Reforma Universitária: Governo enfrenta resistências


Projeto coloca em lados opostos as instituições federais e particulares. Ministério da Educação quer fortalecer ensino público, enquanto freia
a expansão desordenada de faculdades privadas no Brasil

 

A reforma universitária proposta pelo Ministério da Educação (MEC) colocou em cantos opostos o público e o privado dentro do sistema de ensino superior. De um lado, estão o governo, as principais entidades estudantis e os reitores de instituições federais. Do outro, donos de instituições privadas e, principalmente, os responsáveis pelas mantenedoras de entidades filantrópicas. Até o próximo dia 30, o MEC recebe sugestões ao projeto, que segue em junho para o Congresso. Palpites não faltam. Cada grupo quer colocar suas propostas no texto. Já é certo que algumas delas serão incorporadas ao documento, mas os princípios que norteiam a reforma desde o início serão mantidos: fortalecer a universidade pública e segurar a expansão desordenada do ensino superior pago.

Ao bater o pé nesses dois pontos, Tarso conquista cada vez mais a antipatia de certos setores da educação superior. Para o presidente da Associação Brasileira de Mantenedores do Ensino Superior (ABMES), Gabriel Mário Rodrigues, a reforma como está ameaça as instituições privadas. Ele defende a criação de uma espécie de proteção do capital privado, nacional ou estrangeiro, das interferências indevidas dos agentes governamentais. “A reforma deveria ser fatiada em três. Primeiro as normas gerais para o ensino, depois a relação da instituições privadas com o governo e, por fim, o diálogo das federais com o governo”, argumenta. “O Estado não interfere na autonomia didática, científica e pedagógica de qualquer escola”, defende-se o ministro Tarso Genro. “O que ele diz é que a gestão da educação tem que ser democrática.”

Chumbo grosso

A ironia é que ao mesmo tempo que o ministro é acusado de intervencionista pelos empresários do ensino, também é taxado por setores da esquerda de continuar a política de expansão do governo tucano. “O projeto tenta unificar em um mesmo sistema as instituições públicas e as privadas, mas isso não é possível”, argumenta Marina Barbosa, presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes). “É preciso ser mais rígido com as particulares.”

Não é difícil entender porque a reforma provocou mais reações positivas no setor público do que entre os empresários. Se o projeto for aprovado no Congresso exatamente da maneira que o governo sugeriu, as federais terão ampliado de 70% para 75% o gasto mínimo que o MEC terá com elas no orçamento, além da garantia de que não receberão menos recursos de um ano para o outro. Mas a melhor notícia é a intenção de retirar dos gastos com funcionários e professores aposentados da conta de custeio da educação. “Nem nos meus sonhos eu acalentava uma realidade como essa que os reitores das federais terão com a reforma”, diz Efrem Maranhão, ex-reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Na última quinta-feira, o ministro recebeu apoio estudantil. Além da solidariedade, o presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Marcelo Gavião, entregou propostas para o aperfeiçoamento do texto. “Queremos garantia de acesso dos alunos de escolas públicas, mas os estudantes têm que conseguir se manter em sala de aula todos os anos do curso”, disse, referindo-se à necessidade de um detalhamento maior da política nacional de assistência estudantil. A Associação dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) seguiu a mesma linha. A proposta do MEC é considerada bem-vinda, mas precisa de ajustes.

Para grande parte das particulares, o projeto está longe de gerar entusiasmo. A idéia do governo de criar critérios mais rígidos para o credenciamento de uma universidade representa mais gastos dos donos de instituições. Eles também se queixam da obrigatoriedade da criação de um conselho comunitário social, onde sindicatos, associações de classe e entidades corporativas terão assento garantido. Esses conselhos poderão opinar e fazer relatórios sobre o desempenho da instituição que terão, pela lei, de ser levados em conta no processo de avaliação daquela entidade.

“As instituições não precisam desse tipo de controle”, argumenta o ex-ministro da Educação Paulo Renato, que atualmente é consultor em ensino. Nesse conselho, os administradores da instituição e integrantes da entidade mantenedora terão direito a ocupar, no máximo, 20% das vagas. Outro artigo determina que pelo menos um dos pró-reitores da instituição seja escolhido por eleição direta pela comunidade.

Mas a principal reclamação está na limitação de investimentos estrangeiros na educação em 30% do capital da empresa. “O caráter pueril da xenofobia embutida na proposta esquece que qualquer instituição de ensino superior em nosso país está sujeita à aprovação e supervisão do poder público, segundo as normas e o currículo fixados pelo governo”, diz nota do Instituto Teotônio Vilela.
 


