Reforma ou
contra-reforma?
César Benjamin*
Não
poderiam ser mais inoportunos o momento e o modo como o governo Lula
precipitou o debate sobre a chamada reforma da Previdência. Mesmo sem ter um
diagnóstico e uma proposta para apresentar à sociedade, o presidente definiu
um prazo de apenas 90 dias para que se concluísse a fase preliminar da
reforma, no âmbito do Executivo, de modo a poder iniciar em seguida, ainda
neste semestre, a tramitação legislativa subseqüente. Em seguida, o ministro
Berzoini reiterou a existência de um megadéficit, parcialmente causado por
supostos privilégios concedidos a servidores públicos. A reação provocou
recuos, bate-bocas e confusão. Iniciou-se uma discussão de varejo, dominada
por interesses, esvaziada de qualidades, conceitos e informação confiável.
Até o momento em que escrevo, o debate não permitiu uma visão de conjunto
sobre o que está em jogo, nem adotou como referência um projeto coerente de
Nação.
Três argumentos têm sido usados para demonstrar a urgência dessa reforma. O
primeiro é o tamanho do déficit, estimado pelo ministro em R$ 70 bilhões por
ano, sem dúvida muito dinheiro. O segundo é a tendência de envelhecimento da
população: o contingente apto a receber benefícios aumenta de forma mais do
que proporcional à média, destruindo inexoravelmente o equilíbrio
receita-despesa do sistema, tal como está concebido. O terceiro são
projeções catastróficas. Eis a principal: graças à generosidade das nossas
instituições previdenciárias, o número de beneficiários aumentou 1.140% em
trinta anos, enquanto a população total do Brasil, no mesmo período,
aumentou 109%; projetando-se esses números para o futuro, verifica-se que em
vinte anos chegaremos à proporção de um contribuinte para um beneficiário.
Cada trabalhador em atividade terá de sustentar um aposentado ou
pensionista. É completamente inviável.
São argumentos impressionantes. Mas estão errados.
Quanto ao primeiro: o que vem sendo chamado de déficit da Previdência Social
é, na verdade, o déficit da Seguridade Social. São coisas muito diferentes.
O maior avanço inscrito na Constituição de 1988, em termos de direitos
sociais, foi a proposta (nunca completamente implantada) de formação de um
sistema integrado de Seguridade, com três componentes: a saúde pública
(amparo aos doentes), a assistência social (amparo a portadores de
deficiência e pessoas em situações de risco social) e a Previdência (amparo
aos que ultrapassaram o período de vida laborativa). Os dois primeiros
correspondem a direitos líquidos de cidadania e, como tal, não contam com
receitas próprias, devendo ser financiados com impostos pagos pela sociedade
como um todo (as contribuições sociais). Portanto, não se aplica nesses
casos o conceito de déficit (ninguém diz, por exemplo, que uma escola
pública, que oferece ensino gratuito, é deficitária ; tampouco se pode dizer
isso de um hospital público, ou da assistência a uma pessoa pobre, portadora
de deficiência grave). Só o terceiro componente da Seguridade Social (a
Previdência propriamente dita) é capaz de gerar receitas. Incluir as
despesas da Seguridade, como um todo, no chamado déficit da Previdência é um
artifício lamentável, que só serve para assustar a opinião pública e
dramatizar o problema.
Quanto ao segundo argumento: de fato, está em curso uma alteração na
distribuição etária da população brasileira, que entrou na última fase do
que os demógrafos chamam de transição demográfica. Porém, trata-se de
processo recente, iniciado na década de 1970. Os processos demográficos
naturais têm grande inércia e se realizam em prazos longos. No caso
brasileiro, pelo menos até 2020, as mudanças se concentrarão principalmente
em uma diminuição relativa da população infantil, com aumento relativo da
população adulta, justamente aquela que está em idade produtiva. Entre 1990
e 2020, calcula-se que a população de zero a 14 anos diminua de 35,0% para
21,5%, a população de 14 a 64 anos aumente de 60,3% para 70,0%, e a
população acima de 65 anos aumente um pouco, de 4,8% para 8,8%. As
tendências demográficas brasileiras continuarão sendo favoráveis ao
equilíbrio da Previdência até, pelo menos, o início da terceira década do
século XXI. (Em 2010, por exemplo, teremos 123 milhões de pessoas em idade
laborativa, 86% a mais do que em 1990).
