Reforma Universitária
Reforma Universitária para o PT ver

 

Para o presidente da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CNE), Edson Nunes, o governo aproveitou a discussão sobre a Reforma Universitária para acalmar sua própria base. "O governo não podia deixar de fazer essa lei ideológica e doutrinária para dar um sinal para sua própria base eleitoral universitária e de servidores públicos. Esse projeto significa: ‘olha, chegou o programa do PT’", explica.

O professor critica, inclusive, a denominação "Reforma Universitária", que não traduziria a finalidade do projeto. "Não se trata de uma Reforma Universitária. Está sendo erradamente chamado de Reforma Universitária um projeto que, de fato, é uma Lei Orgânica da Educação Superior. É como se fosse uma LDB (Lei de Diretrizes e Bases) do ensino superior. Chamar de reforma cria uma falsa expectativa", afirma.

Nesta entrevista à FOLHA DIRIGIDA, Edson Nunes também critica a retomada das metas do Plano Nacional de Educação (PNE) e o excesso de normas para o setor privado. "O governo não poderia deixar de anunciar isso. Tem uma crítica implícita ao governo anterior. Não acredito que o governo consiga transformar isso em realidade orçamentária", aposta. Confira a entrevista:  

Como o senhor tem visto as discussões sobre a Reforma Universitária até o momento?

Primeiro acho que deveríamos mudar o nome da coisa. Não se trata de uma Reforma Universitária. Está sendo erradamente chamado de Reforma Universitária um projeto que, de fato, é uma Lei Orgânica da Educação Superior. É como se fosse uma LDB (Lei de Diretrizes e Bases) do ensino superior. É uma tentativa de sistematizar, organizar e regular coisas do setor público, coisas do setor privado numa perspectiva de lei orgânica. Portanto, num certo sentido, é uma LDB da educação superior que está se fazendo. Chamar de Reforma Universitária cria uma falsa expectativa sobre o que é essa lei. A Reforma Universitária implicaria em uma discussão sobre várias outras dimensões que não estão contempladas. Não se trata de uma reforma, se trata de uma organização. Por isso que se chama lei orgânica. E por que digo que não se trata de uma reforma? Porque aspectos fundamentais da educação superior brasileira não são contemplados.

Talvez nem poderiam ser, pois não foram suficientemente discutidos. O principal exemplo é a natureza dos cursos superiores no Brasil. Não se pode falar sobre uma reforma, sem falar qual é a natureza geral da educação superior e saber se queremos mantê-la como ela está. A educação superior no Brasil é essencialmente de natureza profissional. Todos os cursos são profissionais. Ou seja, você não tem uma educação universitária. O que você tem é uma educação profissional. Mesmo as universidades não oferecem uma educação universitária, apesar de terem adotado o sistema de crédito. A lei orgânica que está sendo proposta tenta contemplar isso de uma maneira muito tímida, dizendo que as universidades poderão ter dois anos de um ciclo geral. Isso já foi tentado na Reforma Universitária de 1968 e não funcionou. E não funcionou porque a educação profissional está muito entranhada na cultura dos cursos. Se fôssemos fazer uma reforma teríamos que discutir qual a natureza essencial da educação superior brasileira. Sem esses aspectos é difícil falar que se trata de uma reforma. Ao lado da educação universitária, tínhamos que discutir a natureza da educação profissional. Por que a gente não enfatiza a educação profissional mais curta? Por que não se discute a diversidade que o sistema deveria ter? Essas coisas constituiriam, de fato, uma Reforma Universitária.  

Na verdade, não é isso...

Como está, é apenas uma lei orgânica, cuja discussão não vai conduzir a esses temas que estou falando. Essa discussão foi bem até agora? Foi bem. O governo assumiu uma postura bastante compreensível, de discutir e de fazer apresentação em vários fóruns. Ainda está fazendo esta primeira rodada que vai até o próximo dia 15 de fevereiro e, em seguida, começa uma novo processo de debate com a sociedade. A metodologia escolhida não foi a melhor, mas está indo bem. No começo era muito descrente da possibilidade que viesse se constituir um projeto de lei. O governo, ao invés de apresentar seu melhor projeto, fez o contrário. Ele usou uma metodologia de construir o seu projeto a partir de conversas. Isso é muito típico da experiência partidária do PT, de formular políticas a partir de discussões na base. Essa metodologia não era a ideal, pois ficamos sem conhecer qual era o melhor projeto do governo. Apesar disso, o projeto de lei conseguiu ficar bastante arrumado. Mas neste ponto está o coração da questão. A lei tem características ideológicas. Alguns poderiam dizer que ela possui características doutrinárias do PT. Resta saber se queremos fazer uma Lei Orgânica da Educação Superior com uma doutrina de um partido, que está no poder por quatro anos, mas a educação é mais permanente do que a doutrina de um partido.  

