho de Mao Tsé-tung. Repetíamos em voz alta, olhando para a
foto do grande líder: 'Preferimos o capim de um país socialista
à semente do capitalismo'. Quando o pesadelo terminou, em 1976,
entrei na universidade e voltei a morar com meus pais. Eles
tinham vergonha de mostrar as cicatrizes deixadas pelas
torturas. Eu nunca superei a dor dessas lembranças. Perdi dez
anos da minha vida. A China também." |
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Fonte: Rev. Veja, Monica Weinberg, Especial
China, ed. 1968, 9/8/2006. |