Reforma não muda a universidade pública
Roberto Leher
 


Democrática somente na aparência. É dessa forma que o professor da UFRJ Roberto Leher classifica a Reforma Universitária. Presidente da Coordenação Nacional de Luta Contra a Reforma Universitária, a Conlute, ele afirma que o caráter democrático do projeto é uma fraude. Leher, que esteve no comando da maior greve do movimento docente no país, em 2001, é crítico feroz do projeto proposto pelo ministro da Educação, Tarso Genro.

O ex-presidente do Sindicato Nacional dos Docentes, o Andes, diz que a reforma que aparentemente defende a universidade pública, em nada modifica o atual cenário de crise e agrava problemas gerados pelo ProUni e pela Lei de Inovação Tecnológica. "O eixo da expansão do ensino já foi definido por estes dois projetos. Ele é privado", argumenta.

O professor explica que o mais importante tópico no anteprojeto deveria ser o financiamento das instituições, no entanto, o texto não traz novidades em relação ao tema. "Não é possível que a gente diga que a universidade se democratizou, pois isso é mentira", ataca.

Em entrevista à FOLHA DIRIGIDA, Leher critica a pouca disposição do governo em dialogar e a ilusória intenção de expandir o ensino público. "Veja que meta ousada e louca. Daqui a sete anos, teremos o mesmo percentual que tínhamos em 1994. Isso mostra que não há mudança de padrão", critica. Confira a entrevista:
 

Folha Dirigida - O ministro da Educação, Tarso Genro, ao apresentar o anteprojeto da Reforma Universitária, afirmou que o documento estabelece conceitos e procedimentos para que a educação superior cumpra o seu papel e a sua missão. Mas na sua opinião, a Reforma Universitária, da maneira que está sendo concebida, é necessária?

Roberto Leher - O problema é que o anteprojeto apresentado pelo governo tenta fazer crer que seria um marco inicial, uma espécie de ponto zero da Reforma Universitária, a partir do qual seria feito um debate completo. Mas isso, fundamentalmente, é incorreto. Não dá para analisar o projeto do MEC sem ler o que aconteceu antes. E o que aconteceu antes? Temos o ProUni, muito piorado em relação ao seu projeto original. E temos o projeto de Inovação Tecnológica. Acho que estes dois são os principais projetos que redefiniram a educação superior. Na minha perspectiva, portanto, é impossível fazer uma análise do projeto, considerando-o como marco inicial. E porque não pode ser considerado um marco inicial? Porque o eixo de expansão, de como vai crescer o sistema, já foi definido pelo ProUni. Este eixo é o setor privado, por meio de subsídios públicos para as instituições do setor. A pesquisa universitária também teve seu eixo de financiamento definido pelo projeto de inovação tecnológica, que são as parcerias com o setor privado. Logo, o anteprojeto de reforma, que é colocado e anunciado como sendo em defesa da universidade pública, contra a mercantilização da educação, na realidade não modifica nem reverte o estrago provocado pelos dois projetos criados anteriormente. Há complicações que corroboram isso. Os mecanismos de financiamento que são estabelecidos no anteprojeto são absolutamente incapazes de mudar o padrão vigente. Estivemos com um padrão, ao longo da década de 90, que teve um decréscimo bastante significativo durante o governo Collor. Quando chegou na época do Itamar, subiu um pouco e as instituições federais de ensino superior passaram a receber 0,96% do PIB. No final do governo Itamar e no primeiro ano de Fernando Henrique Cardoso, devido a valorização da moeda e a política econômica, este índice se manteve em 0,9%. E durante o mandato de Cardoso, o índice foi caindo, para ao final de seu governo estar em 0,6%. O governo Lula mantém o 0,6% do PIB. E a subvinculação apresentada dos 75% dos 18% estabelecidos na Constituição não modifica esta ordem de grandeza. Continuaremos com 0,6%, 0,7% do PIB. Isso significa concretamente, uma depressão em relação à metade da década de 90, que já estava muito ruim. Tanto que se formos pegar a meta de expansão do setor público que está no anteprojeto, verificamos que ela projeta para 2011, daqui a sete anos, um percentual que é o mesmo percentual de dez anos atrás, de 1994. Então veja que meta ousada e louca. Daqui a sete anos, teremos o mesmo percentual que tínhamos em 1994. Isso mostra que não há mudança de padrão. Claro que os tais 40% daqui a sete anos representarão um número de vagas maior, pois há um crescimento inclusive vegetativo do sistema. No entanto, quando verificamos as estratégias de expansão para o setor público visando atingir esta meta, percebemos que são os Centros Universitários e a educação a distância. Então não é difícil crescer com educação a distância. O projeto não reverte o estrago causado pelo ProUni e pela Inovação Tecnológica. Ao contrário, aprofunda.
 

