Eles agora são "republicanos"
 

Os petistas batem no peito dizendo ser "republicanos".
Mas isso não quer dizer absolutamente nada
 

"Herdamos uma máquina administrativa ineficiente, desprovida, em boa parte, do sentido republicano."
Presidente Lula, em 10 de dezembro de 2004

 

Em dezembro último, uma palavra imiscuiu-se nos discursos dos próceres petistas, em sua forma adjetivada – "republicano". Salvo engano, o primeiro a empregá-la foi o professor Luizinho, líder do governo na Câmara. Ele disse que uma operação da Polícia Federal colocou em risco o processo republicano. O presidente Lula não perdeu a deixa e, numa reunião ministerial realizada dias depois, afirmou: "Herdamos uma máquina administrativa ineficiente, desprovida, em boa parte, do sentido republicano, sem vocação para realizar políticas em proveito da maioria". No mesmo mês de dezembro, Lula lançou o "Pacto de Estado em favor de um Judiciário Mais Rápido e Republicano". A porta estava aberta para que os petistas usassem o termo com a prodigalidade com que os coronéis nordestinos andam distribuindo cartões do Bolsa-Família. Um dos que mais reincidem é o ministro da Educação, Tarso Genro, aquele que há poucos dias posou ao lado do ditador cubano (e republicano) Fidel Castro. Genro disse que a política de cotas nas universidades era "republicana, inclusiva, democrática".

 

"A ação da PF foi conduzida politicamente por uma facção da corporação, à revelia do comando, colocando em risco as instituições, o processo republicano e o crescimento do país."
Deputado Professor Luizinho, em 2 de dezembro de 2004, referindo-se à Operação Sentinela, que lançou suspeitas sobre empresa de propriedade do ministro das Comunicações, Eunício Oliveira

 

 

Como o sistema de governo brasileiro deixou de ser monárquico em 1889, quando foi proclamada a República, e não parece haver no horizonte uma ameaça de reinstauração do antigo regime capitaneado pela família Orleans e Bragança, é intrigante a adoção do adjetivo pelos petistas e a insistência na sua utilização. Uma escarafunchada nos jornais mostra que o motivo não é insondável. O pessoal do PT brande a palavra em resposta ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em artigo publicado num jornal paulista, em outubro do ano passado, sobre a renhida campanha eleitoral para a prefeitura de São Paulo, FHC comentou que havia "sinais inquietantes de perda do sentimento genuinamente republicano de conduzir o processo político". Resumindo: porque o tucano disse que os petistas não são republicanos, os petistas começaram a repetir tal qual o corvo do escritor americano Edgar Allan Poe: "Somos, sim; somos, sim".

As palavras têm história, e a de "republicano" é longa, complicada e com final infeliz. Remonta à Roma Antiga, quando o regime da res publica – sem um único soberano e de atenção à coisa pública, ao bem comum, à comunidade – substituiu o dos reis, a mona archia – o governo de um só homem. De palavra que designava oposição à monarquia, a palavra "república" passou, nos séculos seguintes, a conceituar qualquer sistema, inclusive o monárquico, que se contrapunha a governos injustos. Mais adiante, no Renascimento, por meio de Maquiavel, "república" tornou-se a denominação de um sistema aplicável apenas a pequenos territórios, o que perdurou até o século XVIII e deu sustentação à criação das repúblicas que compunham a colcha de retalhos do que mais tarde seria a Itália. Com a Revolução Americana e a Francesa (que foi mais "republicana" na época do Terror), essa noção é subvertida. A palavra "república" perde a conexão com a territorialidade – e, no caso da Americana, liga-se à democracia representativa.

"É republicana, inclusiva, democrática."
Ministro Tarso Genro, sobre a política de cotas para universida-des públicas, em 26 de janeiro

"É um programa que orgulha seu governo e que orgulha todo cidadão sério, de boa-fé, democrata e republicano."
Sobre o ProUni, no mesmo dia

 

 

O advento do comunismo propiciou o aparecimento das "repúblicas populares", em que a democracia representativa dá lugar à ditadura do proletariado. Havia a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, como há ainda a República Popular da China e a República de Cuba. Para não falar dos sistemas de estrutura tribal africanos, originados da descolonização, que também se autodenominam "repúblicas", como a República do Congo e a República de Uganda. Ou seja, todos eram ou são "republicanos" – de Thomas Jefferson e James Madison a Lenin, Fidel Castro e Idi Amin Dada. No Brasil, o ditador Getúlio Vargas era "republicano", bem como o presidente bossa-nova Juscelino Kubitschek e o general linha-dura Emílio Garrastazu Médici. Genuinamente, se perguntados. Pode haver um final mais infeliz para uma palavra do que perder o significado exato?

 

"Caso a gente veja um aumento desse risco (de apagão), a gente terá aqui no ministério a obrigação, o compromisso público e republicano de avisar a sociedade."
Ministra Dilma Rousseff, em 25 de janeiro

 

Assim, quando batem no peito e se dizem "republicanos", não se sabe ao certo o que os petistas querem dizer. Se desejam afirmar-se "partidários da democracia representativa", é uma bobagem sem tamanho, visto que há monarquias bem mais democráticas do que muitas repúblicas, como a Inglaterra e a Suécia. Talvez não queiram dizer nada e tudo não passe de uma pinimba com FHC, o que é justificável. Mas não é impossível que, por trás do termo que serve de abrigo a um saco de gatos, alguns poucos petistas escondam ainda a vontade de instituir uma res publica de caráter "popular", como a da China, a de Cuba, a da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Para evitar mal-entendidos, recomenda-se aos políticos brasileiros (não só os petistas) que abandonem conceitos e palavras vagos. Ser "republicano" pura e simplesmente não tem sentido. E de sentido é que a política brasileira mais precisa.

- Montagem com fotos de Ana Araújo/Ricardo Stuckert/Rafael Neddermeyer/AE/Sergio Lima/Folha Imagem

Fonte: Revista Veja nº 1891, Mario Sabino, 09/02/05.


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