Quanto ao terceiro argumento: não se podem usar as taxas de crescimento do
número de beneficiários da Previdência em décadas passadas para, com base
nelas, fazer projeções para o futuro. Pois, no passado, houve ingressos
maciços de novos contingentes populacionais no sistema, justamente para
atingir a meta de sua universalização. Grupos inteiros trabalhadores rurais,
empregados domésticos, autônomos, portadores de deficiência, pessoas com
mais de 65 anos, etc. foram incorporados aos benefícios, em levas
sucessivas, em um processo que já terminou. Não há mais grupos novos a
serem coletivamente incorporados. O padrão de crescimento dos
benefícios, no futuro, será diferente do padrão do passado.
Não se pretende negar, de uma vez por todas, que nossa Previdência Social,
stricto sensu, tenha-se tornado deficitária. Dependendo dos critérios
adotados para efetuar o cálculo, esse resultado pode ou não ser demonstrado.
Há polêmica sobre isso. Mas, sem nenhuma dúvida, a principal explicação para
o eventual déficit está em outro lugar: depois de duas décadas perdidas, em
termos de crescimento econômico, e de uma década de experimentação
neoliberal, o mercado de trabalho se desorganizou completamente e, por causa
disso, as receitas do sistema desabaram. O número de cidadãos contribuintes
aumentou a uma taxa anual de 7,3% na década de 1960, 7,9% na de 1970, 2,8%
na de 1980 e apenas 0,8% na de 1990. Hoje, e ainda por muito tempo, os
problemas da Previdência não decorrem principalmente da demografia, nem do
tipo de benefícios concedidos. Decorrem da economia, ou seja, da combinação
de desemprego, informalidade e baixo crescimento (além, é claro, de
corrupção e sonegação).
Há, pois, dois caminhos possíveis. O primeiro defendido pelo FMI, o Banco
Mundial, os conservadores em geral e, agora, o PT é considerar definitiva e
inamovível a nova configuração do mercado de trabalho, com cerca de 20% de
desemprego aberto e mais de 50% de informalidade, e jogar todo o peso do
ajuste na eliminação de benefícios pactuados com as gerações de
trabalhadores que entraram no sistema em períodos passados. Reduzida a uma
questão de natureza fiscal, a Previdência passa a submeter-se às diretrizes
gerais de arrocho comandadas pelo FMI. A chamada reforma se torna um jogo de
soma negativa, no qual prevalece o salve-se quem puder que estamos começando
a assistir. Com um agravante: se for aceita a proposta do ministro Berzoini,
de formação de uma previdência dos pobres , em regime de repartição, com
teto de R$ 1.500,00, ao lado de uma previdência dos ricos e remediados , em
regime de capitalização individual, gerenciado por empresas privadas, o
Estado perderá nas duas pontas: ficará com o passivo do sistema atual (qual
empresa capitalista aceitará esse passivo?) e estimulará o incremento de uma
bolha de recursos líquidos, administrada por grandes grupos privados, os
maiores interessados nessa reforma . Como mostra a experiência no mundo
inteiro, a maior parte desses recursos será direcionada para a especulação
financeira, cujo peso, em última análise, sempre recai sobre as finanças
públicas.
O segundo caminho sem prejuízo de correções, onde se façam necessárias para
eliminar abusos é reequilibrar a Previdência, em curto prazo, por meio da
retomada do crescimento econômico e da geração de empregos formais (além, é
claro, do combate à sonegação e à corrupção). Isso é perfeitamente possível.
Nesse novo contexto, de soma positiva, a sociedade brasileira poderá debater
com calma e transparência as alterações realmente necessárias, sem perder de
vista que a Seguridade Social, onde a Previdência se insere, não é uma
questão de natureza fiscal, a ser entregue a burocratas assustadiços,
recém-convertidos ao neoliberalismo, mais realistas que o rei. O sistema de
Seguridade é o principal alicerce de um projeto civilizatório que afirma as
pessoas humanas especialmente os doentes, os portadores de deficiência e os
idosos como detentores de direitos. É parte essencial de um projeto de
Nação.
* César Benjamin é
autor de A opção brasileira (Contraponto Editora, 1998, nona edição) e
integra a coordenação nacional do Movimento Consulta Popular.
Fonte: Revista
Caros Amigos, fevereiro de 2003. |