Por que o senhor acha que o projeto possui a ideologia do PT?

Porque acho que o PT não poderia deixar de fazer isso. Estou criticando o fato da lei ter conteúdo doutrinário, mas entendo que o PT não podia agir de outra forma. E por quê? Primeiro porque durante o primeiro ano da administração do PT não houve a manifestação doutrinária, política e ideológica do programa partidário do PT para a educação superior. A gestão do ex-ministro Cristovam Buarque foi mais pragmática do que doutrinária. O governo do PT para a educação superior só começou com a saída dele do Ministério da Educação. Ou seja, o ministro Tarso Genro se sente na obrigação de fazer o discurso da proposta política do partido. A idéia de que a Educação é um bem público, a idéia de que liberdade para a educação privada, que está prevista na Constituição, pode merecer adjetivos. A Educação é livre desde que atenda a tais preceitos ou necessidades regionais e sociais. Acho que existem na lei 21 preceitos. São 21 enunciados de natureza doutrinárias. Doutrina é muito difícil de você quantificar ou qualificar. Um exemplo claro disso é necessidade regional ou interesse social. Como é que se mede isso? Como se mede o interesse social e a necessidade regional? Para qualquer lado que você olhar, o Brasil tem menos educação superior do que deveria ter. Eu diria, por exemplo, que a necessidade social fundamental é que o Brasil faça uma ampliação robusta da sua educação superior. Mas o governo acha que tem como medir necessidade regional e interesse social. No entanto, ele não apresenta os critérios para tal, principalmente porque não existem critérios tecnicamente sólidos para mensurar isso. E por causa disso que digo que é uma lei doutrinária. Não sei se esses preceitos deveriam estar presentes numa lei antes de uma discussão mais robusta com os melhores técnicos do país.  

O senhor não acha que a Reforma Universitária está definindo apenas uma nova legislação, ao invés de apontar um caminho para o ensino superior. Ela está sendo apresentada com um caráter mais normativo do que conceitual?

Acho que é isso mesmo. Ela é uma organização normativa, uma regulamentação mais detalhada. Embora ela tenha muita doutrina, essa doutrina tem a ver com maneira pela qual a sociedade vai lidar com as autorizações, com a presença da educação superior neste ponto de vista doutrinário. A lei não possui nenhuma novidade sobre o que é educação superior ou o que ela deveria ser. Por isso acho que não constitui ainda numa reforma universitária. É um passo de organização normativa.  

No caso das universidades federais está se propondo a criação de conselhos comunitários e a participação de entidades de classe. Alguns setores temem que isso se torne um foco de controle do meio empresarial. O senhor acha que existe esse risco?

Corre o risco de ter um controle pelas corporações profissionais. Muito mais do que as corporações empresariais. Ao contrário do que muitas pessoas imaginam, as empresas não têm muito interesse em universidades. As empresas têm muito interesse em receber mão-de-obra bem preparada. O que as empresas querem é uma massa de brasileiros bem preparados para o processo produtivo. Elas não só têm pouco interesse, como também entendem muito pouco de universidade. Então, não me impressiona muito o eventual medo do apetite empresarial pelo controle universitário. O perigo estaria mais ligado ao controle das corporações profissionais. Mas não me parece que o conselho comunitário vai ter impacto sobre o controle das universidades. Ele não é órgão terminativo da gestão da universidade.