O que pensam e o que querem

Os sem sala de aula

·         Estudantes do Movimento dos Sem Universidade (MSU) apóiam a proposta de reforma universitária, com ressalvas. Já apresentaram ao ministro Tarso Genro uma lista com dez sugestões, com a substituição da primeira fase do vestibular pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o fim da cobrança de taxas de todos os alunos e a criação de dois milhões de vagas nas universidades públicas, além da garantia de 50% das vagas nas universidades para alunos de escolas públicas, assim como a criação de mais cursos noturnos. O MSU quer ainda a garantia de permanência das classes populares nas instituições com subsídios como transporte, alimentação, moradia, emprego e livros. “Nossa bandeira é alcançar uma reforma que torne a universidade popular”, explica o presidente Sérgio Custódio.

Os donos de escola

·         O Fórum Nacional da Livre Iniciativa na Educação repudia a proposta. O projeto não faria um plano efetivo de mudanças e se resume a uma lei orgânica das instituições federais. O fórum alega que o MEC estaria aproveitando a oportunidade para intervir na iniciativa privada com medidas que cerceariam sua expansão. Faltaria um plano de desenvolvimento para o sistema de ensino superior a longo prazo. O fórum quer dividir as mudanças: o MEC enviaria ao Congresso um projeto que regulamente a autonomia universitária e, depois, sem prazo definido, decidiria a reformulação da educação no país. “O projeto precisa fixar um marco regulatório que proteja o capital das interferências indevidas do governo”, diz , Gabriel Mário Rodrigues, presidente da Associação Brasileira de Mantenedores do Ensino Superior (ABMES).

Os reitores

·         Para a Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições de Ensino Superior (Andifes), o MEC acertou ao trazer o anteprojeto de reforma para o debate. A entidade diz que é fundamental consolidar um sistema público forte e que seja implementado o marco regulatório para organizar o funcionamento da educação superior no país. As principais demandas da entidade estão ligadas à autonomia, ao financiamento, à criação de sistemas de avaliação e garantia de expansão com qualidade e inclusão social.

Os professores

·         O Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes) é contrário à proposta. Dois temas preocupam a entidade: o financiamento das universidades federais e a autonomia dessas instituições. “O governo não apresenta novas possibilidades de captação de recursos, trabalha com a mesma fonte de sempre”, critica Marina Barbosa, presidente da Andes. A Andes teme que a disputa de mercado tome lugar também nas instituições públicas, já que o texto abre espaço para que as reitorias busquem investimentos fora do Estado. “A política de cotas não pode resumir tudo o que se espera de ampliação do acesso e democratização do ensino.”

Os estudantes

·         A União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes) têm posições semelhantes: apóiam o texto, com sugestões de mudanças. Marcelo Gavião, presidente da Ubes, explica que os estudantes querem a garantia de acesso e manutenção nas universidades federais, por meio de uma política nacional de assistência estudantil, além de isenção da taxa do vestibular para estudantes egressos de escolas públicas. “Queremos estrutura para que se amplie o número de restaurantes universitários. Existem instituições que não têm”, afirma. “Também seria bem-vindo o passe de ônibus a todos os universitários.” Já a UNE reivindica a uma lei de mensalidades, que garanta o fim dos aumentos considerados abusivos.


“Não vamos nos render”

Faltando dez dias para o fim do prazo para apresentação de sugestões à proposta de reforma universitária, o ministro da Educação, Tarso Genro, dá sinais de que pode recuar em alguns pontos para construir um consenso em torno do texto que será enviado ao Congresso em junho. Em entrevista ao Correio, Tarso admitiu que parte dos pontos da reforma não são consensuais nem mesmo dentro do próprio governo, principalmente no Ministério da Fazenda. “Não desconhecemos que existe posição dentro do governo que é mais reativa. É uma posição conservadora sobre a expansão da rede federal”, disse. “São pessoas que entendem que o Estado não deve necessariamente jogar recursos importantes na educação pública superior.”

Para o ministro, a existência de posições distintas em relação à reforma não significa que exista um racha dentro do sistema de ensino superior. De acordo com ele, o que acontece é que as pessoas que se colocam de maneira agressiva contra a proposta são poderosas. “Pode pôr isso aí no Correio: elas são poderosas do ponto de vista político e financeiro, então sua voz é repetida de maneira ampliada”, argumentou. “Nós encaramos essa atitude de forma natural, mas não vamos nos render a esses interesses.”