FD -  Sobre esta meta de crescimento, de 40% para as instituições públicas...

RL - Até admitimos que no Plano Nacional de Educação (PNE), emergencialmente voltássemos ao patamar de 40%, mas freando o crescimento das privadas e com um forte crescimento das verbas públicas para as universidades. Tanto que pensávamos em chegar em 2010 com 1,4% do PIB para a educação superior. Mas pelo padrão de financiamento que está no anteprojeto, não vamos conseguir sair do 0,6%.
 

FD - O anteprojeto fala de autonomia de gestão e autonomia financeira. Mas esta autonomia não poderia piorar e agravar ainda mais a crise que algumas instituições de ensino vêm enfrentando?

RL - O conceito de autonomia que o anteprojeto trabalha não modifica em essência naquele famoso documento do Banco Mundial de 1994, que fala da educação superior. E qual é o conceito trabalhado neste documento, que Collor trabalha e Fernando Henrique Cardoso também? É que a universidade deve ter autonomia para buscar recursos e parcerias no mercado, já que não há aporte de dinheiro público. Isso em si nem seria grande problema se houvesse uma previsão de recursos públicos para as universidades. Como não há esta previsão, uma cláusula como esta, aparentemente inocente e inofensiva, pode ganhar dimensões muito grandes. A autonomia não é para resguardar a liberdade acadêmica. Até mesmo porque em todos os artigos onde se fala da missão da universidade, há um direcionamento muito claro para que as instituições atendam a demandas imediatas e práticas, como demandas de mercado, demandas econômicas, sociais, etc. Isso é negação do princípio da liberdade acadêmica, pois este diz que a própria universidade é quem deve definir as suas metas, questões e perguntas. Há inclusive uma proposta, que do jeito que está escrita, será devastadora, de se criar conselhos sociais nas universidades, com a participação da sociedade civil. E como não há uma definição clara do que é a sociedade civil, utilizemos como exemplo o que já acontece em colegiados do próprio governo que adotaram esta medida, como no Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Verificamos que o que o governo entende como sociedade civil majoritariamente o setor empresarial, uma parte significativa do chamado terceiro setor, como ONGs e entidades, e uma pequena parcela representando os trabalhadores. Este conselho social vai aprovar o plano de desenvolvimento institucional. Um contrato de gestão que será avaliado, provavelmente e pela redação apresentada, por um conselho que estará controlado pelo setor empresarial. Logo as metas acabarão por espelhar aquilo que o conselho social pensa para a universidade. Isso inviabiliza e significa rasgar o artigo 207 da Constituição. É um passo para trás.

 

FD - Falando um pouco do setor privado, o anteprojeto estabelece uma série de critérios e de normas que atingem especialmente as particulares. O senhor acredita que estas mudanças simplificam a legislação ou elas representam de fato que o governo endureceu as regras para o setor privado?

RL - Na minha interpretação, há um movimento duplo. De um lado eles criam uma legislação um pouco mais dura para manter o status de universidade, mas de outra parte liberaliza pois permite exceções e adequações mediadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). Ora, o CNE é fundamentalmente o espaço do setor empresarial, especialmente a Câmara de Educação Superior. Então, restringir e normatizar o setor privado por meio do CNE é mais ou menos como diz o dito popular, colocar a rapoza para tomar conta das galinhas. É óbvio que eles não vão fiscalizar. E os empresários vão utilizar de suas prerrogativas quando o projeto chegar ao parlamento, como aconteceu com o ProUni. Eu não vejo nenhuma mudança significa no tratamento com o setor privado.
 

FD - O senhor falou das metas para as universidades, através dos PDIs. Na sua opinião, quais devem ser as metas para as universidades? Ainda está faltando o anteprojeto traçar estas metas para o ensino superior?

RL - O drama que eu vejo com a questão das metas e do planejamento é o seguinte: interessa ao estado brasileiro hoje ter boas universidades, que produzam conhecimento novo, que tenham uma missão estratégica para a nação, tanto no que diz respeito à articulação do conhecimento com um projeto de desenvolvimento da nação, como no acesso em si ao conhecimento? Rigorosamente, não temos nenhuma meta ou projeção de futuro que coloque a universidade como relevante no cenário nacional. Logo, o projeto do governo de Lula não projeta para o futuro universidades relevantes e de alta qualidade. Por isso mesmo, o padrão de financiamento não é modificado. O que seriam metas para as universidades hoje? Se tivéssemos um projeto de nação mais inclusiva que buscasse um novo paradigma de desenvolvimento, a meta fundamental seria ampliar a oferta de ensino público e gratuito de qualidade. Ou seja, oferecer cursos de verdade, e não estas coisas malucas que inventaram como curso a distância, curso seqüencial, etc, que são na verdade uma burla ao direito que todos têm à educação.