Os conselhos universitários continuarão sendo os órgãos fundamentais. Me parece redundante fazer o conselho comunitário, porque os conselhos universitários já têm participação da comunidade. O governo quer dar um sentimento mais participativo nisto. Isso é uma das dimensões que chamo de doutrinárias. E isso vem do DNA do PT. Isso já vem da idéia do orçamento participativo, da consulta à sociedade, da presença da sociedade em todas as esferas do processo decisório. Acho que tem um pouco de saudosismo municipalista. E isso trouxe uma confusão muito grande. Ao falar de universidade, o governo talvez não tenha colocado para si mesmo a idéia de que universidade, estado e município são animais absolutamente distintos. A proposta de que universidades possam ser governadas por movimentos sociais, por maior taxa de participação ou por eleição de dirigente, é uma invenção brasileira e agora invenção do partido que está no governo. Espero que o Brasil tome juízo e não vá tentar reiventar o conceito de uma coisa que já é milenar. Universidades são locais de mérito, de hierarquia democrática, mas com base no mérito. Outra invenção brasileira é que reitor seja eleito por voto e a eleição de um pró-reitor nas entidades privadas. Esse conjunto de pequenas dimensões que estamos discutindo mostram a imperativa doutrinária da lei.  

O senhor acha que essa lei é uma tentativa do governo em acalmar a sua própria base de apoio?

Do ponto de vista da conjuntura, a lei começa a ser discutida num momento difícil pro governo. Ele tem uma máquina no Congresso Nacional de estabilidade precária. O presidencialismo brasileiro depende muito da presença forte do partido do governo no congresso. A maioria que o governo possui não é muito estável na câmara e é absolutamente circunstancial no Senado Federal. O governo precisava construir seu discurso para que a própria base petista diminuísse sua taxa de insubordinação. Estamos vendo muita crítica do PT ao governo do próprio partido. Essa crítica tem sido permanente. Estão querendo saber onde está o programa do partido. O governo não podia deixar de fazer essa lei ideológica e doutrinária para dar um sinal para sua própria base eleitoral universitária e de servidores públicos. Esse projeto significa: "Olha, chegou o programa do PT".

E apenas no começo do terceiro ano de governo é que chegou essa base doutrinária. Do ponto de vista do PT, o governo para a educação superior está começando. Duvido que essa lei vá ficar deste jeito. Acho que o processo de discussão vai corrigir uma série de problemas como este que estava mencionando antes de ser enviada ao Congresso. E sendo enviada com todas as dimensões de natureza ideológicas, ela sofrerá correções densas e profundas. Acho até que o governo não vai ficar aborrecido se isso vier a acontecer. Olha que coisa interessante. O governo não poderia deixar de fazer o que fez. No entanto, não acredito que o governo, como um todo, esteja convencido de que o que fez foi o melhor que poderia ter feito. Ele também está contando com alterações de rumo ao longo do processo. Portanto, tem um conteúdo também político na apresentação desta lei.  

O governo diz que receberá sugestões para o projeto final da Reforma Universitária até o próximo dia 15 de fevereiro. O senhor acredita que ainda haverá alguma mudança significativa no anteprojeto?

Acho que pode haver. E se isso acontecer tenderão a ser benéficas. A metodologia utilizada é a da discussão permanente. Neste caso louva-se o governo. Ele não chegou dizendo que sabia tudo, nem que iria impor sua filosofia, embora a tenha proposto. Acho que podem haver modificações sim, mas não na parte doutrinária ou de princípios. As modificações mais profundas vão se resumir à parte regulatória.  

E com relação às metas do PNE. Segundo o projeto da Reforma, as instituições públicas terão que oferecer 40% das vagas do sistema até 2011. O senhor acha que essa meta é possível?

Acho que o governo não poderia deixar de falar isso. Primeiro porque isso tem uma dimensão política. Essa proporção, 40% para as instituições públicas e 60% para as particulares, só não existiu por veto do governo Fernando Henrique. O Plano Nacional de Educação foi aprovado com isto. Esse veto imposto possui, obviamente, uma natureza pragmática. Isso implicaria num crescimento orçamentário permanente. Toda vez que o setor privado crescesse o setor público teria que crescer na mesma proporção. Portanto, era uma lei que tinha uma contradição lógica. Como o Congresso aprova uma lei cujo custo orçamentário depende do crescimento do setor privado? É um veto muito triste porque, ao mesmo tempo que ele é pragmático, permitiu que a proporção de participação do governo federal diminuísse muito. Então, o governo não poderia deixar de anunciar isso. Isso também tem uma crítica implícita ao governo anterior. Não acredito que o governo consiga transformar isso em realidade orçamentária. Entre a política do Ministério da Fazenda e do Ministério da Educação há uma contradição. O MEC precisa de mais verbas. No entanto, a política do Ministério da Fazendo continua sendo ortodoxa clássica. Inclusive, a nossa taxa de juros é a mais alta do planeta. Com uma taxa de juros de 18% ao ano, os orçamentos federais ficam constrangidos de toda forma.  