A seguir trechos da entrevista:

Ponto-a-ponto // Tarso Genro

Compromisso e coerência

“Existem duas questões críticas que surgiram à tona de uma maneira um pouco desordenada. O primeiro trata de dinheiro. Mais precisamente de quanto o Estado brasileiro vai gastar. Vamos gastar mais ou não para expansão das universidades federais? A rede federal, que hoje é modesta, vai ser expandida e qualificada? Essas questões têm que ser processadas na sociedade e também são um dos aspectos essenciais do governo Luiz Inácio Lula da Silva. Se formos ler os compromissos que o presidente Lula assumiu em relação à universidade pública vamos ver que a proposta do MEC é coerente com esse discurso. Mas não desconhecemos que existe posição dentro do governo que é mais reativa. É uma posição conservadora sobre a expansão da rede federal. São pessoas que entendem que o Estado não deve necessariamente jogar recursos importantes na educação pública superior.”

Recursos para universidade

“O debate está travado entre os ministérios da Educação e da Fazenda. Depois, a Casa Civil que vai definir, sob orientação da Presidência da República, qual o grau de disponibilidade e quais os recursos que a universidade pública merece. Isso tudo vai dizer qual é a importância que o governo está dando para essa relação que o MEC está estabelecendo entre educação superior e o projeto nacional de desenvolvimento. Esse debate está sendo travado, mas não de uma maneira dramática ou desqualificada. Ele existe desde o ano passado. Como existiu dentro do Programa Universidade para Todos (ProUni), que usou recursos públicos excedentes do Tesouro Nacional para pagar bolsas. A discussão no geral está se processando e vai continuar assim até junho.”

Instituições privadas

“O segundo nó da reforma é a questão do setor privado. Não somente a definição de marcos regulatórios mas também sua diferenciação interna do sistema. Não existe só um setor privado. Sem atentar muito para as normas políticas, vejo que existem três tipos de instituições privadas: as empresas educacionais, as comunitárias e as que seriam filantrópicas ou sem fins lucrativos. Boa parte das instituições dessa última categoria encobrem relações de interesse econômico e financeiro. A cada voz que surge contra a reforma é possível perceber quais os interesses que estão por trás. Não quero deslegitimar as críticas que vêm do sistema privado geral. Mas temos que ir separando as que apontam para uma regulamentação democrática das que vêm de empresas disfarçadas. E que se constituíram assim porque existe uma lei da selva de concorrência entre elas, que joga essas instituições numa concorrência que aponta para rebaixamento da qualidade.”

Pontos inegociáveis

“Vamos apresentar o texto em junho ao Congresso, até lá vamos buscar ser o mais consensual possível. Mas não abrimos mão das questões relacionadas com a qualidade, afirmação da escola pública e a definição de marcos sólidos para as instituições não estatais. Ao contrário de alguns críticos da reforma, entendemos que educação não é mercadoria, é um direito público subjetivo. Direito à educação não é a mesma coisa que o direito do consumidor. Educação é um direito para toda comunidade e para toda cidadania.”

Vozes poderosas

“As pessoas que normalmente aparecem de maneira agressiva contra a proposta são muito poderosas, do ponto de vista político e financeiro. Não podemos balizar a reforma somente por essas vozes. Não é verdade que o projeto oponha público e privado. Essa visão é desenvolvida por consultores de instituições privadas que querem base política para fazer andar seus interesses dentro da reforma. Nós encaramos essa atitude de forma natural, mas não vamos nos render a esses interesses. Posso garantir que a reforma vai ao Congresso com os conselhos vinculados à direção das instituições particulares. Há preocupação que esse conselho tenha características normativas, mas isso não vai acontecer. A idéia é transformar o conselho em uma fonte para o diálogo que deve ser considerado pela avaliação do MEC.”

Mudanças no texto

“Estamos dispostos a incorporar algumas sugestões na mudança do texto. Os reitores das federais não querem que as fundações de amparo à pesquisa sejam extintas como determina o texto atual, por isso vamos mantê-las, mas totalmente fiscalizadas e subordinadas ao conselho superior de cada universidade. Também devemos atender à demanda das estaduais paulistas e criar um capítulo inteiro sobre elas. Quem também deve ganhar um capítulo é a categoria de ensino a distância, atendendo uma sugestão do senador Cristovam Buarque (PT-DF). Já está certo que a assistência estudantil terá mecanismos mais fortes de financiamento, como quer a União Nacional dos Estudantes (UNE). Só não está definido quais os termos disso.”
 

Fonte: Correio Braziliense e ANDES-SN, 21/03/2005.


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