FD - Sobre a questão das mensalidades no setor privado. Esse é um problema que o movimento estudantil vem enfrentando, mas o anteprojeto não toca no assunto. No entanto, devido às exigências que são colocadas para o setor privado, alguns representantes das particulares já avisaram que podem se ver obrigados a reajustar o valor que é cobrado. Como o senhor vê esta questão? A reforma deveria tocar neste assunto?
RL - No meu entendimento, deveríamos ter um conjunto de normas separadas para o setor privado. Por quê? Porque o setor privado deve obedecer fundamentalmente aos pilares do direito privado e não do direito público. São regulamentações distintas. A nossa Constituição autoriza que universidades privadas funcionem. Mas ela determina claramente que as instituições oferecerão o serviço educacional dentro das condições determinadas pelo estado. Deveríamos acabar com esta excrescência chamada Centro Universitário e manter as faculdades e universidades para que o status universitário seja assegurado apenas às instituições que articulam ensino, pesquisa e extensão. Acho que manter as mensalidades como se fossem o preço de um bem qualquer no mercado está errado, pois a educação atende a um propósito social. Logo, as mensalidades não podem estar definidas pelas demandas ou pelo sabor do mercado. Deve ficar claro para a sociedade quanto dinheiro está sendo apropriado pela universidade privada.

FD - Já que estamos falando sobre controle social, qual a sua opinião sobre a participação dos chamados conselhos de classe no processo de regulamentação e autorização de cursos. O senhor acredita que a participação destes conselhos pode ser uma alternativa para controlar a expansão sem qualidade, ou o interesse destes órgãos pode sobrepujar o interesse acadêmico?

RL - É uma relação muito tensa. Por que os conselhos, como o da OAB, por exemplo, conseguiram tanta legitimidade, relevância e peso social? Porque o estado liberalizou e deixou de fazer um acompanhamento rigoroso sobre as condições em que os cursos estão funcionando. Por isso, os conselhos adquiriram legitimidade. Entendo que as universidades e os cursos que são sérios devem integrar os conselhos nas suas avaliações, de modo a fazer um trabalho de diálogo positivo. Os conselhos precisam entender que a universidade tem a sua autonomia. Por outro lado, as boas universidades devem ver os conselhos como fortes aliados para manter um padrão unitário de qualidade em seus cursos. Nesse cenário hipotético, a qualidade estaria assegurada no próprio diploma. Mas hoje, isso ainda não é verdade.
 

FD - Sobre a loteria do estudante, o senhor acredita que esta seria uma medida eficiente?

RL - Não é eficiente e ainda é profundamente deseducativa. O MEC não pode apostar que a população esteja vivendo de ilusões por meio de jogos de azar. Estes jogos normalmente têm como usuários a população de baixa renda que desesperançada com as condições de um futuro mais digno pelo trabalho, sonham com a possibilidade de acertar numa loteria ou coisa semelhante para mudar a sua vida, sempre muito áspera e difícil. Mas sabemos que é uma grande ilusão, pois a maioria paga e pouquíssimos ganham. Também não há qualquer publicização sobre o destino do dinheiro arrecadado. A criação de uma loteria é deseducativa, pois estimula os jogos de azar. Além disso, é totalmente insuficiente. Ou seja, o padrão de financiamento atual é mantido e se cria uma loteria como forma de preencher pequenas lacunas orçamentárias. Precisamos de bons alojamentos, bons restaurantes universitários, boas bibliotecas, mas isso não vai ser feito com as verbas irrisórias de uma loteria.
 

FD - O anteprojeto estará em discussão até o dia 15 de fevereiro. O senhor acredita que dentro deste período de debate, pode ainda se dar alguma mudança ou alteração substancial no anteprojeto?

RL - O anteprojeto vai ser discutido de maneira minimamente superficial. As universidades estão na reta final de seus períodos, ou já estão em recesso. Os professores estão envolvidos com uma série de atividades, como correção de provas e de trabalhos. Depois entraremos no carnaval e pós-carnaval já seria o prazo. Isso é revelador da pouquíssima disposição do governo para o debate. A universidade pública, apesar de suas divisões e discordâncias, unifica a todos no pensamento de que ela é uma instituição necessária para que tenhamos cidadãos plenos no país. Não podemos pensar numa democracia plena se sonegamos o conhecimento, que é o patrimônio mais nobre da humanidade. E a universidade no Brasil é para poucos. Não é possível que a gente diga que a universidade se democratizou, pois isso é mentira. É preciso que haja uma reforma, não tanto no interior das instituições, embora eu admita que elas têm muitos problemas, mas a questão fundamental está no padrão de financiamento. O anteprojeto sequer arranha essa questão.
 

Fonte: Folha Dirigida, 28/12/2004.


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