O anteprojeto estabelece uma série de critérios e de normas que atingem especificamente o setor privado. O senhor acredita que estas mudanças simplificam a legislação ou elas representam, de fato, que o governo enrijeceu com o setor particular?

É a mesma questão. Endurecer com o setor privado faz parte do discurso partidário. Faz parte do discurso ter uma certa preferência pelas coisas estatais. Debaixo dessa premissa, com certeza, existe uma tendência ao endurecimento. Não muito duro para dizer a verdade. A grande novidade desse projeto é que, pela primeira vez no Brasil, se trata das mantenedoras e não apenas das mantidas. Toda as legislações anteriores se referiam às mantidas mas nunca às mantenedoras. No setor privado, as mantenedoras ocupam um lugar onde se pode dizer que existe uma ausência do Estado. Tem um buraco negro na política educacional brasileira que é essa ambigüidade entre mantida e mantenedora. A mantida é uma ficção. Quem tem personalidade jurídica é a mantenedora, quem contrata os professores é a mantenedora e por aí vai.

Até hoje o Brasil não olhou com atenção para as mantenedoras. Além de não serem reguladas, elas não são supervisionadas. Nós estamos tendo uma crise econômica no setor privado muito intensa. Crises de magnitude preocupantes. E se observarmos essa crise, vamos ver que ela está acontecendo nas mantenedoras e não nas mantidas. E isso está muito relacionado à ausência de supervisão. O governo ao falar que vai supervisionar as mantenedoras é dirimir o caráter ficcional da relação mantida e mantenedora. As mantenedoras consolidadas, as mantenedoras bem administradas se sentirão confortáveis com o processo de supervisão, pois esse processo vai mostrar quem já está organizada de uma maneira mais moderna. Esse endurecimento é de interesse do setor privado mais organizado. No entanto, esperaria que o setor privado tivesse mais coragem e fizesse mais sugestões de natureza regulatória, que fosse benéficas para o próprio setor particular.  

Sobre a questão das mensalidades no setor privado. Esse é um problema que o movimento estudantil vem enfrentando, mas o anteprojeto não toca no assunto. A reforma deveria tocar neste ponto?

Não acho que falte algo neste sentido. O governo está cometendo o mesmo erro de outros governos, que é manter a possibilidade de controle sobre as mensalidades e de manter aquelas restrições que chamam de "Lei do Calote". Isso é um erro conceitual. Se você escolheu fazer a ampliação do sistema universitário através do setor privado e você diz que educação é livre, porque você tenta controlar preços. Esse é o único setor da economia que tem controle de preços dessa natureza. Alguns ainda podem dizer que as agências regulatórias acompanham e regulam os setores privatizados. Podem até fazer isso, mas não há essa amarração semelhante a que há no setor privado. Preço não é uma questão educacional. Preço é uma questão de mercado, e mercado se resolve sozinho. No entanto, não acredito que nenhum governo vá fazer isso. E a razão é o sentimento de culpa que está embutido nisto. O controle de mensalidade vem muito mais do setor primário e secundário, só então partiu para o ensino superior. O governo controla a mensalidade porque ele não pode oferecer educação. Como o governo não oferece o volume certo, estuda no setor privado gente que não queria estar lá. Por sentimento de culpa, acho que o governo pensa o seguinte: "Como não posso oferecer ensino superior público, pelo menos eu controlo os preços nas particulares".  

No caso das federais, um ponto considerado primordial é a autonomia. O texto fala da autonomia de gestão e financeira. O senhor acredita que as universidades estão preparadas para isso?

Acho que estão preparadas. Mesmo se não estiverem, se preparam rapidamente pela transição. A autonomia é caneta. Se você tem caneta para assinar cheque, isso é autonomia. E não é apenas as públicas que não têm autonomia, as privadas também não possuem. Se não estão preparadas, acho até que nem poderiam estar, porque isso não faz parte da realidade delas. E isso vai fazer um bem muito grande. Se as universidades tivessem seu pessoal próprio, elas iriam fazer seu próprio plano de carreira, seus próprios programas de mérito e isso talvez criasse alguma diversidade no Brasil. Isso seria benéfico, mas duvido que venham a receber do governo.  

Fonte: Folha Dirigida, 27/01/2005.


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