A ressaca latino-americana
A América Latina se
transformou na região mais instável - em termos
Foi aqui, sob o regime de Pinochet e na Bolívia, que pela primeira vez se colocaram em prática as políticas que privilegiam o ajuste fiscal, em detrimento do crescimento econômico e das políticas sociais. Depois disso é que Ronald Reagan e Margareth Thatcher assumiram as bandeiras de renascimento do liberalismo e as tornaram hegemônicas no capitalismo ocidental. Para isso contribuiu a adesão – inicialmente na França e na Espanha – dos partidos social-democratas. Na América Latina, depois de iniciada na direita, a adesão ao novo modelo se estendeu às forças nacionalistas – o peronismo na Argentina, o PRI no México – e às social-democratas – o Partido Socialista no Chile, Ação Democrática na Venezuela, os tucanos no Brasil. Quanto o modelo parecia que funcionava, a crise mexicana de 1994 prenunciava seus limites e problemas. A crise brasileira de 1999 e finalmente a argentina de 2001 definiram o esgotamento definitivo do modelo neoliberal. Depois de mais de uma década de aplicação, o continente entrou em um processo recessivo, do qual ainda não saiu, sem desenvolvimento social e sem estabilidade política. A razão da instabilidade é a insistência do velho modelo em sobreviver, incrementando as crises sociais e o enfraquecimento dos sistemas políticos existentes, e as dificuldades para o surgimento de um novo modelo. O mapa do continente se povoa cada vez mais com mobilizações populares revelando o descontentamento com governos que insistem na manutenção do velho modelo. Mais de dez governos foram substituídos por mobilizações populares, dentro da legalidade. A única tentativa de golpe militar foi na Venezuela, mas foi rapidamente derrotada. A região andina é um exemplo significativo, porque os movimentos sociais camponeses e indígenas têm sido os protagonistas mais importantes da resistência ao neoliberalismo, e nessas regiões esses movimentos têm um peso determinante nas mobilizações populares. Enquanto os movimentos sindicais foram duramente afetados pelo desemprego e pelas políticas de precarização das relações de trabalho, os movimentos camponeses mantiveram mais consistência e continuidade nas suas mobilizações. Por isso o Equador e a Bolívia são os epicentros mais agudos da crise latino-americana. O Equador, pela primeira vez diante das crises anteriores, encontra um governo que representa as reivindicações do movimento popular e pode se legitimar, ao contrário dos três últimos presidentes eleitos, dos quais nenhum terminou seu mandato. Na Bolívia, a situação é mais grave e mais complexa, porque se superpõem a deslegitimação do governo atual – vice-presidente que assumiu com a destituição de Sanchez de Losada - com grande mobilização popular a favor de uma Assembléia Constituinte e da renacionalização das empresas de gás, com movimentos empresariais separatistas em Santa Cruz de la Sierra e em outras províncias. É por isso tudo também que a América Latina é o palco da mais ampla aliança de centro-esquerda, com um projeto de integração regional, diferenciado do projeto da Alca, este liderado pelo governo dos EUA. Um campo que pode ir ainda além dos que atualmente o compõem - Brasil, Argentina, Uruguai, Venezuela, Cuba -, incorporando o México, o Equador, a Bolívia, a Nicarágua. Nunca as condições foram tão propícias à integração continental e nunca houve um marco internacional tão favorável à ruptura com o modelo que marcou o passado recente dos países da América Latina e à construção de projetos alternativos. Garcia Márquez, quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, dizia que se reconhece o direito e a capacidade da América Latina de construir sua própria arte, sua música, sua literatura, seu cinema. Que nos deixem construir o nosso próprio caminho também na política, na economia, no modelo de sociedade.
Fonte: Ag. Carta Maior, Emir Sader, 31/05/2005. |